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Daniel Ribeiro usa o cinema para refletir sobre a liberdade sexual (Foto: Divulgação)

Papo com Daniel Ribeiro, diretor de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho: “É transformador assistir algo que te representa”

Conhecido pelas narrativas LGBTQIA+ no cinema e na TV, diretor e roteirista fala do seu interesse cinematográfico de trazer histórias mais inclusivas e universais

Você já deve ter assistido, ou pelo menos ter ouvido falar, do filme Hoje Eu Quero Voltar Sozinho sobre um adolescente deficiente visual que se apaixona por um colega de sala. O que pouca gente sabe é que, antes do longa-metragem, veio o curta Eu Não Quero Voltar Sozinho. Em seu segundo filme, o paulista Daniel Ribeiro, nascido no dia 20 de maio de 1982, já apresentava a sensibilidade que é marca do seu trabalho como diretor e veríamos depois no longa, e uma leveza para contar uma história de amor do jeito que elas devem sempre ser: universais. “Contar histórias universais, através de personagens que são ricos e o público consegue se identificar, mesmo que eles sejam diferentes de quem vê”, explica Daniel sobre os seus interesses na sétima arte.

O mês de junho é celebrado no mundo todo como o Mês do Orgulho LGBTQIA+ e ele foi escolhido por conta do levante de Stonewall e a Revista O Grito! entrevista artistas e obras que vão desde resgate históricos aos dilemas contemporâneos da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. “A luta nunca acaba e ainda tem muita deficiência e isso não tem mais volta!”, opina o diretor.

Em 2007, Daniel Ribeiro já estreou no cinema com o curta-metragem Café com Leite, que aborda um casal de namorados que precisa cuidar do irmão menor de um deles após a morte inesperada dos pais. A obra ganhou o Urso de Cristal de Melhor Filme no Festival de Berlim, além de ter sido premiado também no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e em outros festivais no Brasil e no exterior. Em 2010, Daniel realizou Eu Não Quero Voltar Sozinho, premiado no Mix Brasil e no Festival de Paulínia. Sua estreia em longas-metragens foi em 2014 com Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, que conquistou os prêmios da Crítica e o Teddy no Festival de Berlim, além de outros reconhecimentos.

Nesta conversa, o cineasta revela a fonte de suas inspirações, analisa o cinema brasileiro, critica o atual desmonte na área, além da CPI da Covid no Senado. Confira!

Como está sendo sua rotina com a pandemia?

Esse ano não me deu ânimo e nem inspiração pra nada. Eu tinha uns projetos antigos, acho que estou mais mantendo, tentando fazer as coisas que já existiam se encaminharem um pouco. Está menos criativo, fico meio abalado, meio obcecado com as questões da pandemia e fico vendo a CPI da Covid. Estou fazendo coisas enquanto isso, mas sinto que esse lance da criatividade, mesmo de produzir, até teve no começo, havia uns editais que eu precisava terminar, aí consegui escrever coisas ali no começo, que chegou até a metade do segundo semestre do ano passado, mas desde então, não. Estou mais pegando projetos antigos, que também estavam indo pra frente em edital. É uma questão de produção mesmo, foi muito mais a produção de projetos antigos do que da criatividade.

Há artes que no seu processo criativo, o trabalho é realizado de forma mais solitária, como a literatura, por exemplo. Já o cinema é uma arte coletiva. O isolamento deixou você mais distante dessa prática mais coletiva?

Eu sempre fui mais de ficar em casa mesmo. A pandemia não me afetou tanto nesse sentido, a maior parte do tempo que sinto, passo em casa escrevendo. Então, há épocas que fico em casa escrevendo projeto, às vezes, uma semana sem sair de casa, ou angustiado ou procrastinando, escrevendo ou pesquisando… Isso não me abala muito não. É muito mais essa sensação do mundo mesmo, de estar num processo em que a sua cabeça não está no lugar da criatividade. Cinema e TV – audiovisual em geral – tenho a sensação de que a gente passa muito tempo escrevendo, preparando projeto, revisando roteiro, vendo edital, etc, do que dentro do set de filmagem. Se pego o tempo da minha carreira que passei num set, não dá cinco meses ao todo. É isso: uma semana pra um curta, três meses pra uma série, outra ali que vai levar semanas. E eu sempre vivi do cinema, dos projetos. Essa coisa do coletivo do cinema, eu tenho pouca experiência, então, a pandemia não me afeta nesse sentido. É mais mental, da sua cabeça não estar voltada para criar projetos, de inspiração, ser criativo e de reflexão. Mas tudo isso que a gente está vivendo pode virar alguma coisa, né? Isso influencia muito, em algum momento, vai virar outra coisa.

Tem acompanhado a CPI da Covid? Qual sua avaliação a respeito?

Eu não tô enxergando nada, gente! [risos]. É o zero! É um período que a gente se junta. Essa pandemia também num processo de um ano de muita tristeza, de destruição da arte, destruição da esperança. Se você pensar em tudo o que foi construído no Brasil nas últimas décadas, vem uma pessoa [presidente Jair Bolsonaro] e vai destruindo tudo; e o que não destrói deixa ser corroído pelo tempo e pelo sistema, ou abandonado e aí vai sendo destruído dessa forma. É muito triste!

Mas eu que vivi um processo de entrar na faculdade no começo de 2001, quando a Retomada estava começando a crescer, pego o começo do boom da produção. Então, sinto que sou o fruto desse momento no Brasil, em que muitos jovens estavam conseguindo fazer cinema cedo. No começo dos anos 90, quando ainda não é Retomada e se observa gente mais velha: eu lembro dos meus professores da faculdade que estavam começando a fazer filmes e a gente também. Eram duas gerações juntas ali produzindo. Minha carreira acontece nesse boom de produção do cinema. A minha geração é um pouco mimada nesse sentido de tudo, teve acesso a muitas coisas. A gente viajava muito pra festival e quando se falava sobre financiamento e de festivais como o Festival de Cannes, o Festival de Berlim, [nesses países] eles tinham muita inveja do Brasil porque aqui tinha muito dinheiro em produção, muito investimento. A gente viveu num momento muito incrível. Pra minha geração que não viveu o processo trágico anterior, do começo dos anos 90, foi um banho de água fria. Era muitas carreiras decolando e depois todo mundo sendo “breackado” e isso é muito trágico, muito triste.

Mas também tem muita esperança, no fim da contas, a gente acaba produzindo coisas, os streamings crescendo, tem um certo lugar pra produzir, porém fica muito restrito para quem já tem um nome ou já lançou alguma coisa. É mais triste para uma geração que vem depois da minha, geração essa que viu a nossa na faculdade, viu tudo isso acontece e, de repente, diz: “puts, isso não vai mais acontecer!”. Não chega num streaming pra propor alguma coisa, é meio frustrante, por que não é uma geração que conseguiu chegar nos lugares para ter acesso ao que tá “sobrando” agora. Eu falo no sentido de financiamento, dos streamings e os canais, por exemplo. Todavia, também eu sou esperançoso, a gente passa por isso.

Sobre a CPI, eu acho que finalmente tá conseguindo construir esse roteiro, essa narrativa de tudo que aconteceu e organizando, é quase como escrever um roteiro. É muito bom nesse sentido ver os senadores pegando todas as peças de tudo que foi acontecendo no ano passado e reorganizando e contando uma historia pra gente relembrar. Esse governo consegue num dia destruir uma coisa, no outro dia destrói outra e vai acelerando a destruição que você esquece o que aconteceu há umas semanas atrás porque há três tragédias novas.

A gente poderia dizer que esse governo é um verdadeiro “Exterminador do Futuro”?

Sim, total! A CPI vem pra não permitir que isso aconteça. Eles estão fazendo um trabalho muito bom de reconstruir essa narrativa. Talvez pode não servir para um impeachment, tecnicamente falando, ou do que a gente precisaria, porque foram muitos crimes cometidos. É um absurdo e a CPI vai mostrando, deixando muito claro isso e forma uma narrativa muito forte pra gente no ano que vem na eleição lembrar o que aconteceu. Está contada a história: a gente vai saber tudo: Pfizer, cloroquina, Manaus… o caos todo que foi conscientemente planejado. Vai ser essa disputa no ano que vem: o caos contra um pouquinho de sanidade! [risos].

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“Café com Leite” marca a estria de Daniel Ribeiro no cinema (Foto: Divulgação)

Como o cinema surgiu para você?

Pra mim sempre foi muito do audiovisual mais do que cinema em si. Eu sempre gostei muito de assistir TV, por exemplo. Na adolescência, nos anos 90, quando surge a TV a cabo no Brasil com mais força, havia muitos canais, muitas séries, fiquei muito influenciado com aquilo tudo, séries americanas… Pensando muito nessas questões que gosto de abordar que são do universo LGBT, vem muito de influência do que aconteceu na TV nessa época. Não só nos Estados Unidos, mas no Brasil: novelas que começam a abordar o tema também. Então, para mim, personagens do universo LGBT – mais gays do que qualquer coisa – e naquele momento, principalmente, é uma diferença muito grande do que era criado na época e o que aconteceram depois. Porém, esse retrato do personagem gay surge ali nos anos 90 e eu digo: “ah, eu quero falar sobre isso!”. Era muito mais uma vontade de me ver retratado na tela, a vontade de as coisas que eu vi, eu dizia: “nossa, eu quero fazer isso também, eu quero ver!”. Isso é muito importante, transformador assistir algo que te representa, principalmente, os adolescentes. Hoje ainda é assim: muito menos do que foi nos anos 90, quando eu era adolescente, de você se sentir único no mundo, enfim, todas as coisas ruins trazidas pela homofobia da sociedade, quando o adolescente está se descobrindo.

O audiovisual é muito importante para contar essas histórias e narrativas para você se identificar, entender o que você é, quem você pode ser, as possibilidades. Então, aquilo me influenciou muito depois de eu fazer faculdade.

Depois quando fui fazer faculdade, a ECA [Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo] tinha dois cursos: Cinema e Rádio e TV. Acho que se tivesse entrado antes, teria escolhido Rádio e TV. Só que quando fui prestar vestibular, era o segundo ano e tinha se tornado Audiovisual, os cursos foram unificados e fazia muito mais sentido. E hoje, fica mais claro ainda. Aquela época nem era tão óbvio, mas depois se observar como a televisão se transformou, ficando narrativamente mais cinematográfica. Há uma quantidade de séries que são muito mais elaboradas, com bons roteiros, com gente do cinema indo pra televisão pra produzir. Então, a ECA, ali no começo dos anos 2000, une os cursos e isso foi muito importante.

De certa forma e, curiosamente, eu pego esse momento do boom do cinema brasileiro com investimento em cinema e há um monte de edital pra curta-metragem e consigo contar as minhas histórias através dos curtas e do cinema. Pra um jovem ali no começo dos anos 2000 era mais fácil fazer cinema do que televisão. Consegui escrever um roteiro e mandei: Café com Leite eu enviei para o edital da Petrobras de curta e ganhei. Eu tinha 24 anos. Quando eu poderia escrever um roteiro e dirigir um curta ou um episódio de pra TV? Não ia! Ou isso iria demorar muito pra acontecer. Esse investimento em cinema acaba gerando um monte de novos talentos, que talvez demorasse muito para ser descoberta na televisão.

Escrevi e realizei o Café com Leite e circulo com ele; em seguida, escrevo o roteiro do Eu Não Quero Voltar Sozinho e ganho o edital do Minc. Com isso, preparei e mandei pros editais o projeto do Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, que acabou acontecendo.

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“Eu não quero voltar sozinho”, curta-metragem que deu origem ao longa de 2014 (Foto: Divulgação)

Você já começou a trabalhar no cinema na direção ou em outra função?

Fui direto (risos). Na ECA, fiz meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] sobre o personagem gay no cinema brasileiro. A ideia era abordar como os personagens gays primeiro eram tratados de uma forma mais estereotipada, depois a homossexualidade começa a virar tema do cinema com a descoberta da sexualidade sendo o foco principal e, em um terceiro momento em que os personagens são gays, mas as histórias não são necessariamente sobre a homossexualidade deles, são personagens mais bem resolvidos. Na verdade, são personagens cuja sexualidade não é uma questão pra eles. Eu tinha feito isso e, então, o Café com Leite surgiu disso. A proposta do meu TCC era fazer um filme cujos personagens são gays, mas a questão narrativa do filme e os conflitos não giram em torno da sexualidade deles.

Cheguei a trabalhar em uma produtora, mas como assistente, não cheguei a produzir nada de fato, nem ir pra set. Isso rolou muito cedo na minha vida, em 2007. Nunca tinha feito muita coisa e na ECA não trabalhado na produção dos outros, fazia mais os meus exercícios. Fiquei pouco mais de um ano nessa produtora e, logo em seguida, surgiu o Café com Leite. Trabalhei como assistente de montagem também nessa época. Faço muito as funções solitárias no cinema, em geral, tirando a parte de direção: roteirista, montador ou assistente de montagem, mas eu não fiquei muito tempo nisso.

Então, meu trabalho foi por esse caminho: eu fiz o Café com Leite. O filme estreou no Festival de Berlim e lá ganhou prêmio de melhor curta. Então, eu viajei aquele ano, em 2008 inteiro. Depois volto, começo a trabalhar no curta, lanço outro em 2010. Fica essa mistura ali, esse momento da minha vida com esses dois curtas e fiz uma série da TNT entre eles.

Nessa época, pensei muito sobre o próximo projeto que eu ia fazer e me vem a ideia do personagem do Léo, que era essa ideia de um menino que nunca viu nenhum outro e também nenhuma menina e se descobre apaixonado por outro garoto, uma forma interessante de falar sobre de onde vem a nossa sexualidade. Geralmente, a sexualidade está muito atrelada tanto à visão, quanto ao exterior. É aquilo que a gente vê, o que a gente se sente atraído – por isso a gente dá muito valor à visão – e a sexualidade tá no outro, sempre pensando no que você gosta e menos no que você é.

Esse personagem tinha essa capacidade de despertar essa discussão: “se você nunca viu, porque você sente essa atração, de onde vem essa atração?” A resposta é que ela tá dentro de você! Até queria que fosse um longa desde o começo, de fato, o personagem era rico pra isso, mas a gente decidiu fazer o curta antes pra experimentar um monte de aspectos. Um deles era que a gente não tinha muita experiência como produtora. Então, decidimos fazer o curta, experimentamos, foi mais um curta pra nossa coprodutora. Também tinha a questão de trabalhar com um ator adolescente interpretando um personagem deficiente visual, que era um desafio pra nossa equipe, nos fez pensar nos detalhes.

O curta também foi importante para experimentar as questões estéticas e usar como piloto pros editais de longa. Fazer curta era relativamente fácil de conseguir e mandar pra um edital, não era necessário um puta currículo pra ganhar. Mas pro longa começa a ficar mais complicado, é tudo maior, mais grana, personagens mais complexos. Outra questão desse filme era falar de um personagem, ao mesmo tempo, cego e gay. Contar essa historia dava muito a ideia de que era um filme trágico, “olha quantos problemas essa pessoa tem…” E a ideia não era essa, a gente queria contar uma historia leve sobre o primeiro amor e sobre como a descoberta do amor pode ser uma coisa leve e deveria ser pra todo mundo. Pro LGBTI+ não ter sempre a descoberta do amor atrelada a uma questão difícil. Estar se descobrindo apaixonado não é só você e aquela pessoa. É você, a pessoa e o mundo. No sentido ter que enfrentar o preconceito do mundo, que está contra o LGBTI+ pra aceitar sentimento que ele tem. Mostrar a possibilidade de um amor leve de dois meninos gays é super importante e no curta consegui mostrar que era isso que eu queria contar.

Depois, começamos a mandar pros editais de longa. O filme foi pro YouTube e é um sucesso lá com milhões de visualizações. Isso conta muito pros editais de longa, que as pessoas veem que aquela historia tem potencial de público. É algo que é preciso convencer as pessoas quando se trata de longa. Então, muitos ficaram interessados por que é uma história leve e pode ser popular. Disso, surgiu o Hoje eu quero voltar sozinho, filmado em 2013 e lançado em 2014.

“Hoje eu quero voltar sozinho” é um filme que dá voz a uma geração de LGBT brasileiros. De onde surgiu a ideia de fazer um filme protagonizado por um personagem deficiente visual?

Vem de uma reflexão minha sobre pensar como foi a primeira vez que me senti atraído por outro corpo. Lembrava muito pequeno ainda de não ser muito inconsciente enquanto desejo, mas de parar pra dizer: “nossa, quando eu tinha cinco anos eu me senti encantado por essa mulher”. Na verdade, era capa do Balão Mágico ou era Trem da Alegria. Um dos meninos estava com uma roupa meio de menina e aquilo era meio fascinante. Ficava atraído por aquilo e, na época, eu não entendia o porquê, só gostava mesmo. Aquilo lá me marcou muito e teve a ver com a visão, era a atração pelo corpo de um menino. Fiz uma pesquisa com os amigos e todo mundo lembrava uma memória visual, nunca era o cheiro, o toque ou qualquer outra coisa. E aí pensei: “e como é a primeira atração pra uma pessoa que é cega?”.

Essa ideia surgiu em 2008 e não existia muita rede social, era mais Facebook só. E não existiam grupos, por exemplo, de meninos gays cegos. Hoje, com certeza, tem grupo disso. Então, era mais difícil realizar essa pesquisa. Achei um gay de Portugal num site. Ele contou que a lembrança era do peito peludo do pai dele. Aquilo era a primeira memória que ele atrelou como homossexual, mas, na época, não era consciente daquilo que ele considerava atraente, mas que se lembrava disso.

A partir desse momento que se tem um estalo assim, tudo fica mais óbvio. Então, ia atrás, por exemplo, do cheiro que me atraía, do toque, do abraço de alguém. Você percebe, está em tudo, não tá só na visão. Mas ela é essa primeira ideia que a gente tem e ocupa muito. A visão é a rainha dos sentidos, manda em tudo, todos os outros ficam meio ofuscados. Isso seria extremamente potente pensando em termos da questão da atração e do desejo. Comecei a desenvolver a partir disso. Decidi falar desse menino tendo esses estímulos dos outros sentidos e descobrindo o toque do outro garoto, que chama a atenção dele, que o cheiro do moletom o atrai, a voz é atraente.

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Daniel entre os atores Fábio Audi e Guilherme Lobo, nos bastidores do curta. (Foto: Divulgação)

Como define o seu cinema?

Não sei, não consigo definir [risos]. Acho meio pop, mas do “pop’ da palavra, popular ou comunicativo. Por exemplo, as questões estéticas não são as que me motivam muito, vou muito pelo roteiro e personagem, que são as coisas mais importantes pra mim. O que mais gosto de fazer é trabalhar com atores e construir os personagens junto com o elenco. É difícil me definir, mas é tentar essa comunicação, contar histórias universais, através de personagens que são ricos e o público consegue se identificar, mesmo que eles sejam diferentes de quem vê.

É difícil criar na pandemia, a gente não tem contato com quase ninguém de um jeito natural, é sempre forçado, muito no campo tecnológico, o texto escrito, só por mensagem e tal.

Como é seu processo criativo? Faz storyboards e realiza muitos ensaios?

Eu gosto bastante de escrever, mas é muito difícil. Escrever é algo muito sozinho. É muito gostoso escrever projetos que tenho com outras pessoas, como quando escrevi o Todxs Nós, série da HBO. É mais legal estar em sala de roteiro. Uma coisa que levaria um mês pra concluir; em um dia, com as pessoas curtindo, você resolve, é incrível isso. Escrever é um processo difícil pra mim. Dói! Você trabalha e quer que seja perfeito e demora, é um processo lento e doloroso (risos). Mas, o roteiro é isso! Pra mim, o roteiro é muito mais um mapa dos caminhos. Quando junto a equipe, durante dois, três meses… – na pré-produção nos ensaios – e filmo, é onde começo a preencher aquele mapa que planejo. É como uma espécie de forma de bolo que vai crescendo. Aos poucos, vou construindo as camadas do bolo.

A equipe também traz muito, constrói esse mapa, realiza uma construção em cima daquele lugar que está no roteiro e, juntos, observamos o que os atores vão trazer para a história, ficar de olho para as pontuações do diretor de fotografia, do diretor de arte… É um momento importante para reunir as melhores ideias que vão surgindo ali, estar aberto pra isso. Dirigir pra mim é isso: estar com antena totalmente ligada e atenta pras ideias que todas aquelas pessoas estão trazendo.

Falando de roteiro, quando você junta cinco pessoas, por exemplo, vai ter muita ideia ruim, um fala uma coisa, outro fala outra, outro fala uma bobagem… Essa bobagem estimula no outro uma ideia maravilhosa. Quando a gente tá no set é isso também. Estou lá no set e aquela ideia que tive sozinho no roteiro e troquei ideia com uma ou outra pessoa que leu e deu opinião, de repente, tem 30 pessoas falando alguma coisa, discutindo ideias. É estar atento a tudo ao que a sua equipe traz e trabalha em cima. Gosto de ensaiar muito com os atores porque, geralmente, os diálogos são horríveis no roteiro. E quando os atores chegam, eles encontram as palavras corretas para os personagens. Pra mim, o diálogo é muito um mapa, tem uma ou outra coisa ali que precisa ser de determinada forma, mas normalmente, são as ideias. “Essa ideia vai ter que começar por essa ideia, vai ter que passar por isso e chegar aí. Eu escrevi desse jeito, não sei se pode ser algo diferente ou se quiserem falar isso de outra maneira”. Por isso, é bom ensaiar, porque se o diretor chega num set direto com o roteiro pra filmar não dá.

Gosto muito de estar preparado com os atores antes porque no set é tudo muito técnico, né? Você tem muito pouco tempo com os atores e eles são vulneráveis no set. Por mais experientes que as pessoas sejam você chega e há 30 pessoas olhando pra você, pra fazer certa cena e cada um tá preocupado com uma coisa; um tá de olho na sua testa pra ver se a luz tá boa. A equipe está no set como se fosse uma plateia pro ator e não no sentido de querer aplauso, mas de ter um monte de gente olhando pra ele. Se o ator não tem a consciência de que aquela pessoa que estava exclusivamente olhando pra testa dela, aquele outro que tá só de olho no foco e aquela observando o cabelo… Normalmente, ninguém tá nem ouvindo o que o ator tá falando. Então, eles ficam vulneráveis mesmo no set. Por isso,é fundamental essa conexão que vem de antes. Sempre funcionou essa relação com os atores pra eles estarem seguros naquele ambiente e, de fato, eu não vou poder ficar dando atenção pra eles na hora que a gente tá filmando porque tô ali atento a dez olhares e fazendo dez coisas diferentes.

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“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” ganhou prêmios como o Teddy Awards e o FIPRESCI Awards em Berlim. (Foto: Divulgação)

A sensibilidade é algo muito presente no seu cinema. O que te inspira a criar?

É sempre difícil. Inspiração é algo parecido como olhar da atração, tem uma série de outras coisas envolvidas. Há processos que são inconscientes, que você não escolhe. Tem o olhar, as coisas que você vê, lê e todo aquele resto que tá ali pra você, por exemplo, de entrar no elevador e cruzar com alguém e essa pessoa estar sem máscara. São as experiências de contato e com os conflitos humanos, tudo isso inspira. As pessoas me inspiram muito, as relações humanas, gosto de personagens, de história, de narrativa bem contada, do simbolismo das coisas, das pequenas coisinhas. Meus roteiros são muito amarrados e um montador que trabalha comigo, o Cristian Chinen sempre fala: “você deixa tudo amarradinho, tem que soltar um pouco”.

Gosto disso e tem a ver com as relações humanas em geral, familiares, de amizade, românticas, do dia a dia, tudo isso vai inspirando de certa forma. Isso eu sinto mais falta desse contato humano que vai gerar as experiências, as histórias. É você sair com alguém que depois vai se conectar e transformar e mais pra frente isso vai virar um roteiro, um personagem. São as experiências do dia a dia que a gente vivencia e depois vão virar histórias.

Por isso que é difícil criar na pandemia, a gente não tem contato com quase ninguém de um jeito natural, é sempre forçado, muito no campo tecnológico, o texto escrito, só por mensagem e tal. O que me inspira mais são as pessoas. Música também, sempre tem algo interessante, um cheiro, tudo… né? Muito do campo do sentido, você sente o cheiro de alguma coisa que era da sua infância, o cheiro do perfume do seu primeiro namorado e você fala: “nossa!”. Acontece alguma coisa e 20 anos depois você transforma numa história e por aí vai. A inspiração tá em tudo!

Você é taurino. Chega a ser muito aterrado, pés no chão?

Taurino gosta das coisas boas e é obcecado com conforto e comida tem a ver com isso. Eu não como muito, mas eu gosto de comer as coisas que são gostosas. É aproveitar muito mais o prazer da comida do que ser comilão. É uma injustiça com a ideia do que é ser taurino.

A temática LGBTQI+ tem tido mais espaço atualmente no audiovisual?

Sim, sem dúvida, virou mainstream. O audiovisual alimenta a sociedade, que retroalimenta o audiovisual.  Nos final dos anos 90, quando havia uma enxurrada de histórias em séries com personagens gays que foram surgindo, isso fez com que as pessoas tenham mais facilidade e liberdade em se aceitar, se declarar gay para o mundo. Daí começa a surgir um monte de gays quando, na verdade, já existiam, só não estavam ainda ali falando publicamente ou estavam vivendo vidas duplas ou vidas menos públicas. A partir do momento que começa a tocar na questão do preconceito da sociedade, as pessoas começam a compreender. A sociedade passa a perceber que todo mundo conhece alguém que é gay, todo mundo conhece alguma lésbica… Aí vai desmistificando e, de repente, hoje em dia, é meio ridículo até. Claro, tem muita gente contra, principalmente, quem coloca a religião no meio e o conservadorismo pra barrar. Mas, mesmo essas pessoas nem utilizam os mesmos argumentos que utilizavam antes.

PREMIO
Daniel posa ao lado da produtora Diana Almeida, vencedores do Prêmio do público no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (Foto: Divulgação)

Quando eu era adolescente, já estava melhorando, mas mesmo assim, ainda existia muito preconceito, as pessoas não conheciam. Ainda havia muito espanto: “nossa, aquela pessoa é gay!”. Hoje em dia, não tem isso, tá dado. A evolução do mundo se dará quando todo mundo perceber que, se você vai ter um filho, você tem a possibilidade de ter um filho gay, de ter um filho trans… Quando todo mundo compreender isso, vai entender que não há controle. É preciso entender de quanto amor você vai dar para seu filho ou filha e o quanto vai apoiar ele. A gente tá evoluindo pra um momento em que as pessoas vão compreender isso, um passo a mais. Os conservadores querem controlar a cultura e a família, tentam tanto controlar a família deles e o pênis, eles querem controlar tudo. Isso não tem controle. É preciso aceitar o mundo como ele é, pois as coisas são como elas são.

Então, por isso a sociedade se transformou de uma forma muito grande nos últimos 20, 30 anos – o audiovisual se transformou bastante nessa época. Não dá mais para fazer um filme ou série sem um personagem gay. Uma série sem um personagem LGBT é quase ridículo hoje em dia. Não tem isso, tem sempre um LGBT. Um: porque é a vida. E dois: por questão de audiência mesmo, é necessário, se você quer atingir um público amplo. Tem muito LGBT no mundo (risos) e isso está claramente refletido no audiovisual. Não com tanto equilíbrio. Antes, se dizia: “ah, as gays estão ali, então tudo bem”, mas atualmente a gente tá falando sobre toda a diversidade dentro da sigla, entra a questão racial também, por exemplo. A luta nunca acaba e ainda tem muita deficiência e isso não tem mais volta!

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Criada por Vera Egito, Heitor Dhalia, além de Daniel, “Todxs Nós” é uma série de televisão brasileira de comédia, drama e diversidade (Foto: Divulgação)

Quais são os diretores que você mais gosta?

Essa é uma coisa muito difícil. Há filmes como Delicada Relação, que é inglês e assisti nos anos 90, sobre dois adolescentes se descobrindo. Aquilo me marcou muito na época, é muito forte. E eu fiz o Hoje eu Quero Voltar Sozinho com essa mesma vontade. “Nossa, eu quero que adolescentes vejam o filme e tenham a mesma sensação que eu tive”, eu pensava. Aquele filme dizia que eu podia existir! Há os filmes do John Cameron Mitchell, por exemplo, que eu adoro. Felizes Juntos do Wong Kar-Wai é super foda pra falar dos sentidos também. A obra tem a abordagem LGBT dos personagens, mas é muito mais estético, a gente se relaciona com eles muito por esse viés, pela música que toca, as imagens que são lindas, aquelas cores. Isso me influencia muito. Madame Satã do Karim Aïnouz é impressionante, misturando tudo: personagem, história fodas, ele é um diretor que sabe filmar como ninguém, é muito estimulante.  

O que podemos esperar de futuro?

Tem dois editais que ganhamos há muito tempo e estamos esperando pra sair. Se der tudo certo, tem um filme inscrito em 2016, deu problema com edital, depois inscrevemos em outro e ganhamos e agora talvez saia. É um filme sobre a história de um casal trans. Eles entraram jovens na faculdade, se conhecem há um tempo, são seguros entre eles e o mundo se abre e depois começam a se separar. Tem outro que é sobre separação também, um projeto desse mesmo edital. Estamos esperando pra ver o que vai acontecer e possivelmente vamos filmar os dois no ano que vem. Acho que pós-pandemia, sem Bolsonaro em 2023, vai ser um momento de inspiração falar sobre esse momento trágico que a gente tá saindo.