Que homens somos nós? Essa é a questão que a cineasta Déa Ferraz nos faz no documentário Câmara de Espelhos, exibido na noite da segunda-feira no São Luiz. E a resposta na tela é direta e precisa: somos péssimos e ainda temos um longo caminho a percorrer para melhorar a nossa tosca visão sobre o universo feminino. Para chegar a essa constatação bem conhecida pelas mulheres, Déa encarou um desafio, não apenas do ponto de vista cinematográfico, mas também existencial, ao se confrontar com um material filmado onde todas as visões e opiniões equivocadas sobre a mulher saltaram aos seus olhos e ouvidos como um espinho roçando na carne, machucando, machucando e machucando.
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A cineasta optou por uma experiência fílmica cujos resultados são sempre uma incógnita: o filme-dispositivo, uma estratégia que vem sendo bastante usada por documentaristas contemporâneos a exemplo de Eduardo Coutinho no filme Jogo de Cena, Jean Claude Bernardet em Filmofobia, Cao Hamburguer em Rua de Mão Dupla, entre outros. Esse tipo de obra acontece quando o diretor dispara um movimento não presente ou preexistente, ou seja, o artista recorta um espaço, um tempo, um tipo e uma quantidade de personagens forçando movimentos e conexões entre os participantes que estão diante e por trás das câmeras.
Para realizar Câmara de Espelhos, Déa Ferraz partiu de uma inquietação pessoal, acionada por sua militância feminista, de tentar entender melhor o discurso produzido pelos homens sobre as mulheres. Resolveu então construir uma câmara e nela instalou uma sala onde colocou dois grupos de homens para registrar suas reações e conversas a partir de estímulos, exibidos num monitor de TV, constituídos por trechos de filmes, novelas, entrevistas, spots publicitários onde questões femininas eram abordadas.
O resultado do material registrado deixou a cineasta perplexa. Não que o que foi dito fosse algo novo para ela. Mas ao ver reunidos os argumentos usuais usados pelos homens quando falam sobre as mulheres despertou nela um sentimento novo que, segundo a própria cineasta, lhe mostrou que o combate ao machismo, à violência e à discriminação contra a mulher é uma batalha inerente a sua própria condição de ser feminino.
E foi esse sentimento que Déa Ferraz levou para tela. Um trabalho exaustivo para editar horas de conversas e filtrar os trechos que melhor traduzissem uma leitura capaz de levar o espectador a observar o mundo que o cerca com olhos mais atentos.
Um dos riscos do filme-dispositivo é nunca saber se o resultado final vai ser o desejado, pois, se por um lado o cineasta tem o aparente controle de tudo pelas regras, limites e recortes impostos, por outro há uma grande abertura que depende da atuação dos atores e de suas reações ao jogo proposto. Câmara de Espelhos, todavia, deu muito certo.
A ponderação da cineasta, o cuidado em pontuar as sutilezas dos comentários machistas para mostrar que não são apenas as tapas que doem, mas as entrelinhas de declarações aparentemente engraçadinhas também fazem muito estrago é o maior trunfo do seu trabalho. Déa nos faz ver a incapacidade das pessoas hoje, aí incluindo tantos os homens quanto muitas mulheres, de refletir sobre os seus gestos, de compreender o outro, de deixarem de agir como robôs repetindo os velhos paradigmas de uma cultura que estabelece uma estúpida hierarquia entre os gêneros e de se livrar da mediocridade. Obrigado Déa, por nos tocar com inteligência e afeto.
Quem estiver interessado em saber mais sobre o processo de realização de Câmara de Espelhos, a cineasta Déa Ferraz é a convidada do programa O Grito FM, que vai ao ar nesta quinta-feira às 20 horas pela Rádio Universitária (99,9MHz).