Por Joey Ayoub
Do Global Voices, no Líbano
Participei da campanha solidária pela hashtag #JeSuisCharlie em ainda apoio as tentativas, de todos, em destacar a importância da liberdade de expressão.
Nunca fui muito interessado na Charlie Hebdo, mas o direito de publicar o que quiser é indiscutível para mim. Se algo te chateia, escreva sobre, “reclame”, faça algo – este é seu direito. Não me importa se pensam que desenhar o Messias ou um Profeta (as maiúsculas são intencionais) é ofensivo. Estar ofendido não é um direito, é sua escolha.
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Além do terrível ataque, o que mais me incomodou foram as milhares pessoas perguntando, “Por que os muçulmanos não estão condenando isto? A resposta é que eles estão fazendo, mas provavelmente você simplesmente está ignorando. Os muçulmanos, como quase todos os demais – exceto neonazistas que aprovam -, têm condenado o terrorismo desde o primeiro dia, que para a maioria dos ocidentais parece que foi em 11 de setembro de 2001.
Como é ser um muçulmano relevante? Se você fosse um muçulmano, eu entenderia a necessidade de fazê-lo tendo em conta o ambiente em que está vivendo. Cada vez que um muçulmano peida em algum lugar no Ocidente, tem que haver um certo número de “irmãos muçulmanos”, de preferência no Ocidente e Oriente Médio que os condene, um cenário exclusivo para os muçulmanos, e não cristãos ou judeus. Como “nós” podemos nos conectar ao “Mundo Muçulmano”? Por que o “Mundo Muçulmano” não é mais tolerante? Basta olhar para estas questões, como estão redigidas.
Por favor, pare.
Não existe algo chamado mundo muçulmano, da mesma maneira em que não existe algo chamado de mundo cristão ou judeu ou budista. Existem inúmeras comunidades muçulmanas no mundo, com semelhanças, como seres humanos, como parte da mesma religião, mas com muitas diferenças nacionais, culturais e individuais. Existe o Islã australiano, o francês, o saudita e o malásio. Inclusive, existe um Islã chinês (acredita?) – É engraçado: Aladim era muçulmano chinês. Qual tipo de discussão teria um turco sufi com um wahhabi saudita e com um iraniano imami? Precisa em primeiro lugar de um intérprete para traduzir e posso assegurar que eu, um ateu, teria mais a falar com o sufi e o imami que o sufi e o imami teria para falar com o wahhabi, ou inclusive entre si. De fato, tenho a sensação de que o wahhabismo saudita, que está localizado no reino petroleiro favorito do Ocidente, é a ideologia mais detestada da história islâmica. Onde estão os debates sobre isso? É o wahhabismo uma ameaça para a civilização?
Devo pedir desculpas pelo apoio ao terrorismo de estado de companheiros ateus como Sam Harris e Christopher Hitchens? Me perguntam os teístas, “Por que não estão condenando-os!”? Quantos cristãos necessitam pedir perdão pelo terrorismo do exército de resistência do Senhor em Uganda “em nome da Cristandade”? Quantos cristianistas devem desculpar-se pelo tiroteio ao tempo sikh em Wisconsin (o terrorista pensou que eram muçulmanos)? Por que os cristãos obtém sua “política não é religião”, mas os muçulmanos não?
Netanyahu se excita cada vez que o terrorismo golpeia o Ocidente – ele sabe usar estes incidentes como hasbara (diplomacia pública) – e começa seus discursos com “nós, como judeus” cada vez que declara que as crianças de Gaza vão ser massacradas. Mais de 500 crianças foram assassinadas em Gaza em 50 dias no verão passado – que ele chamou de “fazer barulho“. Se Bin Laden chamasse o 11 de setembro de “fazer barulho” ele se safaria? Mando mensagens aos meus amigos judeus norte-americanos cada vez que este Neonazista por excelência pronuncia um discurso racista (que resultam ser todos seus discursos)? Mando uma mensagem a um ugandês que conheci em minhas viagens e o peço por favor para falar em nome do cristianismo ugandês?
Breivik killed 77 in Norway & no-one asked me as a white male of Nordic Christian background if I felt the need to condemn it. #CharlieHebdo
— Christian Christensen (@ChrChristensen) January 7, 2015
(Tradução: Breivik matou 77 pessoas na Noruega e ninguém me perguntou como um homem branco de origem cristã nórdica se sentia na necessidade de condená-lo)
É absurdo. É uma punição coletiva, se não um bullying coletivo feito a 1.6 bilhão de pessoas que aderiram a religião muçulmana. Isto é muita gente, independente da turma do #KillAllMuslims (Mate todos os muçulmanos) queira ou não aceitar (nota: uma enorme quantidade deles parece ser norte americanos, não europeus). Por que temos debates com o título “O Islã é uma religião de paz?” – debates que inclusive não necessariamente incluem os muçulmanos. Que tipo de pergunta é esta? E você já não as tem respondido? O único denominador comum em tal debate não é o próprio Islã, mas o ódio pelos muçulmanos.
https://www.youtube.com/watch?v=PzusSqcotDw
E qualquer discussão que inclua alguma difamação a esta antiga, heterogênea, não desprovida de história, religião, é insensata. Pense no quanto ofensivo deve ser ouvir que a frase “muçulmanos moderados” descreve a quase todos os muçulmanos no mundo como se fossem uma minoria em um mar de loucura. Imagine, por um momento, como deve se sentir um muçulmano no Ocidente depois do 11 de setembro.
Recordo o dia em que esse lixo conhecido como Anders Behring Breivik assassinou 77 pessoas em 22 de julho de 2011. Eu acabava de aterrissar em Madagascar por um projeto e conheci Eirik, um norueguês de Bergen. Não houve nenhuma conversa sobre os perigos do cristianismo norueguês – Breivik é cristão – para a civilização. Nós compreendemos o que era: terrorismo, puro e simples, com a sua completa lógica interna. Um crime de proporções indescritíveis que não requerem uma convicção especial dos “cristãos moderados” – não pedimos a nosso amigo “cristão moderado” do Quênia que se desculpe! Você leu o “manifesto” de Breivik? Eu fiz (infelizmente) e é uma bagunça de sionismo de extrema direita, islamofobia e anti-marxismo, não “Cristianismo”. A Europa estava sendo invadida pelo Islã! Quantos europeus acreditam hoje neste psicopata em seus corações? Apenas revise qualquer um dos vídeos no YouTube que se refere remotamente ao Islã e vai ver a classe de comentários que tratam dos muçulmanos. Oh, mas é fácil esquecer de Breivik! Dos muçulmanos, nem tanto. Eles precisam ser lembrados cada dia que alguém se chama muçulmano e faz coisas em nome do Islã. Graças a Deus não me associam com ateus loucos, porque isto nunca acabaria.
Somente para deixar as coisas claras. Esta não é uma defesa do Islã, tampouco é uma crítica ao Islã. Ambos tratam de conceitos vagos que são descontextualizados e privados de todo significado. Palavras como “terror” e “tolerância” somente significam algo quando o “outro” está sendo descrito, não quando falamos sobre “nós”. Qual Islã deveria estar defendendo ou atacando? O Islã de quem? O Islã do século XXI? O Islã da Europa? Da França? Da Arábia Saudita? Do Egito? Da Turquia? Da Malásia? Da China? Da Austrália? O Islã de Tarig Ramadan? Mehdi Hassan? Abdul-Aziz idn Abdullah Al Ashi-Sheikh? Rhami Yaran? Podemos colocar em uma categoria? Podemos colocar 1,6 bilhões de pessoas em uma categoria? Não tenho a menor ideia de como fazer, e todavia tenho que ler algum artigo em que alguém tenha feito. O Islã existe em uma sociedade, com seu próprio contexto, em seu próprio tempo, com seus próprios detratores e defensores.
Esta é uma crítica a um jogo muito perigoso que somente beneficia aqueles muito ricos que são imunes às repercussões de ódio irracional. É o médio vendedor de comida que será atacado, não o Grande Muftí saudita – este último pode fazer o que bem entender (repitam comigo: petróleo!). É o pobre imigrante muçulmano da Tunísia que será castigado, não o rico “investidor” muçulmano do Catar. Este é um muito, mas muito perigoso – não posso enfatizar o suficiente – jogo de distinguir entre nós e eles que nunca termina bem, que é exatamente o que querem os neonazistas. Como um comentarista francês não-muçulmano, sentando ao lado de um Mufti muçulmano local, disse na TV francesa, alguns dias atrás: “este não é somente um atentado, é uma armadilha.” E não caiamos na armadilha. Este foi um atentado terrorista, ponto. Condenamos os culpados, peçamos explicações a eles e peçamos a eles que peçam perdão.
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* Joey Ayoub cobre Palestina, Líbado e Oriente Médio para Global Voices e dirige o blog HummusForThought, onde este post foi originalmente publicado. Tradução de Moises Mota.
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