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O mercado dos quadrinhos atualmente passa por uma transição em que busca cada vez mais pensar e discutir não apenas a questão da representação feminina nas histórias, como também a participação das mulheres no processo criativo. No Brasil, é apenas a partir do finalzinho dos anos 1980 e início dos anos 1990 que quadrinistas, roteiristas e ilustradoras passam a ser reconhecidas em premiações e é desde então que começam a surgir artistas autorais inspiradas pelas publicações independentes. Mas, antes disso, quem eram as mulheres que conseguiam superar o preconceito de gênero e trabalhar em uma área tão predominantemente masculina?
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Rastrear as mulheres pioneiras nos quadrinhos brasileiros não é tarefa fácil. São poucos os registros disponíveis e muito dos trabalhos e da história dessas mulheres foram esquecidos com o tempo. Nos últimos anos, iniciativas promovidas pelos sites independentes Mina de HQ, Lady’s Comics e Minas Nerds têm se esforçado para recuperar a memória dessas precursoras que se aventuravam em um meio em que muitas vezes precisavam assinar sob pseudônimos para serem reconhecidas por seu público.
Uma das pioneiras dos quadrinhos brasileiros é Maria Aparecida Godoy, a Cida Godoy, cujo início da carreira nos quadrinhos é pra lá de interessante: natural de Guaratinguetá, interior de São Paulo, ela começou sua trajetória de forma nada menos inusitada como escrevendo argumentos para revistas em quadrinhos de terror, entre elas Calafrio e Mestres do Terror, se baseando nas narrações que ouvia quando criança. De origem humilde, não havia condições para que a família de Cida pudesse comprar um aparelho de televisão durante sua infância, de forma que eles tinham apenas o rádio e, para se divertir, reuniam-se todas as noites contando “histórias de assombração” uns para os outros.
Quando Cida estava no ensino fundamental, a escola em que estudava pediu para que os alunos fizessem uma pesquisa visitando as cidades do Vale Paraíba para recolher narrativas folclóricas locais. “Conversando com roceiros, matutos, benzedeiras e tropeiros da região, eu pude perceber como aquela gente simples possuía uma imensa riqueza de relatos surgidos da superstição, do medo e do profundo respeito pelo sobrenatural”, disse ela em 1988. É de tudo isso que vai brotar o seu interesse por histórias de terror e suspense, pelas quais era apaixonada.
Tendo como base os causos que ouvia em casa e com o material de sua pesquisa em mãos, Cida passou a escrever diversos contos de horror baseados no folclore brasileiro e começou a enviá-los para editoras da cidade de São Paulo na esperança de que alguma se interessasse por seus textos – afinal, as revistas do gênero faziam muito sucesso naquela época, fim dos anos 1960.
Em 1968, Rodolfo Zalla, então diretor de arte na editora Taika, gostou tanto da história “A Vingança da Escrava”, que decidiu comprá-la e aproveitá-la na revista Estórias Negras, publicada pela Gráfica Editora Penteado (GEP). À revista MeMo ele relembrou: “Eu comprei a história porque vi que ela tinha boas ideias. Mas não sabia exatamente como se escrevia um roteiro, então mandei pra ela um roteiro de Gedeone [Malgagola] e um do [R.F.] Lucchetti para ela ver como eram e ela aprendeu rápido. Depois disso, ela se profissionalizou”.
Zalla enviou para Cida uma carta discorrendo sobre seu interesse em publicar o texto e esse foi exatamente o incentivo de que ela precisava para continuar escrevendo. Não demorou muito para que a argumentista tivesse o volume de trabalho aumentado, sendo requisitada para escrever para várias revistas avulsas. Segundo ela, este “foi um período intenso e produtivo, quando pude aproveitar toda a minha potencialidade em criar argumentos de boa qualidade, até mesmo saindo bastante das crendices populares para abordar outros temas. Nesta fase surgiram as melhores histórias, como as de Zora, a mulher-lobisomem para a GEP e Drácula, para a Taika”.
Com desenhos de Nico Rosso, as histórias de Drácula assinadas por Cida Godoy faziam sucesso, principalmente devido à sua originalidade – em um de seus textos, ela chegou a promover um inusitado encontro entre o conde vampiro e ninguém menos que Joana D’Arc. Outras vezes, sua inspiração também vinha do cinema. Em Da Transilvânia para os trópicos: Drácula nos quadrinhos brasileiros, o doutor e mestre em Multimeios pela UNICAMP Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade analisa que muitas das histórias de Drácula escritas na época de Cida eram fortemente inspiradas nos filmes de horror dos anos 1960 e 1970, e aponta que em “Fecundação Satânica”, primeira parte de uma história em três partes entitulada “O Príncipe”, “a argumentista Maria Aparecida de Godoy nem se incomoda em trocar os nomes dos personagens Asa e Javuto (que já tinha utilizado na história ‘Sexta-Feira Negra’ para a mesma editora), assim como no filme [A Máscara do Demônio; Mario Bava, 1960] executados por feitiçaria no início da narrativa passada em tempos medievais”.
Enquanto Cida estava no auge de sua carreira, o país atravessava um período de tensão devido ao golpe militar de 1964 e logo chegou o momento em que a censura imposta pelo regime alcançou os quadrinhos de terror, fazendo com que essas publicações fossem paralisadas.
“Tudo o que eu podia fazer naquela época era continuar exercitando a imaginação, escrevendo histórias mesmo que elas não tivessem oportunidade de chegar ao público. Vim para a capital [de São Paulo] e trabalhei como desenhista na Sabesp, mas continuei esperando uma nova chance nos quadrinhos”. E foi na revista em quadrinhos de terror Calafrio, para quem Cida concedeu a entrevista cujas aspas são utilizadas aqui, que a partir dos anos 1980 ela encontrou novamente uma chance de se dedicar à sua paixão. A revista publicada pela editora D-Arte circulou até 1993 e pouco se sabe sobre a produção de Cida após isso.
Em 1997, ela foi homenageada com o prêmio Ângelo Agostini na categoria Mestre do Quadrinho Nacional, honraria concedida a artistas brasileiros que estejam há mais de 25 anos ligados aos quadrinhos. Depois disso, há ainda registros de uma história assinada por ela (“Noturno nº 13”) na edição comemorativa de 20 anos da revista Calafrio, publicada em 2002 pela editora Opera Graphica, e uma HQ eletrônica publicada em 2009 pela editora Nona Arte. Desde então, a autora parece ter sumido do mercado.
Em uma sociedade que leva tantas mulheres a desistirem de continuar escrevendo e desenhando, me pergunto o que será que pode ter levado Cida Godoy a interromper sua produção em quadrinhos. Fazendo uma breve pesquisa, é fácil descobrir que ela agora faz parte da coordenação da Pastoral Afro Achiropita que, de acordo com o site, “busca resgatar as raízes do povo afro-brasileiro, valorizar sua cultura e preservar sua dignidade”. Também há registros de um site pessoal em que ela declara estar se dedicando “a investir na pesquisa de materiais, técnicas, cores e estampas étnicas para produzir acessórios afro-brasileiros, de modo artesanal”. Há algo de belo em saber que agora ela se dedica a resgatar e preservar as raízes do povo afro-brasileiro. Faz sentido para uma mulher que iniciou sua carreira resgatando histórias.
Apesar de não estar mais publicando seus textos, Cida Godoy não rejeita seu passado como uma das precursoras nos quadrinhos brasileiros de terror: ela esteve presente no 2º Encontro Lady’s Comics e também concedeu uma entrevista para o primeiro número da revista Risca!, falando sobre sua vivência como roteirista e sobre como era publicar nos anos 1960, época de ditadura. Se antes era Cida quem resgatava as histórias do folclore brasileiro, agora cabe a essa geração manter viva na memória a contribuição desta artista notável que conquistou seu espaço sendo uma mulher negra em um mercado em que ainda há um número reduzido de mulheres e, principalmente, de mulheres negras.
FICHA
Nome: Maria Aparecida Godoy
Natural de Guaratinguetá, SP.
Carreira: 1968 – 1993
Principais trabalhos: Histórias de Drácula em Mestres do Terror e contos na revista Calafrio.
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