“O estigma da Aids ainda existe basicamente por conta de homofobia, transfobia, racismo, moralismo e falta de acesso à informação”, afirma o diretor carioca Gustavo Vinagre, que acaba de lançar seu mais novo longa-metragem Deus tem Aids, em parceria com o cineasta pernambucano Fábio Leal. A produção – em exibição no Mix Brasil – foi eleita melhor filme no Festival Internacional de Cinema Queer do Porto, em outubro. Segundo o júri, o filme é “uma renovada leitura” de pessoas vivendo com HIV. Vinagre é, sem dúvida, um dos maiores talentos da atualidade e de sua geração.
Atualmente, o diretor de 36 anos – que começou a carreira com curtas-metragens Filme para poeta cego (2012) e La llamada (2013) – lançou também em 2021 o longa-metragem Desaprender a dormir. Flávio e José têm tido ruídos entre si por conta de suas atividades. Flávio edita filmes pornôs e o segundo tenta finalizar uma teoria sobre a presença humana em Marte. “O roteiro foi adaptado para essa realidade pandêmica, vários atores foram dirigidos remotamente e produziram suas próprias imagens, e éramos uma equipe muito reduzida”, explica o diretor, que estudou letras na Universidade de São Paulo e, após se formar, foi para Cuba, onde fez sua especialização em roteiro.
Por lá, ele aprendeu a trabalhar com poucos recursos, o que é realidade também aqui no Brasil. Os filmes do cineasta transitam entre a ficção e o documentário, a partir do momento que ele, como diretor, interage e interfere diretamente nas obras.
Em Cuba, Vinagre rodou o premiado La llamada sobre o revolucionário Lázaro Escarze, que aparece recém-conectado à possibilidade do uso de telefone. A produção anterior de Vinagre foi o curta Filme para poeta cego sobre Glauco Mattoso, poeta cego sadomasoquista, um documentário sobre a sua própria vida.
Um dos filmes mais aclamados da trajetória do realizador é o média-metragem Nova Dubai (2014), no qual num bairro de classe média numa cidade do interior do Brasil, a especulação imobiliária ameaça os espaços afetivos da memória de um grupo de amigos. Sua resposta diante dessa mudança é praticar sexo em locais públicos e nessas construções. A obra foi destaque em diversos festivais e mostras como BAFICI, Olhar de Cinema e Mix Brasil. Trata-se de um filme raro que impele o espectador a enfrentar os códigos morais que suporta e a ver os que considera insuportáveis. Precisa, pois, ser visto, justamente para sair do gueto de um filme gay ou da classificação restritiva de uma etiqueta queer. “Nova Dubai é um marco pra mim, pessoalmente, um ponto de não retorno”, observa.
A respeito do tratamento dado à cultura por parte do governo federal, Vinagre é taxativo: “Votar no Lula pra presidente. Melhor ainda, o impeachment do Bolsonaro antes disso”, dispara.
Nesta conversa, o cineasta revela seus interesses no cinema, analisa sua trajetória e critica o atual desmonte na área, Confira:
Você aportou no Festival Ecrã com Desaprender a Dormir, longa-metragem filmado em plena pandemia de Covid-19. Qual é a experiência de filmar nesse contexto?
Esse é um projeto que tenho desde 2014, que surgiu na viagem para a estreia de Nova Dubai, em Torino. Considero o filme uma “continuação” de Nova Dubai, no sentindo que, como ele, busca entender o pornográfico, os limites entre o obsceno (fora de cena) e o que está em cena, em cheque, sendo mostrado. O filme obviamente não conseguiria um edital para ser feito, e decidi que ou faria na pandemia, ou nunca. O roteiro foi adaptado para essa realidade pandêmica, vários atores foram dirigidos remotamente e produziram suas próprias imagens, e éramos uma equipe muito reduzida para as cenas do casal no apartamento – eu, Caetano Gotardo, e Rafael Rudolf. Filmamos com celular, pois isso facilitaria tudo e permitiria que não necessitássemos de mais uma pessoa no set (e assim, mais um risco de contágio). No entanto, o filme não faz nenhuma referência direta à pandemia de Covid-19, embora trate, eu acho, de uma pandemia anterior, que é a do excesso de informação e desinformação, dos cliques e dos likes. Se em Nova Dubai, os personagens flanavam pela cidade da mesma maneira que por seus celulares, agora os personagens são parte da internet, um organismo só, informático – um corpo erótico virtual. O celular se torna um falo, e um falo pode ser qualquer coisa (como a internet): um dildo verde chromaqui onde é exibida a história do cinema, a pornografia, os memes. Eles sonham com um outro planeta, pois seu próprio planeta se tornou a nuvem.
A experiência foi útil para manter a cabeça ocupado nos momentos de tensão.
Preciso dizer que amo cada um dos envolvidos neste filme, que toparam essa aventura sem ganhar tostão, e que são grandes atores, atrizes, profissionais de cinema.
Você realizou uma espécie de “trilogia de uma pessoa só” com Lembro Mais dos Corvos, A Rosa Azul de Novalis (codirigido com Rodrigo Carneiro) e, por último, Vil, Má. Foi algo planejado? As histórias dessas personagens se conectam entre si?
Não sei se foi planejado, mas fez sentido pensar dessa maneira. Estes filmes já fazem parte de uma pesquisa mais ampla que eu vinha fazendo nos curtas Filme para poeta cego, La llamada e Mãos que curam. Todos filmes de um personagem só. A experiência queer sempre se conecta em algum ponto, e acho que tenho uma queda por personagens inventivos, que possam criar e recriar suas realidades. Por isso mesmo essa predileção por personagens-artistas, como Wilma e Glauco, que usam até pseudônimos para, supostamente, demarcar realidade e ficção. Para documentar sonhos, fetiches, desejos, memórias é preciso personagens que sonhem, lembrem e sintam um puta tesão.
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Como foi essa passagem de deixa de observar os dramas alheios, em relação aos três filmes citados, para filmar agora questões não são apenas individuais, mas de uma relação entre dois personagens, no caso, Flávio e José em Desaprender a dormir?
Acho que meus filmes sempre flutuam entre esses registros. Curtas como Filme-catástrofe, Chutes, Cachorro, Os cuidados que se tem com o cuidado que os outros devem ter consigo mesmos , o inédito Medo medo medo, e o próprio Nova Dubai são filmes puramente ficcionais. Tentando analisar o que eu faço, eu diria que meus filmes seguem três linhas: 1) A documental, basicamente interessada em documentar o não documentável (sonhos, memórias, fetiches), muito focada em um só personagem; 2) A ficcional pornográfica, interessada em testar limites do que pode ou não ser visto, na maior parte das vezes com uma estrutura muito mais fragmentada e num formato coral, com muitos personagens; 3) E os filmes ficcionais que tem uma mensagem política muito direta, com humor e um certo cinismo, e que passam muitas vezes por uma certa doçura, uma fofura.
Para mim, Desaprender a dormir se encaixa na segunda categoria. Obviamente, essas categorias se interseccionam em diversos momentos.
Como surgiu a ideia de realizar o Vil, Má? Como foi pensada a estrutura desse filme? Por que escolheu filmar quase em sua totalidade um enquadramento centralizado e frontal da protagonista?
Esse filme surgiu de um pedido da própria Wilma, que foi a uma sessão do Mix Brasil ver Filme para poeta cego, já que ela conhecia Glauco de longa data. Aí, ela se apresentou para mim e contou toda a sua história e eu fiquei hipnotizado por aquela mulher sensual, de decote, com um vestido de veludo azul e salto azul, e que flertava comigo sem ter o menor pudor com o fato que ela tinha já mais de 70 e eu menos de 30, na época. A partir daí, começamos uma relação de amizade – Wilma vive na mesma cidade que minha mãe – e muita troca de ideias e histórias.
A estrutura do filme sempre foi pensada como um relato espelhado ao outro. Como duas dimensões de uma mesma realidade, que, muitas vezes, se misturam e se confundem. Então, no primeiro dia de filmagem, gravamos com a personagem ficcional Wilma Azevedo, e no segundo dia, com a jornalista Edivina, criadora da primeira. A fotografia do filme (feita por Thais Taverna) também busca, de certa forma, essa dicotomia, essa dupla personalidade. Wilma era filmada com duas câmeras semi-laterais, que se cortadas de uma para outra, criavam um salto de eixo. Eram esses estranhamentos, esses dois lados da mesma moeda que buscávamos. Acabamos cedendo à beleza de Wilma, e tivemos uma terceira câmera centralizada em seu rosto – o que acho que acabou fazendo sentido formalmente, já que, muitas vezes, nem eu nem a própria Wilma/Edivina sabíamos mais qual história era de qual personagem, ou qual delas tinha criado a outra.
Em toda a sua trajetória, Nova Dubai é o seu filme mais lembrado. O que ele representa dentro da sua obra?
É engraçado, pois é muito lembrado para um certo público brasileiro que consome filmes de festivais. Para fora do Brasil, os filmes mais lembrados são justamente os da “trilogia”, que foram para grandes festivais e estrearam no Mubi. Mas sim, acho que Nova Dubai é um marco pra mim, pessoalmente, um ponto de não retorno. Um filme que amedronta as pessoas, e que faz muita gente me ver como um cara soturno até hoje. Sem dúvida, para mim, que sou uma pessoa bastante tímida e insegura, fazer Nova Dubai – após uma nudez tímida, mas que já havia sido muito libertadora para mim em Filme para poeta cego – foi um grande passo: colocar certas cartas na mesa, e me sentir preparado para fazer qualquer coisa, abandonar vergonhas, hipocrisias, medos.
No entanto, me parece curioso que até hoje o filme seja lido como revolucionário. Em vários debates, sinto que os personagens são vistos como rebeldes/políticos, e já vi até discussões sobre o significado do estupro do corretor de imóveis na cena com Caetano Gotardo, que seria uma espécie de “erro” do filme, pois os corretores não são o topo da pirâmide de exploração (e quem deveria de fato ser “fodido” é a elite). Acho esse tipo de leitura um tanto ingênua. Para mim, os personagens são jovens alienados da classe média, que não estão fazendo nenhum tipo de statement político, estão apenas reproduzindo a fantasia pornográfica que consomem diariamente. Se existe alguma leitura sócio-política da cena do estupro, seria a classe média fodendo a classe média, reproduzindo também as violências que consomem, e perpetuando uma espécie de autofagia de classe. Sem embargo, não dá pra fazer qualquer leitura que deixe de fora a ironia da cena como comentário de uma estética pornográfica gay: o corretor entra no jogo, quer mais, implora por mais; e será que não era um jogo desde o início? Sinto que essa leitura de “filme político” muitas vezes está contaminada pelo vídeo que fizemos para arrecadar dinheiro no Catarse, onde eu prometia um filme que não tinha muito a intenção de cumprir, mas que era algo com intuito marqueteiro. De certa forma, o filme é, de fato, político, como qualquer filme, só não concordo que os personagens sejam sujeitos conscientemente políticos.
Sou muito feliz com o filme e muito grato com todo mundo que contribuiu financeiramente para que ele acontecesse, e por tanta gente que segue fazendo parte da minha trajetória cinematográfica que se uniu neste filme: Max Eluard, Beatriz Pomar, Rodrigo Carneiro, Matheus Rocha Pereira, Bruno D’Ugo… Pessoas que se tornaram grandes amigas, e que seguem fazendo parte do meu fazer criativo.
No livro Fazer um filme, Federico Fellini afirma que fazer um filme é “como se estivesse fugindo, como se houvesse uma doença que precisasse superar, cheio de sofrimento e rancor com relação ao filme, como se fosse uma desgraça da qual eu devesse me libertar”. Como é para você fazer um filme?
Sofro de ansiedade e síndrome de pânico. Fazer um filme envolve sim sofrimento, mas também é um refúgio pra mim. Sentir as pessoas juntas com um mesmo objetivo num set é extremamente poderoso e faz acreditar num mundo mais unido. Pra mim, fazer um filme não tem muita explicação, é algo que, às vezes, é racional, às vezes te atropela. Não tem razão de ser, mas é a única razão. É um paradoxo.
Como era a sua relação com imagem na infância? Qual a lembrança mais remota de um filme?
Eu cresci vendo Gremlins, ET, Meu primeiro amor, O dia da marmota, Ghostbusters, Jurassic Park, Esqueceram de mim. Acho que o momento que mais me fisgou foi quando fui ver Scream em 1996, aos 11 anos, com minha irmã mais velha. Na época, nem perguntaram a minha idade. Eu saí da sala transformado, eu queria matar pessoas – brincadeira – eu queria fazer filmes e pensar filme – e Scream era um filme que pensava filmes. Depois, na cidade em que passei a adolescência, só tinha Cinemark, e via o pior de Hollywood – nada parecido com os filmes citados acima – e sempre saía com muita frustração e tristeza. Mas continuava indo. Então, um dia, fui ver Dançando no escuro no Cinemark, aos 15 anos. Para um adolescente numa cidade industrial do interior de São Paulo, foi como uma pane no sistema – e extremamente importante pra mim, apesar de estar na moda detestar tudo que o Lars [o cinesta dinamarquês Lars Von Trier] fez.
Uma pergunta com relação a roteiro: você é muito rigoroso ou o roteiro pode ser modificado durante a filmagem?
Sou rigoroso e pode ser modificado.
Você já declarou que “a ideia de estar fazendo me anima mais do que a de tentar chegar num filme ideal”. Comente.
É porque realmente acredito que ainda estou em formação. Quero provar coisas, gêneros, estilos. Gosto de experimentar. Provar coisas cria imperfeições que eu amo, que é onde eu acredito que se esconde uma certa fagulha artística. Talvez um dia eu siga um estilo só, amadureça nele, e busque fazer o filme perfeito… Mas até lá, o mundo já pode ter acabado, e quem vai se importar com filmes, não é?
A cultura e o cinema brasileiro tem passado por um verdadeiro desmantelamento no governo Bolsonaro. Qual a forma de driblar o desmonte no cinema?
Votar no Lula pra presidente. Melhor ainda, o impeachment do Bolsonaro antes disso.
Qual sua leitura sobre a produção de filmes LGBQIA+ no Brasil atualmente?
Rica, diversa, aplaudida!
Que tipo de espectador você é com seus próprios filmes?
Depende do dia. Às vezes embarco e me emociona, outras vezes só vejo as falhas e o que teria feito de diferente. Em geral, sinto carinho, pois sei o tempo que dediquei a cada um deles.
Deus tem Aids é um novo longa-metragem seu, fruto de parceria com o diretor pernambucano Fábio Leal, que estreou mundialmente no Sicilia Queer, e tem sessão no Brasil marcada para novembro no Festival MixBrasil. O que pode adiantar dessa nova obra dirigida por vocês dois?
Bom, o filme estreou, e acaba de ganhar Melhor Filme e o Prêmio do Público no Queer Porto, e agora ruma ao IDFA [The International Documentary Film Festival Amsterdam]. É um filme que fala de vida, tesão e arte, e que quero que seja visto pelo máximo de pessoas possível, porque o estigma da Aids ainda existe basicamente por conta de homofobia, transfobia, racismo, moralismo e falta de acesso à informação, e todas estas aberrações sociais que eu citei precisam ser tratadas com muita urgência, pois para o vírus do HIV existe tratamento eficaz faz tempo.