KANIKOSEN – O NAVIO DOS HOMENS
Gō Fujio; baseado na obra de Takiji Kobayashi
Veneta, 192 pp, R$ 64,90, 2021. Tradução de Drik Sada
No início dos anos 1920, o Japão mantinha um lucrativo negócio de pesca de caranguejo no mar de Ojotsk, próximo à região de Kamtchatka, na Rússia, com quem vivia em uma antiga disputa de soberania marítima. Trabalhar em um dos navios-fábrica que rodavam aquela região parecia a solução ideal para muitos trabalhadores, estudantes, comerciantes falidos e camponeses sem terra que tentavam fugir da pobreza. Mas, ao chegar lá todos descobriam que tinham sido enganados: o lugar era o inferno em pleno mar, com condições desumanas, onde todos trabalhavam à exaustão, sem segurança, comida adequada, e pra piorar, à base de muita violência física.
Essa história é contada em Kanikosen, um clássico da literatura proletária lançado por Takiji Kobayashi (1903 – 1933) em 1929 e que ganhou adaptação em quadrinhos por Gō Fujio em 2006. A obra chegou no final de 2021 ao Brasil em uma edição muito bem cuidada da Veneta com diversos textos de apoio que explicam e discutem o contexto da época e a importância da obra.
Kobayashi foi um dos mais importantes escritores comunistas do Japão e seu trabalho ecoou com força em uma época muito marcada pela expansão das ideias marxistas para além do continente europeu, com destaque para a Revolução Russa de 1917. Por conta do sucesso de Kanikosen, ele acabaria preso, torturado e morto em 1933, com apenas 29 anos.
Assim como a novela original, o mangá também utiliza uma linguagem ágil, muito simples e direta. Com isso, não demora muito para entrarmos dentro daquele ambiente de horror e tensão constante. A trama acompanha tudo a partir da perspectiva dos trabalhadores, mas intercala o drama humano com recordatórios explicativos sobre a situação do Japão do período, bem como detalhes que ajudam a compreender a situação insólita vivenciada ali. A começar pelo funcionamento do navio-fábrica, uma instalação complexa que pescava caranguejos no gelado oceano Pacífico e processava sua carne em enlatados.
Esse tom de documentário dá mais dinamismo à leitura, porém, por vezes, afasta o leitor de um maior aprofundamento da história de cada personagem. Ainda assim, há um fio narrativo que foca a ação em um grupo de trabalhadores que acaba organizando um motim contra a violência do patrão. Os castigos são tão severos que acabam ocasionando a morte de alguns operários e pescadores. O desenho de Gō Fujio é cheio de expressividade, com um traço firme muito comum na demografia Shonen do mangá (me lembrou um pouco o estilo de Keiji Nakazawa, de Gen – Pés Descalços).
Mas é a força da coletividade que mais chama atenção nesse mangá, que se apoia na tradição da literatura proletária, muito focada em servir de inspiração de levantes contra a opressão. Dentro da embarcação, após sofrerem toda sorte de humilhações, doenças, e um expediente de trabalho repleto de pauladas e ameaças, os trabalhadores, enfim, se unem contra essa desumanização.
O império japonês era conivente com esse esquema predatório de trabalho. O país vivia um surto de industrialização após a Primeira Guerra Mundial, atrelado a um sistema de exploração das classes menos favorecidas. O avanço do autoritarismo e a parceria com as grandes corporações forneceram a base para a criação de canteiros de obras que eram verdadeiras filiais do inferno: estradas, minas e grandes construções eram abertas à custa de sofrimento e morte de trabalhadores. Esse esquema – alinhado a uma crise econômica fortíssima – repetiu-se em outros países, como Brasil e EUA, o que fez surgir um movimento político proletário crítico a essa industrialização.
Proibido por muitos anos, Kanikosen, vem sendo redescoberto por novas gerações e é hoje um dos mais populares textos desse movimento proletário. É também bastante cultuado no Japão, com adaptações para diversas mídias, como teatro e cinema.
Assim como o mangá, o livro de Takiji Kobayashi também era inédito no Brasil até então. Com o título Kanikōsen: o Navio Caranguejeiro, a obra ganhou edição pela Aetia Editorial (120 páginas, 2021), com tradução de Ivan Luís Lopes.