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Foto: Divulgação.

Crítica: Triângulo da Tristeza e o barco da podridão

Absurdo e escatologia são as armas do cineasta sueco Ruben Östlund para tirar onda com vida de bilionários

Crítica: Triângulo da Tristeza e o barco da podridão
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Um iate de luxo em um cruzeiro com bilionários é o palco escolhido pelo produtor e diretor sueco Ruben Östlund para, em imagens e palavras, propor uma crítica política, econômica e social do mundo moderno. O filme Triângulo da Tristeza (Triangle of Sadness, 2022) tenta, em quase duas horas e meia, por meio de um humor ácido e provocador, despertar nos espectadores uma reflexão sobre temas tão amplos quanto luta de classes, questões de gênero e o comportamento hipócrita com o qual, em maior ou menor escala, todos nós convivemos e praticamos. A julgar pela premiação de Melhor filme no Festival de Cannes, em 2022, e as três indicações ao Oscar 2023 (Melhor Filme, Direção e Roteiro Original), a empreitada de Östlund funcionou, mesmo com alguns críticos acusando-a de rasa e pouco original.

O cineasta sueco já mostrou em trabalhos anteriores o seu domínio em expor com habilidade temas espinhosos. O drama Força Maior, de 2014, analisando de forma perspicaz a masculinidade frágil de um pai de família, e o também ganhador da Palma de Ouro The Square: a Arte da Discórdia, de 2017, uma sátira sobre a arte contemporânea e o politicamente correto, apontam para um realizador que sabe usar a narrativa cinematográfica para dirigir o nosso olhar para as contradições e as inquietações delas resultantes presentes no cotidiano de qualquer cidadão regido pelas regras e padrões da sociedade capitalista globalizada. 

Embora Östlund até pareça um idealista ao apontar e criticar as falhas desse sistema – algo que transparece com clareza nesse seu novo trabalho –, logo percebemos ser ele, apenas uma criatura com algum juízo e o mínimo de caráter, um artista capaz de fazer de suas obras um lugar para revelar sua perplexidade sobre o que está posto e indagar sobre o porvir. E Triângulo da Tristeza expressa de forma clara e direta esse estado de coisas. Dividido em um prólogo e três capítulos, ele conta a história de um casal de modelos, cujo status de celebridade, os coloca em um navio que acaba naufragando, levando-os a uma ilha com alguns poucos sobreviventes. 

Já nas primeiras imagens o sarcasmo inunda a tela quando um repórter invade os bastidores de um desfile de moda e faz perguntas desconcertantes aos rapazes que estão se arrumando para entrar na passarela. E ele se prolonga na apresentação dos protagonistas, os modelos Carl (o ator inglês Harris Dickinson) e Yaya (a sul-africana Charlbi Dean, que morreu no ano passado, aos 32, sem ver o filme estrear). Os dois, por causa do pagamento de uma conta de restaurante, iniciam uma discussão de foro íntimo, mas fundamental para engatilhar com o que vem a seguir quando eles vão parar em um cruzeiro de luxo. 

Saem, então, de sua bolha de aparências frívolas, para uma bolha bem mais complexa. Lá, eles se deparam com uma penca de gente rica que acha que pode fazer o que quer, servidos por um contingente de empregados comandados por uma gerente despótica.

Claro que os ricos são brancos. A gerente é uma loira com pose de militar e os subalternos, em sua maioria, são imigrantes asiáticos, negros e brancos pobres. Neste iate, uma espécie de mini-Titanic com o seu andar de cima e o andar de baixo, é onde acontecem dois momentos emblemáticos orquestrados por Östlund. O primeiro é um debate entre o comandante do navio, um marxista americano (Woody Harrelson), e um dos bilionários, um capitalista russo e obviamente anticomunista (interpretado por Zlatko Buric). Ambos, em alto estado de embriaguez, ficam pinçando frases de políticos e ideólogos para justificarem suas escolhas. O segundo é um trecho engraçadíssimo, embora um pouco longo, quando o navio enfrenta uma tempestade justo na hora de um jantar de gala, transformando uma refeição requintada numa escatológica sequência de enjoos e vômitos. 

Mas é na terceira parte do filme, quando a ação se desloca para uma ilha aparentemente deserta, onde Östlund capricha na ironia a partir de uma inversão inesperada dos papéis dos personagens. É também a sequência em que a fábula se mostra com mais força e a direção estabelece uma série de afirmações e indagações, como se respondesse às ilações feitas no decorrer da história. Neste trecho o destaque fica por conta da personagem Abigail, uma das funcionárias do navio, vivida magistralmente pela atriz filipina Dolly De Leon, cujas decisões e ações que toma retratam de forma figurada o enfrentamento diário de qualquer trabalhador em luta pela sobrevivência.

Triângulo da Tristeza, atualmente em cartaz nos cinemas do Recife e disponível na Prime Vídeo, pode não ser uma obra-prima. Por vezes apela para clichês, tem personagens estereotipados e algumas premissas levantadas que poderiam render uma imersão mais profunda na narrativa, viram apenas piadinhas ocasionais. É, todavia, uma obra que merece ser vista. Diverte por sua articulação entre o real e o absurdo, tem boas interpretações e, apesar de seu viés de entretenimento cult, provoca incômodo e toca em feridas sociais as quais muita gente costuma ignorar.