Jessie Ware That Feels Good
Jessie Ware That Feels Good

Jessie Ware celebra o prazer em That! Feels Good!

Artista britânica consolida sua transição para diva das pistas de dança em um álbum libertador, ambicioso e celebrativo

Jessie Ware celebra o prazer em That! Feels Good!
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Jessie Ware
That! Feels Good
Universal, 2023. Gênero: pop

“A liberdade é som/ E o prazer é um direito”, declara Jessie Ware na faixa-título de “That! Feels Good”, seu quinto álbum. Em um trabalho rico em declarações celebrativas e empoderadas, essas talvez sejam as palavras-chave do discurso: liberdade e prazer, em suas mais variadas manifestações. A obra também consolida o interesse da britânica em mergulhar na disco music para além de seu pastiche, estudando dos ídolos às figuras obscuras para criar músicas que reverenciam sonoridades do passado, mas não soam datadas nem redundantes. As faixas revelam a sensibilidade criativa da cantora e enfatizam a versatilidade da sua voz e interpretação.

Pensar Jessie Ware como uma das grandes representantes da disco music, há alguns anos poderia soar estranho para a maioria das pessoas, mas desde o excelente What’s Your Pleasure? (2020), lançado no auge da pandemia de Covid-19, sua imagem foi radicalmente transformada. Essa desconstrução (ou reconstrução) de sua figura e sonoridade, no entanto, foi muito natural. Se é bem verdade que tentaram vendê-la como uma versão cool de Adele, mais cosmopolita, talvez até sofisticada, ao escutar sua discografia, é perceptível que Jessie Ware tinha um projeto artístico mais complexo do que aquele ao qual tentaram reduzi-la – e que sempre dialogou com a música dançante. 

Ainda assim, a forma como ela era vista pelo grande público parecia unilateral. Com Devotion (2012), seu álbum de estreia, ela conquistou sucesso comercial e de crítica com o single “Wildest Moments”, uma balada elegante escrita por ela e o produtor Kid Harpoon (nome artístico de Tom Hull, que uma década depois produziu todas as faixas de “Harry’s House”, de Harry Styles, pelo qual ganhou o Grammy de Álbum do Ano). Ainda que a maioria de suas músicas fossem baladas, principalmente os singles, seus álbuns contavam com produções que quase sempre fugiam do óbvio, pautavam-se pelo minimalismo e flertavam com elementos da música eletrônica. 

Essas escolhas de produção deixavam a voz da artista brilhar e dar o peso das composições, missão que ela já cumpria com louvor. E elementos que viriam a se apresentar com mais ênfase no seu trabalho recente já estavam em seus primeiros discos (a exemplo de “Imagine It Was Us”), como espécies de pistas de caminhos possíveis que ela ainda não tinha coragem de trilhar até o fim. Tough Love (2014), seu segundo disco, mais maduro, porém menos ousado, não teve o mesmo sucesso da estreia, mas ainda fez algum barulho no Reino Unido, vendendo 100 mil cópias. 

Na sua empreitada seguinte, Glasshouse (2017), muito influenciada por sua experiência com a maternidade, Jessie Ware apostou em uma estética e sonoridade mais vívidas, relaxadas, com uso de mais instrumentos, dando maior organicidade às produções, e influências do soul, r&b e do pop. Apesar de sua qualidade, o projeto teve pouca repercussão, o que, aliado a outras questões pessoais, levou Jessie Ware a questionar os rumos de sua carreira.

Foi então que ela decidiu voltar às suas origens e elas, surpreendentemente, não estavam no lounge ou em salões elegantes com pianos de cauda, mas nas boates e inferninhos de Londres, dançando ao som de uma cena de DJs que, em pouco tempo, passou a figurar nas paradas de sucesso da Europa, como o duo Disclosure. Como parte dessa fauna noturna da capital inglesa, desde sua estreia Jessie se tornou uma colaboradora frequente de produtores e artistas da música eletrônica e do hip hop, entre eles o já citado Disclosure, SBTRKT, Katy B e o rapper MIST, além do seu trabalho servir como base para vários remixes.

A primeira amostra de que as sonoridades eletrônicas ganhariam destaque no seu trabalho solo veio em outubro de 2018, com “Overtime”, uma canção pulsante com elementos de house, disco e outros subgêneros da música eletrônica, e produção assinada por James Ford (um dos integrantes do grupo The Last Shadow Puppets e responsável por produções de Gorillaz, Pet Shop Boys, Arctic Monkeys, Kylie Minogue, entre outros) e o duo irlandês Bicep. Em fevereiro de 2019, ela, que estava grávida, divulgou “Adore You”, mais uma ode elegante à house music. Sobre a faixa, ela compartilhou com os fãs que parecia adequado lançá-la quando estava prestes a dar à luz seu segundo filho e quando “se sentia confiante como nunca” em relação à sua música.

Esse momento de autoconfiança se refletiu no quarto álbum de Ware, What’s Your Pleasure?, um dos melhores trabalhos de 2020. Lançado em junho daquele ano, em plena pandemia, se juntou ao Future Nostalgia, de Dua Lipa, e ao Chromatica, de Lady Gaga, em meio ao zeitgeist de revival da disco e house music, do desejo por expurgar dores e experienciar o desejo nas pistas de dança. Mas, naquele momento, o encontro, as trocas (de calor, de fluidos) sugeridas por esses trabalhos, eram não só motivo de pânico, por conta da crise sanitária da Covid-19, como também de esperança. Dançar ao lado de amigos e estranhos se tornou uma utopia.

Jessie Ware.
A cantora nas gravações do clipe de “Pearls”. (Foto: Jack Crange/Divulgação).

E Jessie Ware tornou-se um dos símbolos desse momento. Ainda que não tenha atingido o sucesso comercial de suas contemporâneas, ampliou sua base de ouvintes e admiradores e se fez presente na maioria das listas de melhores discos do ano. E mais: se divertiu no processo, como ela afirmou em várias entrevistas. A imagem de uma intérprete reservada, melancólica, que ficou fixada por conta dos primeiros álbuns, deu lugar à de uma diva da noite, poderosa, leve, assertiva.

Levar o álbum para os palcos, com direito a coreografias e adereços como um microfone cujo fio se transforma em um chicote, quase como uma dominatrix, também posicionou a artista em um outro circuito, inclusive curatorial. Na primeira edição do Primavera Sound São Paulo, em 2022, seu show foi um dos mais aclamados. Em cima daquele palco, era como se tivesse chegado onde sempre deveria estar. E seu êxtase em se apresentar para a multidão, que  cantava e dançava junto, pareceu confirmar essa impressão.

Jessie Ware reverencia o melhor dos gêneros sem soar datada

Que o novo álbum de Jessie Ware comece com várias pessoas (entre elas Kylie Minogue, Róisín Murphy e a própria mãe da cantora) declarando o orgástico título do trabalho, parece mais do que apropriado. That! Feels Good! soa vibrante e relaxado desde os primeiros segundos – e sustenta esse espírito até o final, oscilando entre momentos mais eufóricos (que o diga o excelente primeiro single “Free Yourself”, que já nasceu destinada a se tornar um hino LGBTQIA+) e outros mais intimistas (como na linda “Hello Love”).

Enquanto em What’s Your Pleasure? ela se debruçou com mais ênfase nas experimentações sonoras com sintetizadores e no imaginário da disco associado ao icônico Studio 54, em Nova York (ainda que não tenha se prendido a um gênero específico, explorando suas várias expressões, como o Italo-disco e nu-disco além de electro, new wave, deep house, r&b, entre outros)  em That! Feels Good!, Jessie Ware mira na vertente do gênero mais calcada na instrumentação ao vivo, com ligação direta com a soul music e o funk. É possível ouvir influências da Motown, dos trabalhos do final dos anos 1970/início dos 1980 de artistas como Gloria Gaynor, The Salsoul Orchestra, Chic, LaBelle, Fern Kinney e Inner Life.

No novo álbum, o desejo está à flor da pele e a intérprete, pronta para vivenciá-lo sem restrições. Esse tom de liberação sexual soa como uma continuação natural do trabalho anterior, que, se já abraçava uma atmosfera despojada e irônica, como em “Oh La La”, “Soul Control” e a própria faixa-título, também ecoava uma interpretação mais discreta do início da carreira, como em “Spotlight” e “Remember Who You Are”. Em That! Feels Good, Jessie Ware incorpora de forma ainda maior o camp, como nas divertidíssimas “Pearls” (que ganhou um remix com Pabllo Vittar), “Beautiful People” e “Shake The Bottle”. Ela deixa transparecer nas faixas um entusiasmo que transborda em suas entrevistas e no seu podcast culinário “Table Manners”, um sucesso nos streamings que ela apresenta junto à mãe.

Uma vocalista poderosa, a britânica se despiu da pressão de mostrar seu alcance vocal e usa seu instrumento como uma liberdade deliciosa. Aos 38 anos, mãe de três crianças, ela soa mais confortável com a própria sexualidade do que quando surgiu no mundo da música, uma década atrás. “These Lips”, por exemplo, uma composição cheia de duplo sentido, é uma ode à química sexual. A ótima “Freak Me Now” não soaria estranha tocando em uma boate ou nos ballrooms do início dos anos 1990, ao lado de hits de Robyn S, Crystal Waters e Dee-Lite. São músicas que chamam à pista de dança, que dispensam o “carão”. São para se jogar e se divertir, em um hedonismo sem cinismo.

A produção do disco é criativa e suntuosa – e isso vai além de aporte financeiro, mas de detalhes, de arranjos vocais e instrumentais robustos. Jessie retoma a parceria com James Forte e também adicionou na produção Stuart Price, um dos responsáveis por Confessions on a Dancefloor (2005), de Madonna. A cantora, inclusive, contou em entrevistas que gravou as músicas com o mesmo microfone que a Rainha do Pop utilizou naquele álbum.

Um dos momentos mais delicados do disco é “Begin Again”, uma faixa que sintetiza várias questões que a sociedade viveu nos últimos anos, com a pandemia e a ascensão da extrema-direita em vários países, ameaçando as liberdades das minorias sociais. “Por que minhas realidades dominam todos os meus sonhos?/ Por que todo o amor mais puro é filtrado por máquinas?/ Me dê algo bom que seja ainda melhor do que parece/ Por que todo o amor mais puro é filtrado pelas máquinas?”, entoa, para logo depois continuar o questionamento, em um transe, um clamor, que soa quase como uma prece. “Posso começar de novo?/ Podemos começar de novo?”. 

Com That! Feels Good!, Jessie Ware mostra que não é tarde para começar de novo. E, mais ainda, que é possível homenagear gêneros musicais do passado sem soar datada. Seu trabalho de pesquisa é minucioso e respeitoso. A britânica celebra os pioneiros dos gêneros, mas não se prende a eles. Se atualiza, soa fresco, com identidade. Com seus dois álbuns mais recentes, ela própria já está pronta para se inserir, com louvor, nesta longa tradição de ícones da pista de dança.

Ouça Jessie Ware – That! Feels Good

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