Edição: Paulo Floro. Arte: Felipe Dário.
Criar a lista de Melhores Quadrinhos do Ano sempre foi um exercício jornalístico interessante. Nessa curadoria de obras lançadas nos 12 meses anteriores conseguimos refletir sobre a produção do mercado editorial e discutir tendências, inovações, surpresas. Como toda lista, tudo é muito subjetivo, claro, pois se trata de um recorte, um retrato que faz conexões com o contexto cultural, político, com o trabalho dos artistas, etc. A lista é uma conversa.
Nos últimos anos, porém, essa conversa parece sempre apontar para um consenso muito bem delineado que registra o bom momento do cenário de quadrinhos no Brasil. Ou ao menos, uma sensação de bom momento (faltam dados e uma análise mais demorada pra gente ir fundo nesse papo). A diversidade de narrativas, estilos e propostas editoriais é o que fica mais evidente quando perpassamos essa lista de 30 melhores HQs lançadas em 2021.
Em um ano ainda sem eventos de quadrinhos e com um país tentando se reerguer de uma das maiores tragédias de sua história, é incrível chegar até aqui com uma curadoria de títulos tão impressionante. Esperamos que essa lista – essa conversa – seja prazerosa e útil. Quantos desses gibis você leu? O que achou das posições escolhidas? Faltou alguém? Fique à vontade para responder nos comentários e nas redes sociais.
Boa leitura.
PS: Um dos principais lançamentos deste ano, a Ragu 8, ficou de fora por um motivo ético. Paulo Floro, editor da Revista O Grito! e da Plaf e Dandara Palankof, editora da Plaf, coeditaram o livro ao lado de João Lin, Mascaro e Diogo Guedes. A obra reúne mais de 40 artistas brasileiros e estrangeiros e saiu pela Cepe. Recomendamos fortemente.
PS2: Esse ano também marcou a volta da Plaf, que lançou dois novos números – a edição 5, com capa de Rogi Silva e a 6, com capa de Greg. A publicação está à venda em nossa loja online e em lojas especializadas em quadrinhos de todo o Brasil.
Especial Melhores de 2021
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2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020
30
Péssimas Influências
Estela May
Tiras publicadas na Folha de S. Paulo.
A cartunista Estela May, de apenas 21 anos, faz um registro quase diário dos absurdos do cotidiano vivenciados pelos brasileiros em 2021. Com um traço minimalista que parece se desfazer pelas páginas, a autora usa de ironia, sarcasmo e um toque de comédia rasgada para abordar temas que vão de política a relacionamentos, passando por dependência tecnológica, negacionismo e o que mais estiver em destaque no momento.
Estela começou a publicar seus trabalhos online e fez sua estreia, com apenas 19 anos, na seção de tiras diárias da Folha, um feito por si só já bastante impressionante. Entre suas maiores referências estão Laerte – sua colega de jornal – e sua mãe, a escritora e roteirista Fernanda Young.
Leia: Folha de S. Paulo.
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29
Naturezas Mortas
Zidrou e Oriol
Faria e Silva Editora
Tradução de J.R. Penteado
Zidrou (nome artístico de Benoït Drusie) é um autor belga mais conhecido no Brasil pelo seu trabalho na ótima série Verões Felizes. Mas o roteirista tem uma carreira prolífica que precisa ser mais conhecida pelos leitores daqui. Prova disso é esse Naturezas Mortas, trabalho que mostra o quão polivalente o roteirista francês pode ser na sua capacidade de criar narrativas envolventes.
Ao lado do desenhista espanhol Oriol Hernandez Sanchez, Zidrou nos leva por uma viagem pela vida e obra de um pintor catalão chamado Vidal Balaguer, tido como um dos principais nomes do modernismo catalão. Este é o tipo de HQ que, quanto menos você souber do que realmente se trata, melhor.
Mas vale a pena dizer que se trata de um trabalho rico, complexo, repleto de nuances e que discute questões como o papel da arte e a complicada representação da realidade. É tudo muito bem orquestrado que passamos a leitura inteira pensando se tudo o que nos é mostrado é mesmo verdade… ou seria ficção?
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28
What A Wonderful World
Inio Asano
JBC
Em sua primeira coletânea de histórias curtas, o mangaká Inio Asano (de Boa Noite, Punpun) traz novamente um trabalho bastante melancólico e emotivo, porém desta vez com um toque um pouco mais contundente no modo como aborda temáticas ligadas à saúde mental. São pequenas histórias que abordam a vida de pessoas comuns em uma vizinhança de Tóquio lidando com os problemas da vida moderna.
Com um talento enorme em construir bons personagens, Asano cria tramas cheias de sutilezas para levantar questões existencialistas e psicológicas em uma linha tênue entre o drama e a comédia. Aqui, porém, há uma abordagem muito direta sobre depressão e abuso emocional, por isso é uma leitura que requer cuidado para quem está lidando com esses problemas no momento.
Foi um ano interessante para os fãs de Asano. A JBC ainda lançou sua obra mais recente, Dead Dead Demon’s Dededede Destruction, sobre moradores de uma cidade japonesa tendo que lidar com a chegada de uma gigantesca nave espacial.
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27
Cinema Panopticum
Thomas Ott
Darkside
Mestre das histórias silenciosas e sombrias, o suíço Thomas Ott chega pela primeira vez ao Brasil com este incrível Cinema Panopticum. Aqui, os leitores são conduzidos por uma garota até uma cabine escura repleta de caixas com pequenos filmes.
O que Ott nos apresenta é uma técnica antiga e quase esquecida do cinetoscópio, tido como um dos primeiros equipamentos a conseguir capturar imagens em movimento. E são imagens assombrosas o que nos aparace nesta HQ – em todos os sentidos da palavra – o que faz dessa viagem lúgubre algo emocionante e aterrador.
A ausência de texto (e de elementos visuais como balões ou recordatórios) torna a experiência visual ainda mais interessante. O autor faz uso de uma técnica pouco comum conhecida como “scratchboard” (ou carta à gratter), como nos explica a pesquisadora Maria Clara Carneiro no texto de apresentação: o desenho é talhado com um estilete a partir de um papel escuro criando esse efeito rasgado.
26
Meu Mundo Versus Marta
Paulo Scott e Rafael Sica
Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras
O escritor Paulo Scott e o desenhista Rafael Sica fazem uma leitura distópica nesta obra permeada por um senso de horror e repressão. Estamos em algum ponto da Terra do futuro, mas bem que poderia ser o Brasil de um futuro próximo.
O tempo todo a HQ nos força a pensar essa relação com o momento atual, ainda que os autores não entreguem nada pronto em relação à trama, que é bem críptica, aliás. Cada leitor e leitora vai acabar buscando suas próprias saídas desta narrativa subjetiva, o que pode não ser um processo de todo tranquilo para muita gente.
O que também chama atenção é a grandiosidade do projeto, o que inclui diferentes escalas, que vão desde desenhos hiperdetalhados marcados pela repetição (uma marca do trabalho de Sica) até arquiteturas e cenários de tirar o fôlego. Interessante ver que a Companhia das Letras retomou este ano sua proposta de unir autores contemporâneos da literatura brasileira com nomes de destaque do quadrinho nacional. Que venham mais em 2022.
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25
Kit Gay
Vitorelo
Veneta
Kit Gay, de Vitorelo, é a prova de que podemos hackear o sistema a nosso favor para gerar respostas inteligentes e divertidas contra a violência e a burrice. De tanto mentirem sobre a existência de um kit gay, eis que finalmente o kit gay se torna real (homofóbicos de toda a nação já podem parar de sonhar com o livro).
Pensado como um pequeno manual e ótimo para caber no bolso e nas mochilas escolares, o livrinho traz informações importantes sobre o universo LGBTQIA+ e um conteúdo pensado para combater todo o ódio e preconceito que destrói o Brasil de hoje e que ameaça a felicidade de toda uma geração.
O livro encanta pelo seu projeto inovador, por sua sacada, bom humor e pelos desenhos e designs de Vitorelo, um dos nomes mais interessantes da cena atual de quadrinhos do Brasil. Um manual que deveria estar presente em todos os lares e escolas do país até o fim da LGBTfobia.
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24
Em Ondas
Aj Dungo
Nemo
Tradução de Érico Assis
Nesta obra comovente, o desenhista e ilustrador Aj Dungo rememora sua falecida parceira (que perdeu uma longa batalha contra o câncer) a partir do amor dos dois pelo surfe. A narrativa une a história de amor do casal com alguns dos grandes heróis desse esporte, o que remonta até aos povos originários da Polinésia e do Havaí, que já se divertiam com pranchas sobre as ondas.
Visualmente deslumbrante, o livro se destaca ainda pelo uso minimalista das cores e pelo design na composição dos requadros, o que nos remete a uma sensação de deriva gerada pelas ondas do mar.
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23
A Espera
Keum Suk Gendry Kim
Pìpoca e Nanquim
Tradução de Yum Jung Im
Neste segundo livro da quadrinista sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim lançado no Brasil (o anterior, Grama, também entrou em nossa lista de melhores do ano), a pauta continua sendo a reparação histórica. Desta vez, a narrativa aborda o drama de famílias separadas durante a Guerra da Coreia (1950 – 1953) e que até hoje, mais de 70 anos depois, seguem sem poder se reunir. Gendry-Kim segue com um estilo bem expressionista no uso do nanquim, que alterna momento de extrema delicadeza com traços mais grosseiros que refletem a crueza daquele período.
Ela também segue dando espaço para o leitor trafegar pelo silêncio, assim como fez em Grama, como uma forma de dissipar no ar a dor e a violência retratada na narrativa. Destaque para a longa sequência de fuga de várias famílias em direção ao sul, no meio da neve, em uma odisseia que inclui um massacre promovido por caças americanos que miravam nos milhares de coreanos, muitos com crianças de colo. A reconstituição das paisagens desoladas da Coreia do Norte, em contraposição com a moderna Seul dos dias de hoje, também é impressionante. Leia a nossa resenha.
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22
Sunny Vol. 3
Taiyo Matsumoto
Devir
Tradução de Arnaldo Oka
Esta é a emocionante conclusão da obra mais pessoal de Taiyo Matsumoto, um dos principais mangakás do Japão, autor de Tekkon Kinkreet. Sunny conta a história de jovens que vivem no Jardim Escola Hashinoko, um lar de acolhimento para crianças órfãs e em situação de abandono e risco. (Sunny é o nome do carro velho e quebrado que serve como um refúgio para as crianças, que imaginam um mundo de liberdade e alegria a bordo do veículo).
Acompanhamos seus sonhos, angústias, brigas, brincadeiras, tudo contado de uma maneira bastante lírica, sem a preocupação ou a pressa em desdobrar uma trama mirabolante. São pequenas pinceladas de um cotidiano que vai se apresentando aos poucos, o que acaba construindo uma familiaridade com o leitor, que após a leitura parece estar íntimo com aquele ambiente.
Matsumoto buscou aqui trazer um pouco de sua própria história e não poupou o leitor de passagens doloridas. A obra sai pelo ótimo selo Tsuru, da Devir, que vem publicando mangás mais autorais.
Sunny Vol. 1 entrou no Top 10 dos melhores quadrinhos de 2020.
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21
Ugrito #24 – Aparição
Amanda Miranda
Ugra Press
O formato de bolso da coleção Ugritos, da Ugra Press é perfeito para o impacto visual que o trabalho de Amanda Miranda sempre nos provoca. Com uma narrativa curta, mas com uma trama meticulosamente pensada para o formatinho deste gibi, Amanda apresenta uma história de horror psicológico com elementos sobrenaturais.
Em Aparição ela intercala relatos jornalísticos sobre o desaparecimento de uma mulher com uma aparição de Nossa Senhora em uma janela. A partir do olhar de uma menina que ajuda o pai em um açougue (aqui o toque “gore” do enredo) ficamos imersos nessa narrativa perturbadora que aborda fanatismo religioso e feminicídio.
Amanda Miranda é um dos nomes mais importantes da nova cena de quadrinhos do Brasil e este pequeno gibi é mais um indicativo do potencial criativo que ela transborda.
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20
A Rosa Mais Vermelha Desabrocha: O Amor nos Tempos do Capitalismo Tardio ou por que as Pessoas se Apaixonam Tão Raramente Hoje Em Dia
Liv Strömquist
Quadrinhos na Cia/ Companhia das Letras
Tradução de Kristin Lie Garrubo
Liv Strömquist, autora do sucesso A origem do mundo está de volta com mais um quadrinho-ensaio sobre questões importantes do nosso mundo contemporâneo.
Aqui ela faz uma reflexão sobre o amor através de diversas abordagens e aproveita para desconstruir mitos que perpassam a história da humanidade desde a tradições orais da Antiguidade passando por Star Wars, o filósofo Sören Kierkegaard e Beyoncé.
A quadrinista sueca segue com um texto afiadíssimo e bem-humorado para falar de temas que, parecem simples, mas que movimentam questões complexas ainda pouco compreendidas. Seu desenho se destaca por pensar diferentes soluções de acordo com o tema e o assunto a ser discutido.
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19
King/Black Dogs
Veneta
Tradução de Dandara Palankof
Quando decidiu escrever e desenhar uma biografia sobre Martin Luther King Jr., prêmio Nobel da paz e um dos mais importantes ativistas americanos do século 20, Ho Che Anderson decidiu que iria além da simples louvação para tentar ampliar a compreensão da vida e obra de King.
O resultado é esse lançamento duplo magistral que consegue dar conta da complexa e intensa vida do lider antiracista que segue hoje como uma das maiores inspirações para combater a desigualdade e o racismo. Em King, o autor nos transporta para dentro do cotidiano de Martin Luther King, abordando episódios e momentos marcantes até então pouco explorados ou conhecidos. Black Dogs, espécie de apêndice, traz um diálogo entre um jovem casal negro de Los Angeles, após os tumultos causados pelo espancamento de Rodney King, em 1991, um dos casos mais conhecidos de brutalidade policial contra a população negra.
Em tempos de Black Lives Matter, a obra de Anderson chega cheia de vitalidade para propor um paralelo do trabalho do ativista com as questões atuais do movimento negro.
18
Pulp
Ed Brubaker e Sean Phillips
Mino
Tradução de Dandara Palankof
Vencedora do Eisner deste ano de Melhor Álbum Gráfico, Pulp é um dos trabalhos mais celebrados da HQ mainstream estadunidense recente. Ed Brubaker é uma máquina de criar histórias e seu principal interesse é fincar os pés em gêneros conhecidos para, então, desconstrui-los.
A sacada do autor é utilizar o que há de mais reconhecível nessas histórias para pensar saídas criativas que nos apresentem novas possibilidades de narrativa. Em Pulp somos apresentados a um velho escritor de histórias baratas de Velho Oeste que, cansado da vida de penúria, decide agir como o perigoso Red River Kid, o seu alter ego nos quadrinhos.
A HQ percorre diferentes épocas e conta com desenhos incríveis de Sean Phillips, o que ajuda a montar a atmosfera onírica necessária à trama. A Mino vem lançando várias obras de Brubaker no Brasil – e vem mais a caminho.
17
O Essencial de Perigosas Sapatas
Alison Bechdel
Todavia
Tradução de Carol Bensimon
Alison Bechdel conquistou fama mundial com os dois best-sellers Fun Home e Você é a Minha Mãe?, obras em que foca o seu microcosmo familiar para discutir questões como identidade e sexualidade. A autora estadunidense, porém, começou com um trabalho igualmente importante, que durou mais de duas décadas, Perigosas Sapatas (a tradução do nome original Dykes To Watch Out For, para o português, é maravilhosa).
Com um elenco formado quase inteiramente por mulheres lésbicas, Bechdel reflete sobre mudanças sociais e políticas nos EUA quase que em tempo real, o que permite ao leitor acompanhar a evolução de diferentes temas a partir da ótica da comunidade LGBT e feminista. Mas talvez o maior feito desta antologia é dar conta, de maneira brilhante, da diversidade sapatônica, com seus anseios, defeitos, problemas, sonhos.
“Minha intenção era nomear o inominável, retratar o irrepresentável, para assim tornar as lésbicas visíveis. E eu fiz isso”, diz a própria autora, na apresentação da obra.
16
Tangências
Miguelanxo Prado
Conrad
Tradução de Claudio Martini
Um dos maiores autores do quadrinho europeu, Miguelanxo Prado nos entrega em Tangências o seu trabalho mais profundo e melancólico, um minucioso exame das relações humanas e do amor. São oito histórias que trazem diferentes abordagens sobre relacionamentos – ora absurdas, ora vingativas, mas sempre inusitadas e repletas de um substrato humano muito realista, como é próprio do autor.
A sensibilidade com que Prado retrata anseios, medos e outros sentimentos confere muita humanidade aos seus personagens e por isso a leitura desse quadrinho se torna tão marcante à medida em que nos aproximamos dessas pessoas retratadas, ainda que por pouco tempo. Ao contrário de trabalhos como Traço de Giz (que também chegou por aqui este ano, pela Pipoca e Nanquim), onde seu desenho ganha amplitude em belíssimos painéis que ajudam a contar a história, aqui temos um trabalho mais intimista, sóbrio, quase todo em tons de sépia e onde as feições dos personagens ganham contornos quase expressionistas para denotar uma miríade de emoções.
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15
A Casa
Paco Roca
Devir
Tradução de Jana Bianchi
Três irmãos retornam à casa de férias onde sempre passaram a infância. A missão: limpar o imóvel e colocá-lo à venda após a morte do pai. Esse é o mote de A Casa, trabalho do espanhol Paco Roca que ganhou edição no Brasil depois do sucesso Rugas. Um dos quadrinistas mais importantes da atualidade, o autor é conhecido por construir narrativas emotivas e introspectivas, permeadas por uma incrível paleta de cores.
Baseado em suas próprias memórias, A Casa traz uma narrativa comovente sobre o luto e as estruturas, por vezes conturbadas, das relações familiares. Mais do que propor uma obra puramente revisionista, Roca parece buscar compreender o papel da memória em nossas vidas e como ela aparece quase como um personagem à trama. É a memória que não apenas dá forma e sentido ao passado, mas que parece exercer enorme poder sobre os fatos do presente.
14
Pumii do Vulcão
Rogi Silva
Independente
Pumii do Vulcão, do pernambucano Rogi Silva, é uma dessas obras que nos permitem redescobrir a linguagem dos quadrinhos como um espaço artístico de livres possibilidades. Imersos em narrativas já testadas e convencionais, por vezes nos esquecemos que a HQ é, ela também, uma arte plural que pode ser torcida e retorcida para gerar coisas incríveis e estranhas.
O mistério dá o tom dessa série, que foi publicada no Instagram e no Twitter entre 2020 e 2021. Pumii e sua amiga, Merapi, habitantes de um vulcão, se deparam com criaturas em uma ilha que desafia noções de tempo, espaço, escala, formas.
O traço de Rogi acompanha o tom onírico da HQ, acompanhados de uma paleta de cores muito bem orquestrada.
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13
Preferência do Sistema
Ugo Bievenu
Comix Zone
Tradução de Fernando Paz
A memória virtual é um recurso bastante escasso no futuro distópico de Preferência do Sistema, HQ do francês Ugo Bienvenu que chegou ao Brasil pela Comix Zone.
Desafiando a polícia que define quais obras culturais merecem ser preservadas, o arquivista Yves, o protagonista da história, decide armazenar dados ilegalmente em seu robô doméstico – que também carrega sua filha ainda não nascida. Com um argumento original, a obra de Bienvenu recebeu inúmeros prêmios na França e chega trazendo um debate fresco sobre o papel da privacidade e do manejo dos dados em nossa vida.
Um ficção científica das boas – daquelas que assustam pela proximidade que temos com o futuro retratado.
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12
Polina
Bastien Vivès
Nemo
Tradução de Fernando Scheibe
Polina Ulinov é dona de um talento ímpar: possui uma habilidade inata para a dança e por isso é treinada desde muito pequena, com rigor e técnica, por um temido e admirado treinador de balé.
Essa relação, porém, será bastante conturbada à medida em que a menina cresce e isso vai acabar gerando conflitos que acabarão por dividir os caminhos do professor e da pupila. Bastien Vivès, um dos nomes mais aclamados do quadrinho francês atualmente, constrói uma narrativa emocionante sobre liberdade e amadurecimento a partir da evolução de Polina, desde seus primeiros passos no balé, até sua consagração internacional.
Seu desenho aqui ganha um estilo ainda mais fluido, como se mimetizassem a atmosfera da dança clássica e seus movimentos.
11
Oleg
Frederik Peeters
Nemo
Tradução de Fernando Scheibe
Depois do sucesso de Pílulas Azuis, o autor austríaco Frederik Peeters volta a falar de si mesmo em um quadrinho, mas agora atendendo pelo nome de Oleg. Altamente autobiográfica, esta obra gira em torno do cotidiano do autor do título, um quadrinista que parece ter perdido a inspiração.
Com a vida entrando no automático, ele decide apontar seu olhar para o que a vida tem de mais importante: as pessoas próximas, os pequenos prazeres, o cotidiano. Com isso ele acaba se deparando com uma série de questões, ora prosaicas, ora existenciais, que dialogam com o seu fazer artístico.
Uma obra repleta de sutilezas, mas que ganha cada vez mais profundidade à medida em que nos deixamos absorver por sua narrativa. Um trabalho lindo sobre arte, empatia e amor.
10
Carniça e A Blindagem Mística Parte Dois – A Tutela do Oculto
Shiko
Independente
O paraibano Shiko sempre mostrou interesse em explorar o imaginário do Nordeste – mais precisamente do sertão – em sua obra. Mas faz isso com muita autenticidade e sem amarras estereotipadas comumente encontradas em narrativas que utilizam o território nordestino como cenário.
Em Carniça e a Blindagem Mística, o autor se vale de uma minuciosa pesquisa sobre o cangaço para compor uma trama repleta de ação, brutalidade e drama em pleno sertão alagoano no início dos anos 1920. O primeiro volume apresenta as personagens de maneira inusitada – são mulheres cangaceiras que refutam o destino da morte e passam a buscar vingança. Agora, neste segundo número, temos um contato ainda maior com o aspecto místico que permeia as histórias de cangaço.
O modo como Shiko conduz a trama é um primor de narrativa, uma aula de como manter olhos e corações atentos a cada passo dos personagens. As feições e os olhares no desenho ressoam com força, como se olhassem de volta ao leitor, a perguntar o porque de tanto medo. E tudo é permeado por uma obra em aquarela, com cores muito bem pensadas e com toques que dão o tom ideal para o impacto visual necessário em uma trama de muita beleza e violência.
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09
Pinturas de Guerra
Ángel de la Calle
Veneta
Tradução de Andrea Bruno
No primeiro capítulo de Pinturas de Guerra, de Ángel de la Calle, um convidado desavisado se desgarra por um momento de uma festa repleta de pintores, escritores e intelectuais em uma mansão chilena. Afastado do piso superior imerso em uma bolha privilegiada de isenção política e conversas sobre arte, ele acaba encontrando os porões de tortura da violenta ditadura de Pinochet. A cena é análoga ao que acontece no clássico Drácula, de Bram Stoker, mas a ojeriza de tamanho horror é indescritivelmente maior.
A HQ de De La Calle vai, dessa maneira, criando esses momentos de torpor para discutir de maneira primorosa as fronteiras entre arte, cultura e política. A história se desenrola a partir do alter-ego do autor, um jovem escritor que chega em Paris com a tentativa de escrever a história da atriz estadunidense Jean Seberg (1938-1979) e sua temporada na capital francesa.
A partir desse mote, o protagonista se depara diversos nomes das vanguardas literárias do século 20 e ativistas políticos em uma trama que aborda desde a luta pelos direitos civis às ditaduras sangrentas da América Latina. Um dos relatos gráficos mais impressionantes dos últimos tempos.
08
Confinada
Leandro Assis e Triscila Oliveira
Todavia
Um dos lançamentos brasileiros mais celebrados deste ano, Confinada reúne em livro as tiras publicadas no Instagram sobre o dia a dia de duas mulheres confinadas durante a pandemia do Covid-19. A primeira delas é Fran, uma socialite e influenciadora digital membra da elite carioca. A outra é Ju, empregada doméstica que trabalha com Fran e que é obrigada a viver no quartinho de empregada do enorme apartamento da patroa.
Na dinâmica entre as duas, a dupla de artistas Leandro Assis e Triscila Oliveira, escancara o racismo e a desigualdade social que ficou ainda mais evidente durante a pandemia. A HQ é um retrato sem filtro do que é vivenciado diariamente nesse ambiente elitizado e marcado por violência e segregação.
Com um humor afiadíssimo, a série revela as engrenagens racistas e classistas que remontam à escravidão e que insistem em se fazer presentes nos lares brasileiros. Uma obra histórica no quadrinho brasileiro pelo retrato preciso que faz da nossa sociedade hoje e pelo impacto que teve entre os leitores.
07
Depois Que o Brasil Acabou
João Pinheiro
Veneta
João Pinheiro, autor de Carolina (ao lado de Sirlene Barbosa), é um dos autores brasileiros contemporâneos mais celebrados, com prêmios no Brasil e exterior. Ele vem registrando em diferentes HQs e zines os tumultuosos anos do Brasil já há vários anos. Agora, a obra Depois Que O Brasil Acabou, reúne todos esses trabalhos e atualiza com as recentes convulsões de um país colapsado, imerso em ódio.
O golpe político de 2016, as manifestações de rua, a brutalidade policial, a desigualdade, o racismo e o classismo dão as caras nessa coletânea de histórias que trazem uma mistura ácida de paródia, crítica política e alguma dose de nonsense. Bastante atual, a obra faz uma foto do caos político em que estamos metidos e chega até os dias atuais, com a pandemia do coronavírus.
Produzindo em meio ao calor dos acontecimentos, o trabalho de Pinheiro tem a força-motriz da angústia mas a lucidez de refletir sobre os absurdos que nos cercam.
06
Manual do Minotauro
Laerte
Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras
Quando decidiu se reiventar e mudar radicalmente sua temática e proposta artística, a cartunista Laerte já tinha mais de trinta anos de carreira e era uma das mais celebradas profissionais da sua área. Esse giro 360 graus deu certo: sua obra alcançou novos públicos e foi bem recebida pelos fãs e leitores fieis, que embarcaram na aventura experimental da autora. Os quadrinhos abandonaram as gags cômicas, os personagens fixos (e até mesmo a lógica) e exploraram a filosofia, metafísica e a poesia.
Foi um veículo para a autora e suas questões existenciais, o que acabou gerando um dos mais incríveis trabalhos do quadrinho brasileiro recente. Manual do Minotauro registra em livro pela primeira vez essa evolução artística e reúne mais de 1500 tiras publicadas entre 2004 e 2015 na Folha de S. Paulo.
05
Stuck Rubber Baby – Quando Viemos Ao Mundo
Howard Cruse
Conrad
Tradução de Dandara Palankof
No bom momento que vive o mercado de quadrinhos no Brasil, vemos chegar aos poucos, clássicos que por décadas permaneceram inéditos por aqui. Então, eis que chegou a vez de Stuck Rubber Baby, um dos trabalhos mais importantes dos quadrinhos americanos de todos os tempos. Lançada originalmente em 1995 nos EUA, o quadrinho traz como destaque a arte incrivelmente detalhista de Cruse e temas como racismo e homossexualidade em uma narrativa pesada e dramática.
O álbum é conhecido pela complexidade no tratamento dos temas e também na ambientação dos anos 1960. A partir da história de Toland Polk, um gay enrustido que vive no Sul dos EUA, Cruse cria um panorama amplo sobre as questões políticas que fervilhavam durante o período. Ciente das injustiças sociais e envolvido na luta antiracista, Polk começa a confrontar a própria homofobia e se engaja na luta contra o preconceito.
A edição brasileira tem prefácio assinado por Alison Bechdel (de Fun Home e Você É A Minha Mãe?).
04
11:11
Jéssica Groke, Diego Sanchez, Felipe Portugal e Lalo
Independente
Em 11:11, antologia assinada por um quarteto de promissores novos quadrinistas brasileiros, o horror mais perturbador é aquele que se esconde por trás do grotesco, do susto mais óbvio. E é essa camada subterrânea, no subtexto, no mistério, que faz dessa obra um dos trabalhos mais fascinantes lançados este ano. É o ordinário, o cotidiano o que nos assusta.
Com isso, adentramos a uma outra camada, ainda mais profunda e subjetiva, que perpassa a leitura: o terror de viver nos dias atuais é maior do que qualquer narrativa sangrenta repleta de monstros. Cada história tem brilho próprio e se mantém fieis aos estilos de cada artistas, porém unidas na mesma proposta conceitual da antologia.
“Concreto”, de Jéssica Groke é um conto sobre morrer fazendo arte através de um pixador que se equilibra nos prédios e tem um encontro inesperado. “Uma Coisa Grande na Vida”, de Felipe Portugal, mostra um homem comum que responde com violência às pressões diárias de sua existência. Em “Saimento”, de Lalo, duas pessoas precisam lidar com a ausência de um ente querido (além de criar o mais bizarro rito fúnebre já visto). E por fim, “O Banquete”, de Diego Sanchez, fala do fetiche bizarro do canibalismo.
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03
Rusty Brown
Chris Ware
Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras
Tradução de Caetano W. Galindo
Os livros de Chris Ware são verdadeiros testamentos do quadrinho enquanto expressão artística refinada, livre, complexa. Mas também são objetos, no sentido físico da palavra, repletos de imaginação espacial e, por isso mesmo, bastante envolventes.
O formato da HQ acaba se adequando à narrativa, ao modo de contar a história. Rusty Brown vai nessa pegada. Aqui temos quatro histórias interligadas. Na primeira, tudo se passa num único dia, numa escola no Nebraska, nos EUA dos anos 1970. O livro dá um salto ao passado na segunda história ao abordar a vida de Woody Brown, que lida com o início de sua carreira como escritor de ficção científica e tem que lidar com uma relação amorosa complicada. Na terceira parte, o valentão Jordan Lint (terror de Rusty, da primeira história) ganha os holofotes e tem sua vida contada, no nascimento à morte. E por fim, o quarto eixo da obra, aborda a vida de Joanne Cole, uma professora negra em uma escola quase totalmente branca.
Além da precisão em interligar essas histórias, Ware se destaca ainda pelo traço meticuloso, pelo uso inventivo no design das páginas e pela construção dos personagens, o que cria uma conexão instantânea com o leitor/ora. Um poderoso documento sobre empatia e preconceito em uma trama divertida e bem-humorada.
02
Pele de Homem
Hubert e Zanzim
Nemo
Tradução de Renata Silveira
Na Itália renascentista, a jovem e bela Bianca casa-se com um homem escolhido por seus pais sem nem mesmo conhecer previamente o noivo. Antes da cerimônia, porém, lhe é revelado o segredo guardado por várias gerações de mulheres em sua família: ela poderá experimentar uma “pele de homem”.
Ao vestir a pele, Bianca torna-se Lorenzo e passa a desfrutar de todos os privilégios de um jovem e belo rapaz. O que ela não contava é que seu marido iria se apaixonar pelo seu disfarce. A obra dos franceses Hubert e Zanzim questiona as questões de gênero e sexualidade, bem como a moralidade que sustenta o machismo na sociedade em uma trama repleta de aventura e romance. Apesar de retratar o pensamento da Renascença, não é difícil fazer contrapontos aos dias atuais.
O livro ainda aborda em sua trama temas como fanatismo religioso e política. O dinamismo da narrativa misturado ao traço fino e fluido fazem dessa leitura algo viciante.
01
Escuta, Formosa Márcia
Marcello Quintanilha
Veneta
Um dos quadrinistas brasileiros mais aclamados no Brasil e no exterior, Marcelo Quintanilha construiu sua carreira em narrar o cotidiano de diferentes realidades brasileiras. Em Escuta, Formosa Márcia, seu olhar se volta para o cotidiano de Márcia, uma enfermeira moradora de uma favela carioca que se desdobra para disciplinar sua filha Jaqueline.
A dificuldade em manter uma boa relação com a garota, que passa a ser recrutada pela rede do crime organizado, é o que movimenta a trama da HQ. Quintanilha segue com o seu estilo muito calcado no realismo, mas seu traço abandona um pouco o tom documental de trabalhos como Tungstênio (2014) e Luzes de Niterói (2018) para adentrar um estilo mais solto onde a explosão de cores dá conta do caos presente no cotidiano da protagonista. Quase não há traços e contornos em todo o desenho.
A trama segue a jornada intensa de Márcia e tem diferentes movimentos, com muitas idas e vindas e boas saídas narrativas. É uma história que prende o leitor do início ao fim num único suspiro. E o talento do autor para diálogos segue afiadíssimo: ao final da leitura, a impressão é que já somos íntima de Márcia.
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