Incêndio no antigo Cinema Glória expõe fragilidade na preservação do patrimônio cultural do Recife

Patrimônio tombado foi consumido pelas chamas no centro do Recife; imóvel abrigou uma das salas de cinema mais emblemáticas da cidade

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A fachada de um dos marcos do cinema de rua do Recife segue de pé, apesar do cenário de destruição que ostenta após ser tomado por um incêndio na última sexta (16). Sua reconstrução ainda é incerta. (Foto: Paulo Floro/Revista O Grito!.)

Um incêndio de grandes proporções atingiu, na noite de 16 de maio, o prédio do antigo Cinema Glória, localizado na Rua Direita, no bairro de São José, área central do Recife. O imóvel, tombado pelo Governo do Estado por sua importância histórica e arquitetônica, funcionou como sala de exibição entre 1926 e 1984 e é considerado um dos símbolos da era de ouro dos cinemas de rua na capital pernambucana. As chamas, que também consumiram edificações vizinhas, provocaram a interdição de ao menos treze imóveis no entorno da Praça Dom Vital.

Segundo o Corpo de Bombeiros de Pernambuco, a corporação foi acionada às 19h40 e, ao longo da operação, mobilizou 12 viaturas para conter o avanço do fogo. Inicialmente, apenas uma unidade foi enviada, mas a complexidade do incêndio exigiu reforço, com o uso de carros-pipa e a presença de equipes técnicas. Três imóveis foram atingidos diretamente, incluindo a antiga sala de exibição e um prédio vizinho de três andares.

Moradores da região relatam que o fogo teria começado por volta do início da noite, após uma possível explosão próxima a um poste recentemente substituído. O fornecimento de energia elétrica foi interrompido pela Neoenergia Pernambuco, a pedido das autoridades, e segue suspenso em parte da área. A Polícia Civil abriu inquérito para investigar as causas do incêndio. Técnicos da Polícia Científica também estiveram no local para realizar perícia.

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Foto: Paulo Floro/Revista O Grito!.

A Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), órgão responsável pela proteção de bens tombados pelo Estado, divulgou nota oficial lamentando o ocorrido e confirmou que está oferecendo suporte técnico à situação. Segundo o comunicado, “a Fundarpe lamenta o ocorrido com o imóvel privado que abrigou o Cinema Glória, bem tombado pelo Estado de Pernambuco, localizado na Rua Direita, no Bairro de São José, que esteve em atividade entre os anos de 1926 e 1984. A Fundarpe está prestando apoio técnico, por meio da equipe da Gerência de Patrimônio Material da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural, fazendo vistorias no local e integrando o corpo técnico para elaboração das diretrizes e orientações para o restauro do bem.”

O edifício em questão foi tombado pelo Governo do Estado em 1983, conforme o Decreto de Homologação nº 8.443, e está inscrito no Livro de Tombo II do Conselho Estadual de Cultura. O prédio é reconhecido por seu valor arquitetônico (com elementos do estilo art nouveau) e por sua importância simbólica na história urbana e cultural do Recife. Quando encerrou as atividades em 1984, o Cine Glória ainda conservava a tela original, a cabine de projeção, os portões de ferro e os camarotes laterais, componentes que conferiam autenticidade ao espaço.

Cine Glória funcionou por quase 60 anos

Durante quase seis décadas de funcionamento, o Cine Glória manteve-se como uma sala acessível à população trabalhadora do Centro, incluindo camelôs, prostitutas, biscateiros e frequentadores do Mercado de São José. A importância desse espaço para a cultura popular urbana está registrada no documentário Cinema Glória (1979), dirigido por Fernando Spencer e Felix Filho. Com 16 minutos de duração, o curta (disponível para exibição online na Cinemateca Pernambucana Jota Soares) apresenta o cinema através da memória de seus frequentadores e figuras importantes do meio artístico e intelectual recifense, como Jota Soares, Liêdo Maranhão, Bajado, Celso Marconi e Maria José Leite.

O incêndio reacende um debate recorrente na cidade: o abandono de edifícios históricos e a vulnerabilidade de bens culturais em áreas centrais do Recife. A região do bairro de São José, embora detentora de forte apelo simbólico e urbanístico, sofre com a degradação de seu patrimônio edificado, a especulação imobiliária e a ausência de políticas públicas eficazes de manutenção e uso social desses espaços.

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Foto: Paulo Floro/Revista O Grito!.

Atualmente, não há cronograma definido para o início das obras de recuperação do prédio atingido ou para o retorno das atividades comerciais nos imóveis interditados. As medidas emergenciais adotadas pelas autoridades ainda são de caráter técnico e de segurança estrutural. A comunidade cultural e patrimonialista local aguarda que o apoio anunciado pela Fundarpe se traduza em ações concretas e sustentáveis, com transparência, participação social e valorização da memória urbana.

A perda material provocada pelo incêndio no Cine Glória não se limita à arquitetura. Trata-se também de uma ferida simbólica em uma cidade que, apesar de sua riqueza cultural, frequentemente assiste à destruição silenciosa de seus marcos históricos. Como espaço de convivência, memória afetiva e produção cultural, o antigo cinema ainda resiste no imaginário de muitos recifenses.