Uma conversa com Letrux: “Depois de tanto pranto e isolamento, quis soltar as feras”

Cantora e compositora comenta sua relação com o sucesso, a ligação intuitiva com os fãs e o passeio pelo mundo animal para o novo álbum "Letrux Como A Mulher Girafa"

Foto: Julia Rodrigues/Divulgação.

“Você não pensa que é bicho, mas você é. Você não se identifica com um bicho, mas eu tenho que te avisar, que tu é”, canta Letrux em Letrux como Mulher Girafa, seu último disco mais recente. Três anos após lançar o disco Letrux Aos Prantos, a cantora e compositora Letícia Novaes retorna com seu terceiro álbum solo.

Abelhas, leões, hienas, aranhas, crocodilos, zebras, formigas e homens se embaralham nessa alucinação em que os bichos são metáforas das nossas relações. “A gente é puramente macaco e isso é das coisas mais lindas do mundo”, afirma.

Para esse novo trabalho, Letrux convidou o produtor João Brasil, e que já havia produzido o Estilhaça (2015), último álbum da banda Letuce.  Juntos, Letícia e João conseguem fazer uma espécie de passeio por sonoridades pop com ecos do pop rock nacional lá dos anos 1980, aquelas produções electroclash do início dos anos 2000 e mais uma seara de sons que remetem à pista de dança. “Acho que é um passeio pela natureza mesmo. Não sabemos o que vai acontecer quando vamos pro selvagem. Tudo pode surgir”, pontua Letrux sobre a sonoridade do novo trabalho.

Nesta nova fase, Letrux nos convida a tirar o animal print do armário e nos soltarmos como bichos. Ok, a girafa está ali no título por uma questão de identificação da artista: alta e esguia, Letícia transformou o apelido pejorativo da infância em certa fixação positiva com o animal, mas Letrux como Mulher Girafa vai além e é como um passeio pelo zoológico, com uma série de bichos para lá e para cá. “A girafa sempre me acompanhou, sempre foi meu animal de poder, de alguma maneira. Ela é tranquila, observadora, mas pronta pra dar uma pernada nos predadores, não sou 100% assim, mas é como gostaria de ser”, comenta.

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Depois de estourar com o Letrux em Noite de Climão (2017), a artista soube desfilar nos palcos em diversos eventos do país, chegando a tocar no Lollapalooza. O seu segundo álbum, Letrux aos Prantos (2020), foi lançado bem no meio da pandemia. Esse processo de reclusão e, para Letrux, de mergulho em si mesma, acabou registrado no tocante documentário Letrux – Viver é um Frenesi, de Marcio Debellian. “A pandemia me deu mais contato com a vida selvagem e animal, e acho que depois de tanto pranto, isolamento, quis soltar as feras mesmo”, revela.

Com o tempo, Letícia passou a ter muito afeto pela girafa, que acabou se tornando um símbolo pessoal. Além de tatuagem na costela, ele figurou várias vezes entre estampa de roupas e presentes dos fãs. Letrux, inclusive, transformou as lembranças afetivas que tem com o animal em material de divulgação do novo álbum no Instagram.

A relação com os fãs nos shows pelos quatro cantos do país e pelas redes sociais também é algo muito peculiar à Letrux: “meu público é fiel e me respeita como artista e ser humano. Troco informações, dou dicas de livros, filmes”.

E o primeiro single inclusive, já ganhou videoclipe: “As feras, essas queridas”, dirigido por Letrux e Katja Täubert. Confira o bate-papo exclusivo que tivemos com a artista que não passa batida na festinha:

Pra você quais as principais diferenças entre a Letrux Aos Prantos e a Letrux como Mulher Girafa? Você abriu a jaula das faixas de seu terceiro disco, como surgiu essa ideia de referenciar o mundo animal?

Sempre fui fascinada pelo reino animal, um documentário sobre bichos pode ser pra mim tão interessante quanto um filme do Truffaut, sabe? A pandemia me deu mais contato com a vida selvagem e animal, e acho que depois de tanto pranto, isolamento, quis soltar as feras mesmo. A girafa sempre me acompanhou, sempre foi meu animal de poder, de alguma maneira. Ela é tranquila, observadora (afinal é tão alta que vê tudo e de bem longe), mas pronta pra dar uma pernada nos predadores. Não sou 100% assim, mas é como gostaria de ser.

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“Penso muito, sou muito racional e cerebral, então quando estou mais animalesca é quase um alívio.” (Foto: Julia Rodrigues/Divulgação)

Os animais da selva de Letrux são como um convite para que também olhemos para a nossa própria natureza animalesca enquanto humano?

Ah sim, certamente! Eu às vezes como que nem bicho, esqueço regras e etiquetas e simplesmente como. Eu rio muito de mim quando isso acontece. Penso muito, sou muito racional e cerebral, então quando estou mais animalesca é quase um alívio. Acho que o disco faz esse convite: um mergulho, um voo, uma espiada no reino dos animais. O que na gente é animalesco? O que nos animais é humano? Eu fico fascinada com fotos e vídeos de macaco. Quem acredita em Adão e Eva me faz rir um pouco. A gente é puramente macaco e isso é das coisas mais lindas do mundo. 

O que elencaria como as principais angústias e inspirações para esse novo disco? Poderia falar um pouco do processo de composição para este trabalho?

A primeira música que fiz foi “Formiga”, agosto de 2020, ela é densa e mais melancólica justamente porque estávamos no meio do caos pandêmico. Eu andava bem angustiada, mas muito protegida pela natureza. Me mudei para uma casa a duas horas e meia do Rio, mesmo com todo horror do governo, da pandemia, eu tinha um contato com a natureza, com os animais, muito poderoso e isso me protegia muito. Então eu consegui começar a criar esse mundinho justamente porque tinha uma lagoa ao meu dispor. Árvores, pássaros, peixes, gatos, gambás. Eu estava rodeada e os embriões começaram a pipocar.

Depois também marcava encontros com Arthur Braganti, tecladista da banda, e coprodutor do Climão e do Prantos (juntamente com Navalha Carrera). Arthur é um grande parceiro de composição, a gente é amigo desde o início dos anos 2000, então temos uma sintonia muito curiosa. E assim como eu, ele é fascinado por animais. E isso também inclui medo. As pessoas acham que eu apenas amo bichos, mas eu morro de medo também. Fascínio e horror, tudo junto.

Como foi trabalhar com Lulu Santos em “Zebra”?

Foi a realização de um sonho, o Lulu Santos é dos maiores e ponto. Cabeça genial, letras, melodias, arranjo, o homem sabe o que faz, veio com uma missão e cumpre lindamente. Ele é ultra talentoso e um lord também, uma pessoa gentil e querida, acho que a “Zebra” ficou essa delicinha porque com essa colaboração da voz dele, falada, cantada, e dessa guitarra que ele toca, não tinha como dar errado. Sou muito grata.

Como foi pensada a ordem das músicas? Como é desenvolvida a narrativa do disco?

Acho que é um passeio pela natureza mesmo. Não sabemos o que vai acontecer quando vamos pro selvagem. Tudo pode surgir. E os intervalos causam esses “sustos”, de alguma maneira. Gosto disso. Quis começar com “As feras, essas queridas”, apenas pelo verso “abri a casa, abri a cara”, gostei de começar um disco dizendo que eu abri a casa, acho que isso significa muito. A última música é o “Teste psicológico animalesco”, que depois de todo esse passeio pela fauna, acho que as pessoas vão se perguntar quais bichos elas são, se sentem. E ainda tem a introdução também que inaugura um estado e a faixa finalíssima (não conto que a intro e a faixa final são canções em si), que também dizem muito sobre relações ser humano x animais. 

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De onde vem essa relação única, quase sem paralelo, com seus fãs nas redes, sem marketing e métricas, mas com muita intuição?

Acho que é bem intuitivo mesmo, e com respeito. Gosto de brincadeiras e gracinhas, mas não deixo beirar o deboche o desrespeito. Sou capricorniana, brinco mas com regras hahaha! Meu público é fiel e me respeita como artista e ser humano. Troco informações, dou dicas de livros, filmes. Poderia estar ali só falando de mim, de música, postando selfie mas não é meu barato. Se as redes sociais valem de alguma coisa, melhor que haja alguma troca, não é? Procuro criar essa troca de alguma maneira. 

Não faço concessões pra ter sucesso. Sou o que sou e arco com as consequências de estar no mercado alternativo e independente. Pago preços, mas durmo em paz.

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Tal como as emblemáticas capas dos trabalhos anteriores, Letrux como Mulher Girafa também é bem interessante. O que você pode nos falar sobre a arte de Giulia Fagundes?

Conheci a Giulia quando ela fez a capa do meu último livro, Tudo Que Já Nadei, lançado em 2021, pela editora Planeta. Adoro o trabalho dela, e ela também é uma mulher girafa, hehehe. Adorei a caligrafia dela em cima da foto da Katja Täubert, minha parceira. A foto foi bem espontânea e livre, um dia de pirações na praia, e a Giulia veio com todo seu olhar apurado e transformou tudo numa belezura maior ainda.  Tomara que a gente tenha vinil em breve porque o encarte tá luxo também.

Desde 2017, ano de lançamento do seu primeiro trabalho solo, o ‘Climão’, aconteceu bastante coisa na música brasileira. Surgiram novos artistas e novos movimentos musicais começaram a florescer de forma mais clara na cena. Quais foram suas influências musicais para esse novo trabalho? Teve influências gringas também?

Ouço muita música mas também adoro não ouvir nada. É a sina de quem trabalha com música. Horas e horas de sons, e horas e horas de silêncio. A gente precisa. Não sei dizer exatamente que som foi minha referência específica. Tudo que ouço desde criança ainda é inspiração forte: Rita Lee, Marina, Bethânia. Mas ouvi alguns discos nos últimos 2 anos que me emocionaram, não sei se trouxe coisas desses discos mas me tocaram de forma intensa: Alaíde Costa, O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim, JadsaOlho de Vidro. Conheci o Sessa também, achei bem belo. Das coisas gringas, as últimas coisas que conheci e pirei foram: Alabaster Plume e Kae Tempest.

Do primeiro álbum pra cá, como você vê sua evolução enquanto artista e pessoa? No que os frutos do seu aclamado primeiro disco contribuíram para a sua visão de mundo?

Lancei o Climão em 2017, mas lancei o primeiro disco da minha vida, com minha primeiríssima banda Letícios, em 2005. Daqui a 2 anos vai fazer 20 anos que fiz meu primeiro show. É muito chão, brasil, muita estrada. Ainda insistem em me colocar num lugar de “nova geração”, acho isso meio hilário e deprimente, porque tô no mercado tem um tempo. Faço show pra dedéu, até fora do Brasil, shows esgotados, toda uma jornada que me orgulho e também me arrependo.

Acho normal de arrepender, ficam tentando vender o contrário, acho roubada. É saudável pensar “putz, podia ter ficado sem essa…” Tenho minhas missões espirituais, missões cidadânicas, missões cármicas. Vou caminhando, me analisando, fazendo música, amando, chorando, mas vou caminhando. Gosto da minha vidinha particular, acharia legal crescer, tocar pra mais gente, mas nada de maneira extrema, não tenho esse tipo de ambição, porque tudo isso envolve um capitalismo muito nojento. Não faço concessões pra ter sucesso. Sou o que sou e arco com as consequências de estar no mercado alternativo e independente. Pago preços, mas durmo em paz.

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“Não sabemos o que vai acontecer quando vamos pro selvagem” (Foto: Julia Rodrigues/Divulgação)

Você dedicou “Letrux como Mulher Girafa” a Rita Lee, morta em maio. O que ela representa pra você?

Rita Lee é minha fada madrinha, minha bruxa, minha girafa mãe, tia, vó, prima, namorada, amiga. Quando li a primeira autobiografia dela, tive uma síncope de choro, foi um treco meio doido, porque parecia que eu estava lendo sobre mim, foi meio mágico e ao mesmo tempo aterrorizante. Sou muito fã, e que sorte ter vivido no mesmo tempo que ela, que sorte poder ouvir Rita Lee, que cometa lindo esse que passou.