O Menino e a Garça
Hayao Miyazaki
The Boy and the Heron, Japão, 2023. 2h04. Distribuição: Sato Company
O retorno de Hayao Miyazaki em um novo projeto pelo Studio Ghibli vem sendo um dos eventos mais aguardados no mundo do cinema nos últimos anos. Afinal, é incontestável o talento do diretor japonês, uma lenda viva do cinema de animação, para criar universos fantásticos e ricamente povoados que se associam a histórias repletas de simbologia e sensibilidade.
Obra que chega para pôr fim a uma espera que durou cerca de dez anos, O Menino e A Garça não apenas encerra a aposentadoria do cineasta, mas surge como sua produção mais íntima e pessoal até o momento. Uma fantasia carregada pelo peso da saudade, que revisita temas já trabalhados em produções passadas (embora diferente de tudo o que o diretor já produziu) e ressoa intensamente aspectos da vida do seu criador.
Favorito a levar o Oscar de Melhor Animação, o filme, que nesta temporada já conquistou o BAFTA e o Globo de Ouro, estreia esta quinta-feira (22) nos cinemas de todo o país. O lançamento, aliás, acontece sem alarde, dada a decisão do próprio diretor em não investir na divulgação pesada com diversos trailers e materiais promocionais, uma escolha assertiva, que sugere um desejo de levar seu público às salas para refletir individualmente sobre importantes questões existenciais.
Em japonês, Kimitachi wa Dō Ikiru ka, o título original do filme pode ser traduzido como uma pergunta, “Como você vive?”, o que nada tem a ver com o nome que chega aos espectadores brasileiros. Isso acontece porque a obra é inspirada no romance homônimo de 1937, escrito por Genzaburō Yoshino, livro que marcou a infância de Miyazaki – ou seja, um projeto que, desde a sua concepção, remete às raízes do diretor.
Contudo, não se trata de uma mera adaptação, mas o contrário. Assinado por Miyazaki, o roteiro é uma história original, sobre a qual o cineasta deposita energia e liberdade criativas suficientes para abrir seu coração e traçar um registro semiautobiográfico com reflexões poderosas sobre legado e luto.
Ambientado no Japão de 1943, durante a Segunda Guerra, o filme tem como protagonista Mahito Maki, um menino de 12 anos que perde sua mãe, após o hospital em que ela estava internada, em Tóquio, ser bombardeado. Algum tempo após a tragédia, o garoto é forçado a se mudar da capital para o campo, onde seu pai, dono de uma fábrica de aviões de combate (assim como o próprio pai do diretor), recomeça a vida ao lado de Natsuko, sua nova madrasta, também irmã mais nova da sua mãe.
Enquanto se ambienta ao novo lar, o menino conhece uma misteriosa garça-real falante, que o guia até uma antiga torre, onde um portal para um outro universo se abre. É a partir deste ponto que o tom do longa muda e seu ritmo acelera. Se a primeira metade traz uma perspectiva que privilegia a contemplação e a quietude, cuja atmosfera bucólica lembra a simplicidade de Meu Amigo Totoro (1988), a segunda parte, em que o garoto é catapultado para um mundo inteiramente novo e repleto de criaturas peculiares, se transforma em uma aventura épica e deslumbrante, que remete a títulos como A Viagem de Chihiro (2001) e O Castelo Animado (2004).
A partir de então, o co-fundador do Studio Ghibli, que também perdeu a mãe ainda criança, mas para a tuberculose, delineia uma jornada de amadurecimento e de descoberta no mundo a partir de Mahito. A abordagem ecoa a herança de outras obras como O Serviço de Entregas da Kiki (1989) e até mesmo o já citado A Viagem de Chihiro, mas, desta vez, são a dor do luto e a busca pela figura materna que guiam esse rito de passagem.
Em meio ao novo e inexplorado universo, Mahito conhece uma corajosa pescadora, uma garota que domina poderes com o fogo e um bruxo misterioso, mas também encontra criaturas peculiares como periquitos gigantes, pequenos seres flutuantes chamados de Warawara e até a própria garça. Através de alegorias extravagantes, Miyazaki demonstra uma habilidade impressionante para se renovar narrativa e visualmente neste que chega como o universo mais vasto da sua produção – embora a imensidão evocada deixe a impressão de que a imaginação ilimitada do diretor se agiganta, na verdade, em ambientes mais contidos.
De toda forma, a impressão final de que O Menino e A Garça é mais uma obra-prima do cineasta japonês. Profuso em sentidos e interpretações, o longa escava as memórias e o passado do seu criador e, simultaneamente, levanta questões sobre o futuro do estúdio que ele ajudou a fundar. Uma joia para os mais aficionados pela vida e obra de Hayao Miyazaki, que agora, aos 83 anos, após dezenas de filmes, parece nos dizer que nenhum universo imaginário se compara ao que, de fato, vivemos.
Leia mais críticas
- “Wicked”: adaptação do musical da Broadway é tímida, mas deve agradar fãs de Ariana Grande
- “Herege”: com boa premissa, novo suspense da A24 se perde em soluções inconvincentes
- “Gladiador 2” é ambicioso ao explorar os dilemas de uma Roma decadente
- Um “Seu Cavalcanti” para chamar de seu
- “Ainda Estou Aqui”: tomografia de uma família flagelada pela ditadura