Um incêndio de grandes proporções atingiu, na noite de 16 de maio, o prédio do antigo Cinema Glória, localizado na Rua Direita, no bairro de São José, área central do Recife. O imóvel, tombado pelo Governo do Estado por sua importância histórica e arquitetônica, funcionou como sala de exibição entre 1926 e 1984 e é considerado um dos símbolos da era de ouro dos cinemas de rua na capital pernambucana. As chamas, que também consumiram edificações vizinhas, provocaram a interdição de ao menos treze imóveis no entorno da Praça Dom Vital.
Segundo o Corpo de Bombeiros de Pernambuco, a corporação foi acionada às 19h40 e, ao longo da operação, mobilizou 12 viaturas para conter o avanço do fogo. Inicialmente, apenas uma unidade foi enviada, mas a complexidade do incêndio exigiu reforço, com o uso de carros-pipa e a presença de equipes técnicas. Três imóveis foram atingidos diretamente, incluindo a antiga sala de exibição e um prédio vizinho de três andares.
Moradores da região relatam que o fogo teria começado por volta do início da noite, após uma possível explosão próxima a um poste recentemente substituído. O fornecimento de energia elétrica foi interrompido pela Neoenergia Pernambuco, a pedido das autoridades, e segue suspenso em parte da área. A Polícia Civil abriu inquérito para investigar as causas do incêndio. Técnicos da Polícia Científica também estiveram no local para realizar perícia.

A Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), órgão responsável pela proteção de bens tombados pelo Estado, divulgou nota oficial lamentando o ocorrido e confirmou que está oferecendo suporte técnico à situação. Segundo o comunicado, “a Fundarpe lamenta o ocorrido com o imóvel privado que abrigou o Cinema Glória, bem tombado pelo Estado de Pernambuco, localizado na Rua Direita, no Bairro de São José, que esteve em atividade entre os anos de 1926 e 1984. A Fundarpe está prestando apoio técnico, por meio da equipe da Gerência de Patrimônio Material da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural, fazendo vistorias no local e integrando o corpo técnico para elaboração das diretrizes e orientações para o restauro do bem.”
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O edifício em questão foi tombado pelo Governo do Estado em 1983, conforme o Decreto de Homologação nº 8.443, e está inscrito no Livro de Tombo II do Conselho Estadual de Cultura. O prédio é reconhecido por seu valor arquitetônico (com elementos do estilo art nouveau) e por sua importância simbólica na história urbana e cultural do Recife. Quando encerrou as atividades em 1984, o Cine Glória ainda conservava a tela original, a cabine de projeção, os portões de ferro e os camarotes laterais, componentes que conferiam autenticidade ao espaço.
Cine Glória funcionou por quase 60 anos
Durante quase seis décadas de funcionamento, o Cine Glória manteve-se como uma sala acessível à população trabalhadora do Centro, incluindo camelôs, prostitutas, biscateiros e frequentadores do Mercado de São José. A importância desse espaço para a cultura popular urbana está registrada no documentário Cinema Glória (1979), dirigido por Fernando Spencer e Felix Filho. Com 16 minutos de duração, o curta (disponível para exibição online na Cinemateca Pernambucana Jota Soares) apresenta o cinema através da memória de seus frequentadores e figuras importantes do meio artístico e intelectual recifense, como Jota Soares, Liêdo Maranhão, Bajado, Celso Marconi e Maria José Leite.
O incêndio reacende um debate recorrente na cidade: o abandono de edifícios históricos e a vulnerabilidade de bens culturais em áreas centrais do Recife. A região do bairro de São José, embora detentora de forte apelo simbólico e urbanístico, sofre com a degradação de seu patrimônio edificado, a especulação imobiliária e a ausência de políticas públicas eficazes de manutenção e uso social desses espaços.

Atualmente, não há cronograma definido para o início das obras de recuperação do prédio atingido ou para o retorno das atividades comerciais nos imóveis interditados. As medidas emergenciais adotadas pelas autoridades ainda são de caráter técnico e de segurança estrutural. A comunidade cultural e patrimonialista local aguarda que o apoio anunciado pela Fundarpe se traduza em ações concretas e sustentáveis, com transparência, participação social e valorização da memória urbana.
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A perda material provocada pelo incêndio no Cine Glória não se limita à arquitetura. Trata-se também de uma ferida simbólica em uma cidade que, apesar de sua riqueza cultural, frequentemente assiste à destruição silenciosa de seus marcos históricos. Como espaço de convivência, memória afetiva e produção cultural, o antigo cinema ainda resiste no imaginário de muitos recifenses.

