Não Fale o Mal
James Watkins
EUA, 2024. 1h50. Terror/Suspense. Distribuição: Universal
Com James McAvoy, Mackenzie Davis e Scoot McNairy
Recordo-me do impacto ao assistir Não Fale o Mal (2022), de Christian Tafdrup, pela primeira vez. Intensa crítica às relações sociais excessivamente moldadas por uma cordialidade opressiva (e a subsequente incapacidade de dizer não), o filme dinamarquês engendra uma narrativa tão angustiante, acentuada pelo refinamento estético do diretor, que algumas de suas cenas figuram, ao meu ver, entre as mais desconcertantes dos últimos anos. Portanto, impossível não comparar e se frustrar com o resultado pífio do remake comandado por James Watkins, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (12).
Com apenas dois anos de intervalo entre o lançamento da obra original e o de sua versão hollywoodiana, a nova aposta da produtora Blumhouse escalou fortes nomes para compor o elenco de Não Fale o Mal (2024): James McAvoy, Mackenzie Davis, Aisling Franciosi e Scoot McNairy interpretam os casais que se conhecem durante as férias de verão na Itália. Até determinado ponto da narrativa, a versão segue a mesma linha de acontecimentos do filme original: o casal Paddy (McAvoy) e Chiara (Franciosi) convidam os novos colegas para os visitarem em sua casa de campo. A proposta de um fim de semana tranquilo se torna, pouco a pouco, um pesadelo interminável.
Esta crítica, adianto aos leitores, irá pontuar passagens dos filmes em questão ao longo de sua análise. Para quem não viu a obra original e não deseja qualquer detalhe do novo filme, reforço que haverá spoilers ao longo do texto.
Parece-me fundamental propor uma observação comparativa entre as duas produções, a fim de argumentar o porquê de eu considerar o novo Não Fale o Mal tão leviano em suas escolhas temáticas e narrativas. Enquanto a obra dinamarquesa impregna-se de elementos que nos remetem ao cinema áspero e frio de Michael Haneke, aproximando-se também do cinismo de Ruben Östlund e Yorgos Lanthimos, o filme de James Watkins revela-se mais um terrorzinho made in USA sem qualquer esforço autoral por parte do seu realizador.
No filme de 2022, o foco narrativo no personagem do pai (que se torna vítima do sádico casal) é imprescindível para a solidificação da proposta do filme. Lentamente, a trama nos mostra como aquele homem é solitário (mesmo casado e entre amigos), inseguro e emotivo. Suas decisões, por mais que irritem o espectador, são totalmente justificadas; já no novo filme, o diretor descarta esse aprofundamento no personagem masculino para optar por uma crise no casal – provocada por um “affair digital” que a esposa teve com um professor da escola da filha (inclusive, com troca de nudes). James Watkins traz novas ideias ao roteiro e, perdoem-me a severidade, faz uma cagada atrás da outra na tentativa de “suavizar” a história (talvez na intenção de torná-la mais palatável para um maior público, especialmente estadunidense).
Cena após cena, Não Fale o Mal (2024) afasta-se da aura sombria do filme original, despencando vertiginosamente em um terreno frouxo, desprovido de vigor e eficiência. O filme abraça clichês estultos que sequer servem como referência ao cinema de gênero: o que dizer da cena onde o pai dirige o carro, se distrai no volante e, quando volta a si, um caminhão está vindo na direção contrária? Sem qualquer escrúpulo, James Watkins também tem a pachorra de repetir a batidíssima cena onde personagens estão escondidos no guarda-roupa, o vilão vai em busca deles e, na hora que abre a porta, eles não estão lá, mas sim em outro móvel. Vergonhoso, para dizer o mínimo.
A língua é um símbolo crucial no filme de 2022. Uma das coisas mais interessantes no filme original é o fato de os personagens falarem línguas distintas (dinamarquês e holandês), utilizando o inglês como ponto de encontro e suas línguas maternas em momentos de intimidade entre os seus. Isso reforça a ideia de incompreensão em muitos momentos, fator impossível de acontecer na obra hollywoodiana, totalmente falada em inglês. E por falar em língua, a memorável cena da produção dinamarquesa que envolve uma língua decepada não acontece na versão dos EUA. O desfecho deste novo filme é pudico, bem limpinho, com impacto dramático zero.
Não Fale o Mal (2024), infelizmente, é mais uma amostra de como o afã dos estúdios em monetizar a partir de remakes subjuga potencialidades criativas. Essa lógica industrial continuará a entregar ao público filmes-produtos tão vazios quanto esquecíveis. Jamais direi ao leitor para não assistir este ou aquele filme. Mas aqui, faço a sugestão: se quer assistir Não Fale o Mal, veja o de 2022, dirigido por Christian Tafdrup. É cinema em outro nível.
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