A escalada de violência em Gaza, a subjugação cotidiana do povo palestino e os desafios da pesquisa e da apuração para quem vem de fora. Esses foram alguns dos assuntos discutidos pelo quadrinista e jornalista Joe Sacco, autor da HQ Palestina, em entrevista à socióloga Sabrina Fernandes. A conversa foi ao ar na última segunda-feira (6), no canal no YouTube da Veneta, editora responsável pela publicação do título no Brasil.
Originalmente publicada em nove volumes, entre 1993 e 1995, a obra traz um forte testemunho da limpeza étnica e da expansão colonial de Israel sobre o território palestino. “Quase parece uma época ingênua em certo sentido. Quer dizer, você estava falando sobre centenas de pessoas que foram feridas e mortas ao longo de alguns anos e estava falando sobre pessoas na prisão, oliveiras sendo cortadas, de vez em quando demolições de casas, e tudo isso [hoje] aumentou bastante”, avaliou.
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“Agora olhe para lá, quer dizer, mais de 20 anos depois e estamos falando sobre, provavelmente, o bombardeio aéreo mais pesado em um local concentrado. Historicamente falando, no que diz respeito ao bombardeio convencional, é uma surpreendente quantidade de violência”, comparou Sacco, que pouco tempo depois, nos anos 2000, voltou à Faixa de Gaza. O retorno resultou no quadrinho Notas sobre Gaza, publicado pela Companhia das Letras.
Ao longo da conversa, o quadrinista também refletiu sobre os obstáculos que enfrentou durante o processo de pesquisa e apuração da HQ Palestina. “Às vezes, quando você é um estranho, as pessoas reagem a você de uma certa maneira. Você percebe que eles o veem como uma projeção do mundo exterior. Então, quando eles me questionam, às vezes me interrogam, tipo: ‘De que adianta você vir aqui? As pessoas têm escrito sobre nós. Que bem faz isso?’ […] Eles sentem que suas vidas são constantemente refratadas pelos olhos ocidentais todo o tempo.”
“Mas eu sou uma espécie de refração empática. Não sou do tipo que os interroga e diz coisas como: ‘Por que você faz isso? Você condena isso?'”, pontuou. “Esse é o tipo de interrogatório para alguém que também está vivendo um trauma. Isso é algo que tentei explorar. A verdade é que também questiono esse tipo de coisa em mim, especialmente hoje em dia, porque muitas vezes pensamos que a voz externa é problemática. Mas também tenho formação jornalística. Então, eu meio que tenho esse pretexto ou sensação de que posso manter os olhos abertos.”
“Eu tenho simpatia e empatia pelos palestinos. Acho que eles foram historicamente injustiçados. Mas tento ver as coisas bem honestamente. Sabe, se as pessoas dizem coisas que podem fazer com que não pareçam boas, ainda faz parte da equação. E acho que é o que realmente mostra as coisas em sua profundidade. Não sou realmente um ativista no sentido de que quero mostrar a melhor face possível dos palestinos. Quero mostrar um rosto real, sabe, com o melhor de minhas habilidades.”
Sacco revelou ainda que inicialmente pretendia desenhar relatórios de direitos humanos sobre o que o povo palestino estava vivendo, mas logo descartou a ideia por considerar muito “seca”. “Também estou interessado em palestinos com alguma agência. Quer dizer, eles respondem à ocupação. Eles resistem à sua maneira, de muitas maneiras diferentes. E há outras coisas acontecendo em suas vidas além da ocupação. Eles ainda querem ir para a escola. Ainda querem criar seus filhos. Todas as coisas que consideramos realmente prosaicas também fazem parte das vidas deles. Eles estão tentando viver isso em condições extremas.”
Para ele, o poder do desenho está, justamente, em evidenciar as diferentes camadas da realidade. “Há muito material no fundo, coisas que se pode mostrar. Quer dizer, você pode ter pessoas em primeiro plano, por exemplo, falando sobre a situação política, seja ela qual for, mas, ao fundo, você os vê brincando com os filhos, você vê o chá chegando. Tudo isso meio que cria uma ideia mais holística de como é a vida das pessoas”, explicou.
“É importante que as pessoas estão sendo bombardeadas, é importante que as pessoas estão sendo levadas para a prisão, mas também é importante que essas coisas estejam acontecendo. Uma espécie de sobreposição de como as pessoas também estão tentando viver uma vida muito normal, como faríamos aqui se estivéssemos nas mesmas circunstâncias. […] Então, mostrar tudo isso, acho que realmente faz parte do processo de dar vida a essas pessoas.”