Ilustração de David Shamá
Denise Maria, 28 anos, casou-se cedo e foi dentro do Maracatu Feminino de Baque Solto Coração Nazareno, em Nazaré da Mata, Zona da Mata Norte, 53 km do Recife, que buscou forças depois de ser vítima de violência doméstica no seu casamento. Foi na cultura popular, como cabocla de lança na brincadeira que encontrou apoio, solidariedade e sentido para superar também uma depressão no período.
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+ Cultura popular segue viva nas novas gerações
+ Mamulengo se reinventa com novos brincantes
+ Pífano segue vivo na empolgação dos novos artistas
+ Maracatu de baque solto e a nova geração de mestres
Atualmente Denise é mestra cabocla do maracatu, formado apenas por mulheres, e criado na Associação de Mulheres de Nazaré da Mata (Amunam). Com três filhos, Denise entrou cedo no Coração Nazareno. “Eu entrei aqui por causa de um projeto para tirar da rua crianças e adolescentes, para não se envolver com drogas. Cheguei no ateliê, que eu sou muito curiosa de nascença, e disse que queria brincar de cabocla”. Tia Marinalva, uma antiga cabocla fundadora do Maracatu, perguntou a Denise: “e tu aguenta? Tu magrinha desse jeito?”. “Aguento sim, eu quero brincar”, respondeu na hora a mestra sem pestanejar.
Levando jeito para a brincadeira, rapidamente Denise saiu de aprendiz para puxadora de cordão, e assim que a oportunidade surgiu, foi alçada a Mestra Cabocla. Apesar de ser a primeira mulher da família a entrar na brincadeira, ela explica que a tradição do maracatu está na família há muitos anos “Já vem de berço, dos meus tios, dos meus bisavôs, minha família era de candomblé e a gente já vem com essa cultura no sangue”.
Quando perguntada como se sente como cabocla de lança, a resposta é certeira. “Eu me sinto muito realizada, combina comigo. Eu sou forte e gosto de enfrentar mesmo”. Denise explica que essa força se construiu com o suporte das colegas da Amunam. “No tempo da minha gravidez eu fui abandonada, aqui foi o único lugar que me deu força. Eu apanhei muito, de ficar de olho roxo e tudo, eu apanhava e ficava calada. Todo mundo daqui se juntou para me ajudar e desabrochou uma vontade: ‘não vou mais ficar calada, agora eu vou botar pra cima'”.
Quando segura a guiada de cabocla, é nas mulheres que ela pensa. “Segurar essa guiada representa a minha força e a de todas as mulheres. Daquelas que não tem coragem de brincar, das que não tem coragem de sair de casa para entrar no maracatu porque o marido não deixa. Ali eu estou mostrando a todas elas que a gente pode sim”, afirma.
A guiada é a ferramenta que representa o caboclo de lança e costuma ter dois metros de comprimento. Feita de madeira imbiriba ou de quiri, geralmente é cortada pelos próprios brincantes na mata, assada e enterrada na lama por quatro a cinco dias para endurecer. Depois é descascada e afilada na ponta de quatro quinas, antes de ser toda enfeitada por dezenas de metros de fitas coloridas. Serve para abrir os caminhos do cortejo no desfile. É uma espécie de guia, direcionamento, para os brincantes.
” Na cabeça desse povo, as mulheres não servem pra nada. Só para lavar a roupa, fazer comida, levar os meninos para a escola e tomar conta do marido. Para brincar de cabocla, elas aqui não têm vez” explica Denise. Apesar do Coração Nazareno já estar plenamente estabelecido e ganhar cada vez mais admiradores, a cabocla afirma que em várias cidades as mulheres ainda escutam com frequência mensagens para saírem da brincadeira. “Quantas vezes eu fui esculhambada? Mandaram eu ir lavar roupa, mas não tô nem aí, passamos por eles belíssimas. As pessoas de fora dão mais valor do que as pessoas daqui. O dos homens todo mundo gosta, mas o das mulheres não”, desabafa.
A historiadora e pesquisadora Carmen Lélis explica que a existência de uma cabocla de lança é um avanço enorme dentro da cultura do Baque Solto. “O caboclo de lança é um personagem alegórico muito simbólico dentro desse brinquedo e trata uma relação de embate fictício, com a guiada que serve também como instrumento de luta. O caboclo trata de uma virilidade, uma masculinidade”, disse. “E está revestido de muita masculinidade, uma mulher nesse papel é muito forte e representativo”, completa a pesquisadora.
Sincera e firme em suas opiniões, Denise não é do tipo que foge de briga, ainda mais dentro do maracatu. “Eles têm que saber que a gente é mulher, mas a gente não está no mundo para abaixar a cabeça para eles”.
AMUNAM e a luta pela defesa das mulheres
Fundada em 23 de janeiro de 1988, a Associação de Mulheres de Nazaré da Mata nasceu com a proposta de lutar pelos direitos, desejos, sonhos das mulheres e para o enfrentamento da violência doméstica contra mulheres, crianças, adolescentes e jovens.
A ideia era justamente enfrentar a violência doméstica na cidade de Nazaré da Mata, como explica Eliane Rodrigues, 67 anos, radialista e fundadora da Amunam e de seus projetos. “Nem existia a Lei Maria da Penha, nós já trabalhávamos com esse ideal. Nós fomos a primeira associação de mulheres da Mata Norte do Estado de Pernambuco”, recorda.
Eliane explica que no começo tudo foi caminhando de maneira tímida, mas com muita garra e coragem o cenário foi melhorando. Atualmente, a associação atende mulheres e seus familiares, crianças e adolescentes. “Nós trabalhamos em várias dimensões, na capacitação e qualificação profissional e na inserção das mulheres na cultura”.
Aqui Eliane faz questão de destacar que não é que as mulheres estiveram fora da cultura em algum momento, elas sempre estiveram presentes. “O protagonismo, no entanto, sempre lhes foi apagado, nesse espaço elas têm a oportunidade de serem protagonistas não só dos brinquedos como de suas vidas”.
Foi a partir dessa ideia de inserir a mulher dentro da cultura popular que nasceu o Maracatu Feminino de Baque Solto. Fundado em 8 de março de 2004, não por acaso Dia Internacional da Mulher, o Coração Nazareno conta com a participação de 72 mulheres entre crianças, adolescentes, jovens, mães das meninas e mulheres atendidas pela instituição.
É através do maracatu que as mulheres do município de Nazaré da Mata têm oportunidade de participar da cultura que move toda a cidade e garantir a continuidade desse folguedo popular para novas gerações.
“Eu conheço maracatu, nasci vendo maracatu, cavalo marinho, coco e ciranda, porque eu nasci e fui criada aqui em Nazaré, e sempre teve aquela história dos homens dizerem que as mulheres não podiam participar do maracatu porque menstruavam”, detalha Eliane. “A história era que a mulher que menstruava trazia azar para o brinquedo”, explica.
Além disso, Eliane recorda que outra justificativa também era usada para impedir a presença feminina nas brincadeiras. “A outra coisa era que era brinquedo de homem e mulher não sabe tocar, não sabe mestrar, a mulher só sabia cozinhar e costurar”, lembra.
O Maracatu Coração Nazareno foi umas das formas que a Amunam encontrou para levar a delicadeza, a leveza e a força da mulher a um ambiente formado, quase exclusivamente, por homens. “Me veio a ideia de que já que os homens diziam que não podíamos com o peso do surrão, não sabemos mestrar, nem tocar, eu vou fundar um maracatu, ele vai sair no próximo ano e vamos mostrar que sabemos fazer”, conta Eliane.
A Coordenadora da Amunam lembra que no primeiro ano, o Coração Nazareno saiu para o desfile com 35 mulheres, e atualmente são 75 brincantes participando das apresentações. São 20 anos de história e a instituição ainda é o único Maracatu de Baque Solto formado apenas por mulheres.
“Eu costumo dizer que as mulheres que fazem parte do maracatu ou de qualquer outra cultura são símbolos da resistência, e não é resistência dos homens, ou do maracatu masculino, mas somos nós que nos inserimos em um espaço que por direito era nosso, mas que não éramos aceitas”, resume a fundadora da Associação.
Através das oficinas de artes as crianças e adolescentes, jovens e mulheres da Amunam confeccionam toda a indumentária e adornos necessários para o desfile do maracatu. Ao pregar as lantejoulas as mulheres discutem os motes a serem cantados nas apresentações. As principais temáticas escolhidas para os versos são loas que levem o público a refletir através de versos que falem de cidadania, gênero, violência e protagonismo feminino. Além do maracatu feminino, a Amunam também mantém grupo de ciranda e coco formado apenas por mulheres.
Coração Nazareno no Carnaval
Assim que chegamos em Nazaré da Mata, ouvimos uma conversa entre dois adolescentes sentados na praça da cidade, um desafiando o outro para saber quem aguentava o peso de um surrão nas costas. Em minutos, ficou evidente porque chamam Nazaré a capital do Maracatu. A cidade vive a brincadeira, algo inerente do cotidiano dos nazarenos.
No carnaval, o desfile dos maracatus é o grande momento da cidade. Para o Coração Nazareno não é diferente, todas as brincantes se reúnem na Amunam para o desfile na segunda-feira de Carnaval. É o momento mais aguardado do ano para elas. Nas ruas percebemos os rostos ansiosos esperando para ver os maracatus embelezarem as praças e avenidas. O Coração Nazareno é o segundo a desfilar, entrando logo depois do Maracatu Mirim Sonho de Criança, formado só por crianças.
Na sede da Amunam, as mulheres se ajudam, completam a maquiagem uma da outra, fecham botões, ajustam surrões, dão dicas e trocam abraços. Se preparam para a rua, para o desfile. Denise é umas das mulheres à frente de tudo, arruma as caboclas, reúne todas no pátio e passa as instruções. É ali que Eliane Rodrigues discursa: “Maracatu é para as mulheres, que a gente possa dar o sangue nessa luta, afinal somos resistência”. Antes de sair para cruzar o terreiro, elas rezam um Pai Nosso.
Os chapéus rosas enfileirados formam uma imagem forte e ao mesmo tempo delicada. O coração bordado nas roupas é a marca indefectível do Coração Nazareno. Como nós, diversos jornalistas de outras cidades se juntam para captar imagens das mulheres, que chamam atenção por onde passam. Nas ruas, um menino ou outro provoca com gritos na rua, muitos encaram sérios, outros, admirados. A Mestra Surama Reis entoa o lema delas “lugar de mulher é onde ela quiser”.
O desfile começa. Denise não baixa a guarda, ela entende a responsabilidade que carrega com a guiada na mão, abre os caminhos para o maracatu, mas não deixa de se divertir. Na volta para a sede está feliz. “O que eu mais amo fazer é brincar maracatu, ser cabocla de lança. Eu amo participar do Coração Nazareno. Nesse maracatu, eu me identifico muito, é um lugar onde eu sinto paz, boto tudo para fora, transbordo minha alegria, onde mostro o que eu posso fazer, o que eu sei fazer. Aqui é onde está a história da minha vida todinha”.
Os gritos no silêncio
“As mulheres nunca deixaram de gritar, mas sempre foram silenciadas. Então, é um processo extremamente difícil você falar da presença das mulheres e comprovar porque o registro histórico não era feito por elas”, explica a historiadora e pesquisadora de cultura popular Carmen Lélis. “O olho que dava a perspectiva de registro e documentação desses fazeres artísticos eram masculinos, então existe um registro mínimo com a presença feminina”, complementa Carmen, que foi uma das responsáveis pelo dossiê que elevou o frevo a Patrimônio Imaterial da Humanidade.
De acordo com a historiadora, era comum as mulheres terem vários direitos negados por conta dos casamentos, e a vida artística não estava imune a essa realidade. “As próprias famílias as impediam, por exemplo as musicistas e compositoras ouviam das mães e dos pais que elas não podiam jamais deixar de ter um bom casamento, em função de uma carreira artística”, diz. “As mulheres abdicaram das carreiras pelos casamentos, que faziam delas mulheres para parir, cuidar da casa, serem as esposas”.
Além disso, também havia os maridos que não aceitavam as mulheres na vida artística. “Portanto, havia um número imenso de mulheres que quando fizeram arte assinavam com outros nomes os trabalhos ou não assinaram, então o que dificulta hoje você afirmar o trabalho dessas mulheres, no Brasil e no mundo inteiro, é que não há a referência de quem fez”, detalha Carmen.
Assim como em outras artes, as mulheres sempre estiveram presente nas brincadeiras da cultura popular, seja costurando, preparando refeições para os brincantes, bordando os figurinos, ou dividindo o mesmo trabalho dos mestres. Porém, somente há pouco tempo foram reconhecidas e conseguiram firmar sua posição frente aos homens. “Elas foram apagadas, houve um processo de silenciamento mesmo pelo patriarcado”, relata a pesquisadora.
“Não é porque a gente ama e consagra a cultura popular como algo identitário nosso que ela deixa de ser conservadora. Então, se repete nela um projeto patriarcal, machista, racista, preconceituoso, que vem se alterando substancialmente nas últimas décadas, mas é um processo longo”, diz a pesquisadora.
Carmen cita o mamulengo como um exemplo de brincadeira que nos últimos tempos vem se adaptando aos novos tempos. “De uma maneira geral, as representações do teatro de mamulengos durante muito tempo retratavam os pretos tratados como negrinhos, negrinhos vagabundos. Mulheres como raparigas ou vadias. O fazer brincante para rir era um humor carregado de preconceito, que diminuía o papel da mulher, o que já vem mudando faz um certo tempo”.
Assim novas mulheres entram na cultura para contar suas próprias histórias. Suas preocupações e respeito com antigas e novas gerações provam que sem elas não existe cultura popular.
“A presença da mulher na cultura popular ou em qualquer outra instância é tão grande e vasta como a do homem. E não quero colocar essa questão de gênero, mas eu digo a presença humana mesmo. Porque a diversidade humana é importantíssima para o desenvolvimento da sociedade, então sem mulher não existe qualquer cultura”, resume a pesquisadora Carmen Lélis.
As Mulheres no Mamulengo
Filha do Mestre Zé Lopes de Glória do Goitá, município da Zona da Mata Norte de Pernambuco, a 64 quilômetros do Recife, a Mestra Cida Lopes, 34 anos, também vivenciou as mudanças de paradigma para as mulheres na brincadeira. “Antigamente eu ouvia sempre aquele comentário: rapaz, tu brinca bem! Parece um homem. Se fazia bem, era porque parecia um homem”, recorda. “Hoje em dia, já avançou muito. Antes era assim, o povo falava: mamulengo aqui que presta é só o de Zé Lopes e quando eu comecei a brincar eu entrava na barraca com o meu pai e o povo só aceitava porque não sabia que era eu”.
“Para mim, a diferença de quando uma mulher entra na brincadeira, é que ela logo já quer ensinar a outra. Meu pai me deixava livre, me estimulava, mas não parava para me ensinar. Os antigos mestres eram assim, você aprendia observando. Mas eu, assim que aprendi, fui ensinar a minha irmã. Minha mãe, a mesma coisa, ela ensinou a gente a fazer bonecos”, lembra. Cida ainda explica que sua mãe, a bonequeira Neide Lopes, foi a primeira mulher a fazer bonecos de mamulengo em Glória.
Com duas filhas, Cida considera que tem duas missões importantes: fazer com que as pessoas vivenciem a cultura popular e deixar um legado para suas meninas. “O mamulengo, assim como outras manifestações, faz parte da nossa identidade como povo. Meu espaço está sempre aberto e eu sempre me comunico com as escolas para levarem os alunos até lá. Por que os livros de arte têm cultura europeia, mas não tem nada sobre o mamulengo? Precisamos falar do que é nosso”.
“Em 2008, eu decidi que ia montar o meu mamulengo, o primeiro da cidade com três mulheres: eu, minha mãe e minha irmã. Durante as apresentações, eu grávida, pensava muito que eu precisava fazer um espaço que fosse das minhas filhas também. Que elas não só vejam o lugar de Vovô Zezinho botar o boneco, mas que elas se vejam nesse lugar”, comenta Cida.
Suas filhas, Eloisa e Fernanda, não só participam das apresentações junto com a mãe e a avó Neide Lopes, como também se divertem fazendo bonecos. Théo, seu irmão mais novo, de 15 anos, também entra na brincadeira e já planeja levar novas histórias para o mamulengo, incluindo a pauta LGBTQIAP+ e o trap, que é um gênero musical oriundo do rap. É caracterizado pelo uso de batidas lentas e pesadas, com um forte uso de sintetizadores. Para Cida, é muito importante ver sua família na brincadeira e essas novas visões das diferentes gerações. Por isso, mantém a tradição, respeita os costumes, mas atualiza partes da brincadeira para não reproduzir falas racistas e misóginas.
Outro exemplo dos novos tempos é a existência de um mamulengo formado só por mulheres, como é o caso do Flor do Mulungu ou o Mamulengo Nova Geração. Fundado por Mestra Titinha, ele pertence a Associação Cultural de Mamulengueiros e Artesãos de Glória do Goitá (ACMAGG),e rompe barreiras ao colocar uma mulher para assumir a figura do Mateus, historicamente feita por homens.
A artesã, bonequeira e mamulengueira Edjane Maria Ferreira de Lima, 40 anos, conhecida como mestra Titinha teve o primeiro contato com a brincadeira do mamulengo ainda muito nova aos 17 anos e desde então não saiu mais. Fundadora de dois grupos de teatro de bonecos – o Mamulengo Nova Geração (2008) e o Mamulengo Flor de Mulungu (2020) – desde o princípio ela se preocupa em trazer novas mulheres para o mamulengo, mas ainda nota algumas dificuldades.
“Eu acho assim, que além de mamulengueira e bonequeira, eu tive que virar produtora também pra conseguir um avanço nos meus grupos e nos da associação”, desabafa Titinha. “E pra mulher é mais difícil ainda nesse meio”. Por isso, Titinha faz questão de abrir as portas para mais mulheres. “O mamulengo por mais que você esteja há muito tempo participando, tem que dar espaço para as novas gerações. Por isso, coloquei a minha filha no Flor do Mulungu para garantir o futuro da brincadeira”, diz a Mestra.
Ano passado a mestra esteve à frente do Projeto ‘Mulheres Mamulengueiras – uma nova geração’, uma grande homenagem à presença feminina na brincadeira popular. Através de oficinas, exposição de bonecos, espetáculos e encontros de mestras, as brincantes apresentam suas vivências, contam suas histórias e perpetuam seu saber, ou seja, na prática é um investimento na formação de novas mestras na cultura.
Mestra Nice Teles e a insistência feminina
Filha de cortador de cana e brincante, Mestra Nice Teles, 55 anos, é uma artista popular criada na cidade de Condado, Zona da Mata Norte de Pernambuco, a 75 km do Recife. Desde criança, ela participa da brincadeira do Cavalo Marinho, já que seu pai também era um mestre da cultura.
Apesar disso, demorou até ela conseguir entrar para a brincadeira. “Desde a minha infância eu acompanhava meu pai para assistir o cavalo marinho e aí fui crescendo e gostando cada vez mais”, recorda a mestra. “Até 20 anos atrás, mais ou menos, a mulher não tinha espaço dentro do cavalo marinho porque era proibido mesmo”, complementa.
Cavalo-Marinho é um folguedo cênico brasileiro, típico do Nordeste e muito popular na Zona da Mata Norte de Pernambuco. O auto integra o ciclo de festejos natalinos da região, e o término se dá com o dia de Reis que presta homenagem aos Reis Magos.
As apresentações se processam ao som da orquestra conhecida como banco – pelo fato de os músicos ficarem sentados – composta de instrumentos de percussão e cordas, como: rabeca, ganzá, pandeiro e zabumbas. A brincadeira possui 76 personagens (figuras), sendo divididas em três categorias: humanas, fantásticas e animais. O espetáculo é narrado através da conversa, da declamação de loas e toadas – como são conhecidas as estrofes poéticas que integram o enredo.
Nice assistia as apresentações, mas nunca fora convidada a participar simplesmente porque as mulheres não podiam brincar. Até que em 2004 seu pai resolveu fundar o seu próprio brinquedo, e assim nasceu o Cavalo Marinho Estrela Brilhante de Condado. “Eu disse pra ele: vamos fundar, o senhor entra com o capital e eu com a mão de obra. Fiz pra ele uma lista dos materiais e pedi pra ele escolher umas crianças pra gente ensaiar”.
Apesar de conviver na brincadeira por causa do pai, Nice conta que partiu dela a vontade de se tornar uma brincante, e não teve apoio dele nessa decisão. “Pelo fato de não terem mulheres, eu fazia uns gracejos pro meu pai em casa tentando participar. Colocava máscara, um paletó, uma hora eu era Matheus, uma hora eu era Ambrósio e ele ria muito das minhas brincadeiras. Mas incentivo mesmo, eu nunca tive dele não”, lembra a mestra.
Nice recorda que chegou a pedir para o pai deixá-la brincar e ele disse que aquilo não era coisa de mulher. “Ele falou que as figuras ficavam de toda posição quando iam pro chão e a minha resposta pra ele foi: pai, depois que eu boto o paletó e a máscara no rosto eu sou um corpo que dança”. Mesmo com essa recusa, Nice continuou insistindo. Nessa época ela já tocava no Cavalo Marinho. Tempos depois, ela pediu pro pai ensinar alguma figura da brincadeira e ele cedeu.
“Tem momentos no Cavalo-Marinho que quando a figura saí ou o personagem vem falando, aí o povo entra. Em um desses momentos lá em 1980, eu entrei quando teve esse intervalo, quando eu entrei e comecei dançando alguém do Cavalo-Marinho chegou pra mim e disse: ‘Isso aqui é coisa de homem, não é coisa de mulher não’. Isso me marcou e marca até o dia de hoje”, recorda a mestra sobre uma das suas primeiras apresentações na brincadeira, quando tinha 11 anos.
E como é hoje em dia ser uma mestra de Cavalo Marinho? “No início foi muito difícil porque os olhares eram só de julgamento e isso desestrutura, principalmente por ser mulher, negra e estar fazendo uma coisa em um universo machista, onde predomina a força masculina”, conta Nice. “Jamais o homem da Mata Norte vai querer dividir sua glória com a mulher, por isso foi muito difícil. Porém, eu nunca perdi a vontade e hoje estar nessa função é motivo de muito orgulho”, celebra.
Vitória do Pife e a nova geração de mestras
Vitória do Pife, caruaruense, 24 anos, diferente de muitas mestras desse texto, não seguiu uma tradição familiar ou cresceu no meio da brincadeira. Seu encontro com o pífano se deu de maneira inusitada, em 2016 durante o ensino médio. “Eu queria tocar algum instrumento musical, e aí o meu pai que trabalhava como padeiro na rua do João do Pife me apresentou ao mestre. “O que danado é o pife?”, eu perguntei pro meu pai. Cheguei lá em seu João e ele: “Quer um chá, quer um café?” aquela alegria toda, dizia: “É bom que seu dedo é cumprido”. Vitória conta que foi o próprio João do Pife que escolheu um instrumento para ela. “Até hoje eu tenho ele guardado. Foi assim que eu comecei a aprender tudo sobre o pífano”.
Mais fantástico do que assistir o público vibrando com os shows de Vitória, tocando com mestres como Cláudio Rabeca e Anderson Miguel ou se apresentando em vários locais de Pernambuco, é ver como várias meninas ficam perto dela. Em uma simples ciranda a artista entra para a roda e várias meninas querem dançar ao seu lado, mais do que isso, disputam para ver quem ia segurar a sua mão.
A ligação que Vitória tem com as crianças já vem de algum tempo. As lições que aprendeu com seu mestre, João do Pife, ela passa para as meninas e meninos de Caruaru, Agreste de Pernambuco a 135 km do Recife. “Olha, eu comecei a ensinar pífano faz uns cinco anos para um amigo. Se ele aprendeu a tocar é porque eu sei ensinar, né? Então, eu comecei a formar turmas. Sempre gostei de criança, porque a minha mãe é uma grande cuidadora, sempre teve criança dentro de casa. Gostando de criança e gostando de pífano, juntei as duas coisas porque é importante que a gente não deixe a cultura morrer. Quem é que vai segurar a cultura nas costas e passar pra frente?”.
Essa preocupação sobre a manutenção da cultura do pífano, Vitória também desenvolveu acompanhando o trabalho de João do Pife. “Quando eu comecei, a tradição estava acabando. Seu João do Pife falava pra mim que ele tinha muito medo disso, porque o jovem não se interessava pelo pífano. Por isso, ele ficou muito feliz e me incentivou tanto. Eu vendo isso de perto, peguei gosto pra mim”.
Seu primeiro palco, como ela mesmo diz, foi um semáforo. Apesar de sempre ter o apoio de sua família, as pessoas do bairro não compartilhavam da mesma ideia. “Eu tinha 18 anos, bem nessa época eu cortei meu cabelo também, eu acho que é normal cortar cabelo, homens cortam o cabelo direto. Mas, o pessoal achou que eu tinha endoidado de verdade, acharam que era uma grande revolta”, diz. Apesar da estranheza dos vizinhos, os mestres sempre a apoiaram.
Suas referências dentro do pife são muitas, mas a única mulher, Vitória não conseguiu conhecer. “Dentro do pife a referência feminina que eu tive foi Zabé da Loca, mas eu não a conheci viva. Quando a gente vê uma pessoa que está na ativa, eu acho que isso inspira outras mulheres. Eu falo isso porque as mulheres chegam pra mim e falam ‘eu só tô fazendo aula contigo porque tu é mulher’. Atualmente mesmo, eu tô com o quê? Oito alunas. Só mulheres vêm me procurar. Mas isso é bom porque empodera. Você diz assim: ‘Eu posso também’”.
Sendo uma referência de mulher mestra pernambucana dentro do pífano, que toca, ensina e confecciona o instrumento, Vitória representa a geração de jovens que querem mais mulheres juntas nesses espaços. “Mulheres ocupam pouquíssimos cargos de poder, isso é uma questão estrutural. Mas eu acho muito importante e muito bonito quando eu vejo um movimento de mulheres que, independente de todas as barreiras sociais, vão lá e fazem o que sentem vontade. Tem muitas pifeiras e cada vez mais eu quero me juntar a elas porque a gente faz uma força grande”.
Mestra Joana e o apito do batuque de uma Nação
Com nome de santa, bruxa e guerreira francesa, Joana D’arc da Silva Cavalcante, ou apenas Mestra Joana, Yakekerê Mãe Joana de Oxum, 45 anos, é até hoje a única mulher a coordenar e apitar o batuque de uma Nação de Maracatu de Baque Virado, a Nação Encanto do Pina, na Zona Sul do Recife, da qual é mestra há 15 anos, além de liderar dois outros grupos: Baque Mulher e Mazuca da Quixaba.
“Eu nasci dentro do maracatu porque meu pai, minha mãe, meus avós, todos já eram do brinquedo”, conta. “Sempre houve incentivo de toda a família, toda a comunidade envolvida me apoiou porque eu sou do terreiro do Candomblé, e todos participavam do maracatu”.
Mestra Joana é neta da Yalorixá dona Maria de Quixaba, sacerdotisa do Ylê Axé e mestra das atividades desenvolvidas dentro do Ylê Oxum Deym, uma das mais antigas casas do bairro do Pina. Mesmo assim, até hoje ela enfrenta resistência masculina como mestra. “É uma luta constante, há ainda quem queira desvalorizar, tirar mesmo esse título de mestra, inclusive usando o argumento de que eu não agrego, não acrescento em nada nos eventos”, conta.
A mestra recorda duas passagens que ilustram bem o machismo que persiste na brincadeira, uma no início de sua trajetória como líder do Maracatu e outra bem recente. “Durante esse tempo à frente do Encanto do Pina eu venho colecionando episódios de machismo, o primeiro que eu me lembro foi quando eu assumi a Nação enquanto Mestra e todos os homens saíram porque não queria estar ali e serem regidos por uma mulher”, relembra. “E agora mais recente, após o Encanto ser campeão do carnaval, passei a sofrer vários ataques porque o maracatu ganhou o título”.
Ainda assim, a mestra se mantém firme e otimista em seu propósito, ela acredita que a maior presença feminina nesses brinquedos vai trazer um grande avanço paras as culturas. “Essa quebra de tabu é muito positiva em vários aspectos, porque é uma reparação histórica, um grande avanço mostrando que a mulher pode ocupar o lugar que ela quiser”, afirma.
De acordo com Joana, dentro do maracatu de baque virado sempre foram as mulheres que estiveram à frente de tudo. “Se eu for falar diretamente do maracatu, a mulher sempre foi base dentro da brincadeira, é ela quem costura, que cuida, que faz tudo.”, explica. “É a mulher que lidera suas comunidades e sempre foi invisibilizada devido a educação patriarcal, então assumir esses espaços é uma conquista necessária”.
A resposta de Joana a essa realidade foi criar o Maracatu Baque Mulher, grupo formado unicamente por batuqueiras que apoiam a luta feminina contra a violência, pelo empoderamento e sororidade. Atualmente, o Baque Mulher conta com mais de 42 filiais espalhadas por todas as regiões do país e em dois outros países: Portugal e Bélgica.
Movimento de Empoderamento Feminino Baque Mulher
“O Baque mulher surgiu de maneira muito orgânica, não foi planejado, eu senti a necessidade de ter um espaço onde nós pudéssemos tocar e sorrir, foi basicamente isso”, resume Joana. A mestra lembra que na época que assumiu a Nação Encanto do Pina, as mulheres estavam começando a tocar nessas nações de maracatu e o espaço era hostil para a presença feminina.
“Não podíamos sorrir porque quem estivesse sorrindo era encarado como falta de atenção no brinquedo, então naquele período era muito tenso ser mulher e tocar na nação”, recorda. Foi a partir desse incômodo que a mestra resolveu chamar umas amigas da Comunidade do Bode, no Pina, para montar algo pelo lazer mesmo, para que pudessem sorrir.
E foi aí, mais precisamente no ano de 2008, que começou o Baque Mulher. “Começamos a nos reunir aos domingos, só que quando rolava essa reunião por ser aqui no Pina, onde tem duas outras nações, não conseguimos ter privacidade porque alguns homens iam lá interromper, dar opiniões”, detalha Joana. Para solucionar esse mal-estar, ela resolveu ensaiar na Rua da Moeda, no Recife Antigo.
Inicialmente o grupo era chamado de Grupo Maracatu Baque Mulher, sendo renomeado, um ano após a sua criação, para Movimento de Empoderamento Feminino Baque Mulher que traduz melhor as ideias da mestra.
Desde o princípio, muitas jovens da comunidade aderiram ao projeto e participavam dos ensaios. “Começamos com nossas oficinas, eu ensinando as meninas a tocar maracatu e no final das rodas, eu sempre fazia um lanche pra elas e nesse momento começamos a conversar entre nós, passamos a nos ouvir mais”.
Dessas conversas foram surgindo os relatos de abusos, as inquietações por causa do cabelo crespo, enfim, as dores de serem jovens mulheres negras periféricas, o que despertou algo em Joana. “E aí foi quando eu comecei a militar, como combater isso, como combater a violência dentro da comunidade, como alertar essas mulheres sem pôr a minha vida em risco?”, reflete.
A resposta veio em forma de arte, quando Joana resolve compor “Maria da Penha é forte”. “É uma letra de militância, foi quando eu entendi que através do maracatu eu podia chegar nessas mulheres, então comecei a usar o Baque Mulher como uma ferramenta de luta mesmo”.
Cada filial do Baque Mulher tem uma coordenadora própria, mas segue os fundamentos da matriz e são acompanhadas de perto pela Mestra Joana. “No carnaval, sempre vieram mulheres do Brasil inteiro para desfilar no Baque Mulher. Elas foram conhecendo o projeto e perguntavam se podiam levar para as cidades delas, assim foram surgindo as filiais”, explica Joana.
O Baque Mulher se constrói como um espaço coletivo de luta. Dentro e fora do país, reúne mulheres que estão em busca de conexão e acolhimento. “O Baque Mulher é uma ferramenta de luta necessária para combater tudo o que o machismo causa. No nosso espaço, a gente consegue ouvir e falar. Com essa união, a gente tem forças para denunciar e não se calar mais. Quando a gente se organiza coletivamente, a gente ganha mais força. Cada filial que nasce aumenta mais ainda essa força”.
Em comum, todas as mestras mantêm uma preocupação em cuidar dos brinquedos e acolher e formar as próximas gerações que estão por vir. Mantendo a tradição, quebrando padrões e violências, a Mestra Joana entende o quanto a atuação do Baque Mulher é necessária para o futuro da cultura. “A maior necessidade desse movimento é dentro das comunidades. As jovens adolescentes são o nosso futuro. Essas meninas são nossa continuidade. Sem elas, na verdade, o Baque Mulher nem existiria. O Baque se tornou o que é hoje por conta delas”, explica.
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Esta reportagem foi produzida com apoio do edital Acelerando Negócios Digitais, do ICFJ em parceria com a Meta.
Créditos:
Reportagem: Yuri Euzébio e Gabriela Passos
Fotos: Hugo Muniz, Ivson Gambarra e Gabriela Passos
Edição: Paulo Floro
Revisão: Alexandre Figueirôa