Foi lendo uma matéria de jornal, que o pernambucano Marcelo Gomes teve inspiração para o enredo do longa Paloma. A jornada de uma mulher trans sonhadora pelo casamento na igreja católica de véu e grinalda, presente em um periódico e agora nos cinemas, prova que pessoas transsexuais são realidade fora da ficção e suas histórias de vida também podem ser reais no audiovisual.
Protagonizado pela arte-educadora, diretora teatral, poeta e performer, Kika Sena, o filme acompanha a personagem homônima, uma agricultora do sertão Pernambucano, junto a seu namorado (Ridson Reis) e sua filha (Anita de Souza Macedo). O enredo gira em torno do desejo de Paloma em realizar o matrimônio religioso, enquanto as condições de seu entorno, uma cidade conservadora, com um padre que se recusa a ministrar a cerimônia, lhe impedem disso. Nesta trajetória, o desafio de quebrar preconceitos e conquistar seus objetivos é o fio condutor.
Antes mesmo de entrar em circuito nacional, no dia 10 de novembro, a obra passou pelo Festival do Rio de 2022, levando consigo os prêmios de Melhor Longa da mostra competitiva da Première Brasil, Melhor Atriz para Kika Sena, a primeira travesti a receber este troféu no festival, além do Prêmio Félix, concedido a obras com temáticas LGBTQIA+. Os destaques a produção e a uma profissional trans em um dos maiores festivais de cinema do Brasil, são motivos de comemoração, mas também, é importante perceber que isto vem após um caminho árduo e cheio de tropeços. O retrato de corpos transgênero ao longo da história revelam características da produção cinematográfica.
“Essa representação do corpo trans é fundamental, porque se a gente for observar na história do audiovisual é um processo lento. Lento e sofrido”, comenta Alexandre Figueirôa, crítico de cinema pernambucano e editor-executivo da Revista O Grito!. Muito centralizada nos grandes diretores de Hollywood, que praticamente ditaram a forma de fazer filmes para o mundo todo, a discussão desta lentidão pode ser embasada no domínio do homem hétero na indústria. Os enredos de grande parte da filmografia de Marilyn Monroe, por exemplo, refletem o desejo e as ambições masculinas e machistas sobre a mulher e o mundo. Não é surpresa que tal dominação deste perfil heteronormativo seja carregada de LGBTfobia.
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Ao relembrar a representação de personagens LGBTQIA+ nos produtos audiovisuais, Alexandre pontua encenações feitas de forma pejorativa, caricatas, sofridas e que findavam em punição. “Na medida que os movimentos de libertação vão se consolidando, vão avançando, a gente vai vendo então, uma mudança da representação do gay e da lésbica, as orientações inicialmente mais clássicas de representação no cinema”, complementa o crítico.
Ainda que os movimentos sociais tenham sido extremamente importantes para transformar a visão do cinema, a retratação de narrativas trans seguiu desprezada. “Essas outras formas de manifestação de ser, sobretudo, as trans, ficaram muito alijadas. Mesmo se a gente pensar e lembrar no movimento gay, em determinado momento, no Stonewall (1969), era todo mundo, eram as travestis, as trans, as bixas, as lésbicas, todas lutando contra a polícia. Mas quando os movimentos se consolidam, essas pessoas ficaram meio desamparadas, inclusive por um preconceito interno. Essa representação sempre foi marginalizada”, conta Alexandre Figueirôa.
In A Year With 13 Moons (1978), Os Meninos Não Choram (1999), Hedwig and The Angry Inch (2001), o mais atual Garota Dinamarquesa (2015), ou até mesmo o mais conhecido pelo Brasil, Carandiru (2003), com a Lady Di, são exemplos de filmes que ou trazem protagonismo ou incorporam personagens trans ao roteiro. O que todos os relacionados têm em comum, é uma problemática de representação, o transfake. O termo é empregado quando acontece de um ator ou atriz cis gênero interpretar o papel de uma pessoa trans.
“Quando o tema volta, vem a tona e começam a surgir narrativas, histórias com essas personagens, recorre-se exatamente a atores e atrizes que não são necessariamente corpos trans”, contribui Alexandre Figueirôa.
“Não concordo com o transfake, porque quando um ator ou atriz trans interpreta um personagem trans no audiovisual, a gente normaliza e naturaliza aquela identidade”, declara Anne Motta, atriz e influencer pernambucana. “Quando é um ator ou atriz cis interpretando esses papéis, principalmente no caso de mulheres trans e travestis, é como se nós fossemos um gay afeminado, ou um homem vestido de mulher, o que nós não somos”, ela complementa.
Anne é a protagonista do longa Alice Júnior (2019), dirigido por Gil Barone, que acompanha a jornada de uma adolescente transexual que se muda de sua cidade natal, assim enfrentando todos os desafios com o bullying, a transfobia no novo ambiente escolar e até mesmo suas descobertas pessoais no amor. O longa retrata o afeto familiar e é uma boa escolha para assistir em família pela leveza e aprendizados a serem passados. Em 2019, Alice Júnior venceu no Festival Mix Brasil como Melhor Longa-Metragem Nacional pelo Júri Popular e rendeu a estatueta de Melhor Interpretação para Anne Mota.
A indignação da atriz com o transfake dialoga também sobre questões de oportunidades para a população transexual. “Precisamos de atores e atrizes trans interpretando personagens trans, para além de naturalizar a nossa identidade, gerar emprego, para termos oportunidades”, protesta. “É uma reinvidicação muito mais que justa, até porque ainda tem poucos filmes em que as travestis e mulheres trans assumem papéis que dizem respeito ao lugar de fala delas”, conta Alexandre Figueirôa. “Eu acho que essa evolução deve ir ainda mais adiante quando não seja importante se a atriz é transgênero, ela é atriz. E se é uma boa atriz, ela tanto pode, dentro de uma encenação, representar a personagem trans quanto outros papeís”, completa.
Com Alice Júnior, Anne Mota teve sua primeira experiência com o cinema e guarda os significados de produções como essas que destacam corpos como o seu. “O impacto é muito grande, porque a pessoa trans se reconhece ali naquele papel. Ela vê sua vida, sua realidade. A audiência não é composta só por pessoas cis gêneras, a gente precisa se sentir representada, vista, reconhecida”, conta. Sobre as pretensões da indústria cinematográfica e a escassez de obras que trazem este protagonismo, Anne opina: “Falta interesse”.
“Falta interesse dos produtores do audiovisual em investir em narrativas de pessoas e corpos trans. Não faz sentido para as pessoas cis gêneras contar nossa história. É por isso que precisamos cada vez mais de pessoas como nós no backstage”, pontua a atriz. “Hoje essa luta é muito importante por trás das câmeras, com diretoras e diretores que vivenciem isso e que possam falar da realidade que estão inseridos. Devemos fortalecer e contribuir para que esse espaço seja conquistado”, complementa Alexandre Figueirôa.
Para Anne e Alexandre, ainda que lenta, existe uma evolução desta retratação no audiovisual. Alice Júnior e Paloma são representantes disso. Dois filmes que trazem no título os nomes de personagens trans vividas por pessoas trans. Obras assim são de muito valor, principalmente sendo produzidas e exibidas no Brasil, país que segundo o ANTRA 2022, permanece liderando o ranking de assassinatos da população transexual no mundo. O corpo trans no cinema acarreta mudanças produtivas e assim como toda obra audiovisual carrega responsabilidades sociais. Produtos que valorizem, destaquem e higienizem a visão dessas vidas, contribuem para uma evolução cinematográfica e certamente, social.