A produção de curtas no Brasil, cada vez mais, tem se revelado criativa e instigante e os filmes exibidos na 9º Janela Internacional de Cinema do Recife só comprovam isso. Acompanhar a mostra competitiva e as sessões especiais tem permitido o contato com obras de qualidade, ousadas na abordagem dos temas, nos experimentos de linguagem e altas doses de inquietação e rejeição ao retrocesso político e de comportamento que o país enfrenta nos dias de hoje.
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A programação completa
O programa “Santas, Diabas e Outras Entidades”, exibido na última terça-feira, mais uma vez levou para as telas do São Luiz um mix de filmes onde esses elementos estão presentes, mostrando que a efervescência espalha-se por diversos estados. Entre eles chamaram a atenção os curtas Impeachment, de Diego Santos, do Espírito Santo, A Moça que Dançou com o Diabo, de João Paulo Miranda, de São Paulo, e o cearense Santa Porque Avalanche, de Paulo Victor Soares.
O curta de Diego Santos, embora tenha sido concebido quando o processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef ainda não havia se iniciado, ganhou uma nova dimensão em função dos acontecimentos posteriores. Santos, a partir de imagens captadas na TV Câmara, fez uma montagem de intervenção retomando um episódio do processo de impedimento contra Fernando Henrique Cardoso que tramitou no Congresso em 1999 e que foi arquivado por Michel Temer, apesar de recurso do PT contra a decisão. O curta mostra como os argumentos sobre o impeachment se repetem e a desconstrução das falas dos políticos revelam um discurso escondido que muda de acordo com o lugar onde eles estão – situação ou oposição -, algo que eles nunca assumem.
Já A Moça que Dançou com o Diabo dirige a nossa atenção para a questão religiosa, outro tema que está cada vez mais presente diante do avanço do pensamento conservador dos grupos neopentecostais. No curta vemos uma garota que vive numa família evangélica e é obrigada a pregar na rua cantando hinos, além de seguir uma rotina rígida. Ela tenta então escapar da doutrinação imposta, buscando exercer seus desejos de adolescente, se maquiando e indo para festas com uma amiga. O tom é realista e o filme não trata os evangélicos com desdém.
O cearense Santa Porque Avalanche foi realizado por alunos da Escola Pública de Audiovisual e teve como locação a cidade de Icó, onde quatro amigos resolvem participar do concurso da garota molhada, em contraponto ao clima seco e a poeira que dominam o lugar. O filme brinca com questões de gênero, sexo e de identidade e como isso força uma naturalização do universo heteronormativo. Na mesma sessão tivemos também a exibição de Carruagem Rajante, de Livia de Paula e Jorge Polo (RJ), e Rua Cuba, de Filipe Marcena (PE).
Pernambucanos
Na quarta-feira, além das mostras competitivas, tivemos também um programa especial com a estreia de três curtas pernambucanos: Represa, de Milena Times; Quarto para Alugar, de Enock Carvalho e Matheus Farias; e Porteiro do Dia, com direção de Fabio Leal. Os filmes surpreendem pela qualidade tanto na construção do roteiro, quanto nos cuidados com a fotografia, o som e a montagem, ressaltando a segurança dos diretores na condução da equipe.
Quarto para Alugar conta a história de uma garota que conhece uma mulher misteriosa e sedutora e é por ela levada a um apartamento. O local tem um clima sombrio e paira no ar a presença de uma mulher já morta. Depois de transarem, a jovem vagueia pelos cômodos e coisas estranhas começam a acontecer. A narrativa está bem arquitetada e a fotografia e trilha sonora conseguem criar uma ambientação adequada para a trama. Ela mescla elementos de suspense e terror, embora paire uma certa sensação de déjà vu por conta de inúmeros filmes conhecidos cujo leitmotiv têm a mesma premissa.
No entanto, o curta que mais encantou o público presente ao São Luiz da mostra pernambucana de estreantes foi Porteiro do Dia. O filme de Fabio Leal, a partir de uma história de Rodrigo Almeida, é uma divertida trama romântica entre um jovem gay de classe média e o porteiro do prédio onde mora. O astral descontraído, o bom humor, a ausência de juízos de conduta moral e a naturalidade com que a trama se desenvolve aliada ao bom desempenho dos atores fazem do Porteiro do Dia um daqueles filmes que nunca vamos esquecer. O mais bacana dele é o olhar de Leal sobre uma situação que é mais corriqueira do que muita gente imagina. Das tímidas primeiras conversas entre os protagonistas num tom naturalista, até a deliciosa sequência de um glamoroso passeio de bicicleta pelas ruas do Recife, o filme entrega-se sem medo ao fluxo das imagens para dizer: qualquer forma de amor vale a pena.