A cidade tem Graceland, templo de culto a Elvis, mas também é local para relembrar luta por direitos civis e ícones da cultura soul
Da Revista O Grito!, em Memphis
A cidade de Memphis, no Tennessee, é conhecida por sua história musical. Um dos berços do blues, da soul music e do rock, ela tem seu nome sempre lembrado por conta de ter sido também o lugar onde Elvis Presley começou sua carreira. Ele nasceu em Tupelo, no estado vizinho do Mississipi, mas fixou residência em Memphis, onde morou até sua morte em 1977. A casa onde vivia com a família, conhecida como Graceland, virou ponto de peregrinação dos seus fãs e hoje é a principal atração do gigantesco parque que foi construído para abrigar as roupas, os carros, os discos de ouro e outras recordações do “Rei do Rock”.
Leia Mais: Diário dos EUA
David Hockney e a arte nos limites da razão
O lugar do gênero na arte contemporânea
Memphis, todavia, é muito mais do que o culto a Elvis. Percorrendo as ruas da cidade e visitando seus clubes e museus vamos encontrar traços de uma história muito mais emocionante que teve início nos anos do pós-guerra e atingiu seu auge nos anos 1950/1960 quando a cidade se tornou um centro de produção musical capitaneado por pequenas gravadoras e estúdios que mudaram os rumos da música americana. O legado desse período com músicos como B. B. King, Rufus Thomas, Ike Turner, Otis Reading, Johnny Cash, Jerry Lee Lewis e o próprio Elvis é fascinante e, apesar, dessa história hoje estar majoritariamente confinada nos museus, na memória dos que viveram a época e nos músicos que ainda tentam manter acesas essas lembranças, entrar em contato com esse ambiente ainda é capaz de sensibilizar o visitante.
O estados do sudeste estadunidense são fortemente marcados pelas questões sociais, políticas e econômicas envolvendo a população de origem africana. A escravidão, as lutas contra o racismo e a segregação, e os movimentos pela conquista de direitos iguais ao da população de origem europeia e anglo-saxônica sempre esteve presente no cotidiano da região. Nesse sentido, Memphis ganhou um sentido especial na saga dos afrodescendentes por ser a cidade onde Martin Luther King Jr. foi assassinado em 04 de abril de 1968. O hotel onde ocorreu o crime hoje abriga o Museu Nacional pelos Direitos Civis e é totalmente voltado aos principais acontecimentos dessas lutas.
E esse passado não poderia estar ausente da produção artística e musical da cidade, sobretudo quando constatamos que a música foi um dos elementos que contribuíram com o rompimento de algumas das barreiras existentes entre negros e brancos. Ela começou ainda nos meados dos anos 1940 quando os subúrbios de Memphis eram compartilhados por trabalhadores que, independente de suas origens raciais e da segregação ainda em vigor, fizeram intercâmbio musical de ritmos como o blues e a country music.
A migração de trabalhadores que acompanhou a depressão, a Segunda Guerra Mundial e a mecanização da agricultura fez crescer as zonas urbanas e criou uma forte demanda nacional por discos de country, gospel e blues. As grandes gravadoras, todavia, com raras exceções, produziam música clássica e swing, e negligenciavam os ritmos rurais. Pequenos empreendedores urbanos começaram então a fundar companhias de gravação e Memphis foi uma dessas cidades que sediou várias delas como o Sun Studios, por onde passou B.B.King, Ike Turner, Roy Orbinson e Elvis Presley. Essas empresas juntaram o custo relativamente modesto dos equipamentos de gravação, o desenvolvimento das fitas magnéticas e o talento dos seus criadores para estabelecerem um negócio de sucesso.
Instaladas em garagens e fábricas abandonadas, elas criaram uma nova rede de distribuidores, cultivaram relações com os disc jockeys e firmaram raízes em suas comunidades, pois entenderam o valor da sua audiência e dos artistas locais. Foi em Memphis também onde surgiu, em 1947, a WDIA, a primeira emissora de rádio nos Estados Unidos programada totalmente por afro-americanos. Essa movimentação fez da musica, sobretudo, o rhythm and blues e o rock’n’roll símbolos de contestação da juventude contra a cultura mainstream. Com suas origens na classe trabalhadora branca e negra, o rock passou a ser visto como algo perigoso, imoral e subversivo. Ao mesclar estilos musicais interraciais e colocar juntos audiências multiraciais, o rock desafiou a segregação cultural e física que era norma nos anos 1950 e 60 e contribuiu diretamente para fortalecer o movimento pelos direitos civis.
Mas é importante ressaltar ainda a contribuição da soul music, estilo que tem suas raízes também na gospel music e nos spirituals. Um dos estúdios e gravadora a também fazer história em Memphis com a música de raízes afro-americanas foi a Stax Music, fundada por Jim Stewart, e que na sua trajetória teve nomes como Otis Reading, Rufus e Carla Thomas, The Staple Singers e Isaac Hayes, entre outros. A companhia inicialmente se chamava Satelitte Records e operava em uma garagem, gravando principalmente country e rockabilly , depois começou a gravar rhythm and blues e em seguida teve a soul music como um de seus principais estilos. A gravadora sempre realizou concertos e, em 1972, promoveu, em Los Angeles, o Wattstax, com apresentações de artistas do seus catálogo e que ficou conhecido como o Black Woodstock. O evento reuniu cerca de cem mil pessoas, a maior parte afro-americanos.
A cultura soul, assim como o rock, no entanto não ficou restrita a música. Ela movimentou os designers e ativistas culturais das comunidades negras que passaram a valorizar elementos que enfatizavam as relações entre a África e a América. E foi em Memphis que estudantes da Universidade do Tennessee organizaram o primeiro desfile de moda africana no sul dos Estados Unidos. O principal objetivo do desfile foi estimular os consumidores afrodescendentes a usarem as roupas e acessórios que expressavam sua identidade africana. Uma forma de restaurar o orgulho de uma população que sempre só alcançou suas conquistas com muita briga e fazê-la transcender a triste herança da escravidão.
Veja a galeria de Memphis. Todas as fotos por Alexandre Figueirôa/OGrito!
Veja também: uma HQ para lembrar a história de Robert Johnson.