PERIFERIA DE GLASGOW
Três histórias, nove personagens, e três diferentes diretores. Esse é o mix da nova trilogia projetada por Lars Von Trier
Por André Azenha
MARCAS DA VIDA
Andrea Arnold
[Red Road, ING/ DIN 2006]
Quem assistiu Dogville e Manderlay, os dois filmes mais “famosos” (pra não citar Dançando no Escuro, produção menos conhecida, mas até mais importante que os dois citados), do cultuado cineasta dinamarquês Lars Von Trier, criador junto com Thomas Vinterberg do movimento Dogma 95, sabe que, para conferir uma produção dele, é preciso atenção, às vezes paciência, mas o resultado final quase sempre é belo e inovador – e de vez em quando vem carregado de uma boa dose crítica.
Pertencente ao projeto Advanced Party, idealizado por Trier, Marcas da Vida é o primeiro filme de uma trilogia sobre a periferia de Glasgow, na Escócia, em que as três histórias mostram os mesmos nove personagens, mas são assinadas por diretores diferentes, no caso, Andrea Arnold, Lone Scherfig e Anders Thomas Jensen – os dois últimos signatários do Dogma 95. Von Trier, em 2003, fez algo parecido. Propôs ao compatriota Jorgen Leth a missão de refazer cinco vezes O Humano Perfeito (The Perfect Human, 1967), mas com restrições estéticas e de produção diferentes em cada uma das versões – a obra final acabou se chamando As Cinco Obstruções (2003) e escancara a genialidade de Leth.
Para comandar Marcas da Vida (que chega ao mercado brasileiro em DVD), a escolhida foi uma novata “tardia”, a premiada diretora inglesa Andrea Arnold, que só foi iniciar a carreira de cineasta aos trinta e nove anos. O primeiro passo foi trabalhar em curtas-metragens. Wasp, seu terceiro curta, arrebatou simplesmente trinta e sete prêmios mundo afora, incluindo o Oscar em curta de ficção e a Palma de Ouro em Cannes, o que abriu as portas para sua estréia em longas – que não poderia ter sido melhor. Marcas… surgiu levando de cara o Prêmio do Júri em Cannes e consagrando Arnold com o BAFTA de revelação.
Na trama, a solitária Jackie (Kate Dickie) leva uma vida praticamente mergulhada em tédio. Transa com um cara que não gosta e só consegue alguma distração, e até um raro momento de excitação, no emprego. Ela é funcionária do sistema de monitoramento de câmeras na vigilância em Glasgow, quando flagra alguns gestos afetivos; um homem fazendo carinho no cachorro, pessoas indo e voltando pra casa, para o trabalho, enfim, momentos do cotidiano, belos aos olhos de Jackie.
E é num desses flagrantes, quando se excita com a imagem de um casal transando em um terreno baldio, que identifica um ex-presidiário responsável pelas mortes de seu marido e sua filha – a causa das mortes obviamente só é revelada perto do final da projeção. Aos poucos, ela vai se envolvendo com o mundo do misterioso ex-prisioneiro.
Entre instantes vagarosos, capazes de causar sono, surgem momentos de rara beleza e impacto realistas. Arnold se mostra talentosa ao mostrar com simplicidade e certa melancolia (mas sem ser piegas ou dramática demais) a vida na periferia da capital escocesa, seja na tentativa de jovens excluídos na busca por uma nova chance, ou no esforço da personagem principal em superar a tragédia e se relacionar com os pais do marido falecido.
A cena de sexo envolvendo Jackie não poderia ser mais verossímil e provocante, deixando a brecha para a revelação das motivações no envolvimento de Jackie com seu confrontante. E mesmo o final “pra agradar todo mundo”, não chega a comprometer a obra, que não se roga a mostrar um lado europeu mostrado pouquíssimas vezes na sétima arte – na Europa também há pobreza e violência oras. Merece destaque a ótima trilha sonora, que tem Oasis (“Morning Glory”) e encerra com a belíssima e melancólica “Love Will Tear Us Apart”, maravilhosa canção do Joy Division, em versão desacelerada.
NOTA: 7,5
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