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Pente Quente, de Ebony Flowers discute o cabelo como alicerce da identidade preta

Livro ganhador dos prêmios Eisner e Ignatz apresenta uma série de histórias que mostram a importância do crespo para a autoestima negra e a luta contra o racismo

Pente Quente, de Ebony Flowers discute o cabelo como alicerce da identidade preta
4.5

Pente Quente
Ebony Flowers
Veneta, 184 páginas, 2023, R$ 69,90
Tradução de Dandara Palankof

O racismo estrutural e estruturante tem sua face mais evidente nas ações truculentas e assassinas das polícias contra pessoas pretas. Do caso George Floyd ao caso João Pedro. Mas o racismo também se dissemina na música, na literatura, nos filmes, nas revistas, nos comerciais, com igual teor de violência. Esse sistema reverbera modelos e padrões estéticos submissos a uma supremacia branca, que é demonizadora de qualquer aspecto da beleza preta.

Por volta de 2016, uma onda inovadora tomava conta da produção de conteúdo no Youtube brasileiro. Inspiradas num fluxo já forte norte-americano na plataforma, onde mulheres pretas registravam sua rotina de cuidados com seus cabelos, cada vez mais meninas e mulheres brasileiras se sentiam motivadas dentro desses processos. Amanda Tô de Crespa, Gabi Oliveira, Jacy July, Luany Cristina e Rayza Nicácio são alguns exemplos. Vídeos de transição capilar, big chop e finalizações ficaram cada vez mais constantes, influenciando até nas linhas de produtos capilares que voltaram suas atenções a este nicho, desmistificando os padrões de beleza e expandindo o espaço e o protagonismo da estética negra aqui no país.

É sobre essa potente cultura estética e inspiradora da relação da mulher preta norte-americana com o cabelo que Hot Comb, ou no português Pente Quente, de Ebony Flowers, se baseia. O livro é uma junção de oito contos em quadrinhos, onde a autora através de histórias autobiográficas e ficcionais, aborda os contextos envolvendo padrões de beleza interligados ao racismo. A obra chega ao Brasil pela Veneta, traduzida pela também editora da Plaf!/O Grito!, Dandara Palankof.

Através desta tradução, é possível perceber um retrato norte-americano muito próximo do cenário brasileiro, através do movimento de resistência que é cultivar a estética negra através dos cabelos crespos. 

Com o livro, publicado em 2019, Ebony Flowers, artista e etnógrafa estadunidense, conquistou os prêmios Eisner, Ignatz, Believer e Yalsa/Ala, além de configurar nas listas de melhores livros do ano feitas por publicações como The Guardian, The Washington Post e Elle.

Ao longo dos contos, a autora evidencia uma relação íntima da mulher preta com o tratamento de seus cabelos. Tratamento este que nem sempre representa um sinônimo de cuidado, já que pela pressão social, a busca por um alisamento doloroso é frequente. No primeiro, conto, o homônimo, por exemplo, acompanhamos a personagem numa ida ao salão de beleza, e com isso, além da dor do processo, a frustração por ainda assim não conseguir o resultado do corte em que se inspirou. 

Amigas que “fazem” o cabelo das amigas, filha que faz o cabelo da mãe, um acervo de perucas no quarto de uma avó, ou até mesmo situações inusitadas no metrô ou num restaurante, servem como pano de fundo para abordar contextos sociais a partir das questões capilares. Além do racismo presente em diferentes níveis e modos nos contos, a educação violenta às crianças, familiares em situação de drogas e o impacto disso nas famílias, relações tóxicas entre mãe e filha advinda de traumas na infância da genitora, são algumas pautas que emergem e trazem um recorte de vivências pretas nos EUA.

Um destaque se encontra no conto “Lea, Minha Irmã Caçula”, que em resumo (para não adiantar a experiência única que é ler), retrata uma adolescente preta parte de um grupo composto somente por meninas brancas sofrendo a pressão de ser essa minoria. Tal sofrimento se apresenta nocivo à própria saúde mental da personagem, resultando numa das abordagens mais sensíveis e honestas da sequência trazida por Ebony Flowers.

Outro ponto alto está em “O Último Sábado em Angola”, conto que fecha o livro, apresentando a dose mais cômica da autora. Esta parte também revela os anos de Flowers como professora em Luanda, em Angola, trazendo detalhes peculiares sobre particularidades sociais e políticas de lá.

Ebony Flowers, Pente Quente
Autorretrato da autora. (Divulgação).

A forma usada pela artista para contar e ilustrar esses contos traz um diferencial do que o mundo dos quadrinhos pode ter se acostumado a ver, nos coloridos e nas projeções de mais de uma dimensão dos desenhos. Ebony Flowers se apoia aqui num preto e branco que foge do clássico. Seus traços passam uma dedicação inteiramente manual à sua realização. Como se os desenhos estivessem sendo feitos em movimento, como se pudéssemos ver o lápis da artista percorrendo as linhas assim que passamos os olhos. 

A sensação é que cada quadrinho foi criado a partir de uma observação imediata dela, com muitos detalhes e preocupação com os cenários, o clima, as sombras ou até mesmo as divagações lúdicas que uma ou outra personagem tem. Esse zelo também é perceptível nas folhas de entremeios dos contos, apresentando anúncios de produtos de cabelos black power ou perucas à venda, inspirações que vem da veia autobiográfica da obra, do que Ebony Flowers viu ao longo de seu crescimento.

A chegada do livro ao Brasil traz a possibilidade de reerguer as temáticas que envolvem a estética negra envolvendo as mulheres, homens e a sociedade em geral, por meio dos quadrinhos, num trabalho sensível, que provoca imersão na leitura. Pente Quente é capaz de tocar toda pessoa preta que encontra em seu cabelo crespo um alicerce de sua identidade.

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Consuella, o filme que lançamos em 2023

2023 foi bem especial pra gente! Lançamos o curta Consuella, dirigido por Alexandre Figueirôa, editor-executivo da Revista O Grito!. O filme resgata a história de uma importante personalidade artística do Recife, que viveu seu auge nos anos 1970-80 e que abriu portas para diferentes artistas LGBTQIA+. O curta percorreu o circuito de festivais e teve uma première concorrida no Teatro do Parque, com a presença de pessoas que conviveram com Consuella, além da equipe que produziu a obra. Trata-se de uma importante memória da excelência trans, de alguém que ousou peitar as convenções tradicionais e conservadoras de sua época.

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