De São Paulo (SP)
Kontinental ‘25
Radu Jude
ROM, 2025. 1h49. Drama
Com Eszter Tompa, Gabriel Spahiu, Adonis Tanța
A cada novo projeto, Radu Jude consolida seu cinema como um dos mais criativos e provocantes entre os realizadores europeus contemporâneos. A contiguidade com a qual seus filmes tratam experimentação de linguagem e reflexões socioeconômicas atuais o catapultam a uma posição de destaque nos festivais de todo mundo. Este Kontinental ‘25 teve première no Festival de Berlim 2025 e de lá saiu detentor do prêmio de melhor roteiro, na mesma edição em que o pernambucano Gabriel Mascaro conquistou o Urso de Prata por O Último Azul.
Inteiramente filmado com um iPhone 16, a nova sátira do cineasta sobre a sociedade romena ecoa temáticas totalmente identificáveis pelo espectador brasileiro. A falta de escrúpulos da especulação imobiliária que suga as feições arquitetônicas das cidades, a culpa (cristã) da classe média com as populações mais vulneráveis, o embate entre as visões progressista e conservadora; ressonâncias sociais que, no filme de Jude, acometem os personagens na cidade de Cluj, mas que poderiam naturalmente acontecer em qualquer capital do Brasil.
Na trama, a oficial de justiça Orsolya (Eszter Tompa) precisa despejar um morador de rua do porão de um edifício que, vendido, se tornará um hotel de luxo. Apesar de toda a cautela de Orsolya, a ação acarreta resultados trágicos; traumatizada, a mulher passa a remoer a situação e suas próprias idiossincrasias. A narrativa escrachada salta aos olhos, repleta de personagens cujas caricaturas jamais soam despropositadas; ainda assim, o filme contém rara sutileza nos comentários peculiares do DNA político de Radu Jude. A cena na qual a protagonista reza o Pai Nosso no parque temático de dinossauros é de uma argúcia admirável que não deve passar despercebido a olhares mais atentos.
O baixo orçamento e a decisão estética de filmar em iPhone não impedem o diretor de conceber uma identidade visual impecável. Ao apostar majoritariamente em planos estáticos, Jude demonstra zelo na composição de cada enquadramento que contempla a interconexão dos personagens enquanto instrumentos da sinfonia da cidade. Mas é a palavra a matéria bruta da obra; os longos diálogos entre os atores, em cenas de naturalidade quase documental, podem soar despretensiosos à primeira vista, mas carregam signos poderosos acerca das reflexões propostas pelo roteiro.

Semelhante à simplicidade cênica do cinema de Hong Sang-soo, Kontinental ‘25 se aproxima igualmente de outros realizadores que utilizam o cinema como ferramenta de análise sobre a ocupação (ou destruição das características históricas) das cidades, como Jia Zhangke e o nosso Kleber Mendonça Filho. As imagens captadas por Jude devassam as entranhas reacionárias tão comuns ao protofascismo em todo o planeta. Como não pensar na extrema direita brasileira ao ver cartazes do Partido Nacional Liberal romeno com os dizeres “servindo meu país com honra e fé”?
Veículo poderoso de transporte à memória, o cinema da Romênia é destacado pelo empenho em evitar o apagamento da história de seu país. De Lucian Pintilie a Corneliu Porumboiu, autores que enaltecem o dispositivo cinematográfico enquanto radiografia de uma nação marcada por opressões. Kontinental ‘25 perpetua esse legado, adicionando ingredientes frescos especialmente ligados à forma; Radu Jude é um diretor atento e crítico às novas tecnologias. Dracula, outro longa-metragem do cineasta lançado em 2025, revisita o mito vampiresco da Transilvânia e aborda as palpitantes controvérsias em relação ao uso da inteligência artificial no cinema. Expectativa e curiosidade altas para mais esta materialização da mente inventiva desse ótimo diretor.
Filme visto durante a 49º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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