Fotos por Gabriela Passos/Especial para O Grito!
Ilustração de David Shamá
Desde muito cedo, quando Cida Lopes, 34 anos, era ainda uma criancinha com seus sete anos de idade, costumava acompanhar o pai Zé Lopes, mestre mamulengueiro, artesão e Patrimônio Vivo do estado de Pernambuco, dentro da barraca dos mamulengos. Isso, naturalmente, acabou a incentivando entrar para a brincadeira e, invariavelmente, a transformou na mestra mamulengueira que é hoje em dia. “Eu acho que não foi intencional, claro, ele não tinha nenhum preconceito, mas as circunstâncias fizeram isso. Dentro de casa ele só tinha a minha mãe e as duas filhas. Era todo o mundo mulher, então se ele precisava de alguém tinha que ser as mulheres mesmo”, relembrou a mestra de Glória do Goitá.
“E aí começou, ele mandava ‘Vai pra frente! toca o instrumento. Vai pra barraca!’ Quando eu tava dentro da barraca com ele, ele colocava o microfone na minha boca e, mesmo tímida, ali, eu falava, brincava com os bonecos”, contou. Mesmo com essa infância rodeada pelos bonecos, foi só em 2008 que Cida decidiu abraçar de vez a arte do mamulengo. “Quando eu montei a minha barraca, eu já pensei em fazer coisas diferentes do que ele fazia porque queria mudar mesmo e ele sempre me incentivava. Sempre ficava na frente da barraca enquanto eu me apresentava”, disse. Cida recorda que quando acabava a brincadeira, o pai vinha elogiar.
Mas, não era exatamente como um feedback. “Ele não dizia nada sobre o que tinha que melhorar ou qualquer coisa desse tipo”, confessa aos risos. “Ele vem de um período em que o mamulengo não se ensinava a ninguém, quem quisesse aprender tinha que lutar bastante para observar dentro da barraca. Os mestres não abriam a barraca de jeito nenhum porque eles diziam que se abrissem perdia o encanto”. Cida conta que naquela época quando uma criança se aproximava da barraca do mamulengo levava cuspida, os mamulengueiros jogavam terra, não queriam de jeito nenhum que as crianças levantassem o pano para ver como era dentro do espaço.
Com o passar do tempo, essa antiga e estranha superstição foi ficando para trás. “Hoje o que eu mais faço é levar a criança pra entrar na barraca e ver os bonecos”, contou. “Não perde encanto nenhum não, depois que eles brincam com os bonecos, assistem a apresentação com o mesmo brilho nos olhos e entusiasmo”. Outra diferença que a mestra faz questão de salientar é que o mamulengo atualmente virou uma ferramenta para bons exemplos. “Eu pego o mamulengo como uma sala de aula também, porque como vamos disseminar uma brincadeira, uma tradição popular, se a gente não ensinar as pessoas?”, refletiu.
O mamulengo é uma forma popular e tradicional do teatro de bonecos no Brasil. Nasceu na região Nordeste e, daqui, migrou para grandes centros e outros países. É uma das expressões da cultura popular pernambucana, que tem sua trajetória marcada por construções e transformações tanto em suas representações simbólicas como em seus personagens e performances. Os bonecos ganham vida a partir de um pedaço de mulungu, madeira típica do Nordeste, e com um retalho de tecido nasce o mamulengo. O nome faz alusão à mão molenga, ou mole, necessária para despertar a vida da brincadeira.
Glória do Goitá, município da Zona da Mata Norte de Pernambuco, a 64 quilômetros do Recife, é o berço da brincadeira no Estado. Por concentrar o maior número de mestres e por abrigar o Museu do Mamulengo, até hoje o poder público utiliza oficialmente a alcunha de “Capital Estadual do Mamulengo”, que também é o que aparece numa placa na entrada da cidade. Até a década de 1960, o mamulengo era presença obrigatória nas grandes festas de rua , o que ajudou a difundir a cultura pernambucana no cenário nacional. Nos anos 1970 a tradição entrou em decadência, com a morte de muitos mestres e a pouca entrada de novos brincantes.
Além do pai, a mãe de Cida Lopes sempre fez parte da brincadeira. Dona Neide Lopes, 48 anos, é responsável pela confecção dos bonecos, vestir e também entra na barraca para brincar. “Eu comecei, primeiro, fazendo os bonecos que minha mãe me ensinou. Meu pai me incentivou a tocar os instrumentos, zabumba, triângulo, e fazer o papel do Mateus, que é uma pessoa que fica interagindo com os bonecos e o público”, relatou.
Até por ver sua mãe trabalhando no mamulengo, Cida acredita que as mulheres sempre estiveram presentes na brincadeira, ainda que não houvesse tanto incentivo para sua participação. “Eu não sinto um lugar de preconceito, de machismo mesmo, porque eu via a minha mãe dentro da barraca, meu pai era um dos poucos que incentivava, então eu não sentia esse preconceito. Claro que tinha uma surpresa das pessoas, de olhar e ver que era uma mulher brincando. Algumas vezes, senti um pouco de espanto do público ou quando participei de festivais e vi alguns mestres olhando com estranheza”, relatou. Cida ainda diz que hoje existem muitas mulheres brincando, diferentemente da época em que ela começou há 15 anos atrás.
Com uma leveza e serenidade típicas de quem tem segurança do que está fazendo e uma calma inabalável para explicar suas ideias didaticamente, Cida demonstra uma sensibilidade e preocupação com o futuro do mamulengo. Por conta disso, ela desenvolveu o projeto Pequenos Brincantes, que é centrado no cuidado com a formação das crianças artistas que brincam mamulengo, cavalo-marinho e maracatu de baque solto.
A iniciativa promove uma série de oficinas na cidade de Glória do Goitá, e já teve duas edições. A ideia central é difundir os saberes populares para as novas gerações e, com isso, contribuir para a salvaguarda das manifestações artísticas locais e patrimônios culturais pernambucanos.
Thiago e o Mamulengo Risadinha
Se antes as crianças eram proibidas de brincar no mamulengo por medo do encanto se quebrar, hoje em dia já tem até mestre mamulengueiro adolescente. Thiago Medeiros tem 14 anos e brinca no mamulengo desde 2020, mesmo sem qualquer parente ou membro da família que tenha relação com o folguedo. “Eu não tenho ninguém na minha família brincante, meu interesse surgiu através das oficinas que o museu oferece. Meu primeiro contato foi em 2020 em um projeto do Museu do Mamulengo de Glória, que fez uma junção do mamulengo com o cavalo marinho”, contou.
“Desde a primeira vez que eu fui lá, eu me senti muito acolhido no museu. Minha intimidade com os mestres é enorme, é realmente uma amizade”, destacou o jovem. No Museu do Mamulengo de Glória do Goitá, segundo Medeiros, desde o começo seus mestres fizeram questão de ensinar que o mamulengo não é apenas racismo, homofobia e preconceito como era antigamente. “Me ensinaram também o que são e como são as passagens das brincadeiras”.
Essa parte merece uma explicação: durante muito tempo, a brincadeira do mamulengo era marcada por temáticas racistas, homofóbicas, machistas, bullying. As passagens (histórias) eram preconceituosas, onde negros, gays e mulheres eram alvo de piadas jocosas. Inclusive, muitos personagens eram construídos única e exclusivamente dentro dessa perspectiva de fazer pilhéria com algumas minorias. Recentemente, isso vem mudando com a revisão desses temas com várias questões da sociedade sendo elaboradas nas apresentações com os personagens preconceituosos ou vítimas de preconceitos repaginados.
Um exemplo disso, é que em alguns teatros o Mateus já foi substituído pela Catirina, que antes era uma dona de casa maltratada e hoje é uma advogada ou alguns personagens que costumava agarrar as mulheres quando elas estavam dançando. Hoje em dia, esse personagem é preso por assédio.
São três os mestres de Thiago Medeiros: Mestre Bel, Mestre Bila e Mestra Titinha. Todos trabalham no Museu do Mamulengo de Glória do Goitá, um casarão no centro da cidade que abriga formações, oficinas, e ensaios de mamulengo. Além disso, abriga inúmeros bonecos e é uma oficina também para a confecção do brinquedo, ensinando desde o corte da madeira até o processo de pintura. O jovem mamulengueiro conta ainda como o mamulengo vem sendo atualizado nos últimos tempos. “Um exemplo muito forte são os personagens Caroca e Catirina, os dois vivem na roça. Então, antes, sempre a Catirina era a lavadeira de roupas. Hoje em dia, a nova geração já aprendeu que ela está na faculdade de direito para defender os seus filhos”, disse.
Segundo Thiago, apesar de haver uma juventude interessada na cultura popular e mais especialmente na arte do mamulengo, eles não são maioria. “Hoje em dia os jovens não veem mais isso como uma oportunidade, estamos no mundo da Inteligência Artificial, da internet, então os jovens ficam mais ocupados com isso do que com a cultura popular”, desabafou. “Eu acho que a cultura popular é muito importante, então não pode morrer. Para os jovens da minha idade, eu acho que temos que nos interessar mais pelas artes das nossas cidades”.
“Por exemplo, aqui na cidade é o mamulengo, mas tem os bonecos gigantes de Olinda, tem o maracatu em Nazaré, então temos que ter jovens tomando esse poder de brincar dentro das culturas populares”, declarou . Apesar da cidade ser reconhecida como capital do mamulengo e isso ser adotado até pelo poder público como propaganda, Medeiros sente falta de uma maior valorização local à cultura. “Eu vejo mais uma valorização de fora do que do município, não é que ele não apoie, mas falta ainda”.
Medeiros é um dos fundadores do Mamulengo Risadinha, o primeiro grupo de mamulengo formado apenas por crianças. Os meninos envolvidos no Risadinha formam um belo exemplo de renovação da tradição mantida de geração em geração. Alguns, assim como Thiago, não têm histórico familiar na área. Mas todos chamam atenção pela destreza com que manipulam os bonecos ou tocam os instrumentos. Além disso, alguns já se apresentaram com os adultos, como o próprio Medeiros que acompanhou o Teatro Arte da Alegria, do Mestre Bel. Apesar de muito jovem, o mamulengueiro demonstra uma admirável consciência da cultura popular e capacidade de articulação para explicar suas ideias, parecendo ter bem mais do que 14 anos. É um sábio escondido no corpo de um adolescente.
Na sua escola, Thiago chega a reclamar nas aulas de arte por um espaço que também trate da cultura popular. “Eu estudo numa escola de rede pública, eu não vejo em momento nenhum a gente tratar sobre cultura popular na sala. Inclusive, eu reclamei com o professor de artes por conta dos assuntos que ele passa”, disse. “Desde o começo do ano, ele ensina apenas sobre música e eu disse a ele que não era apenas música que é arte, a gente quer mudar, que falar de outra coisa que também seja arte. Eu não tenho aula sobre cultura popular, por exemplo. O meu interesse pela área foi através das redes sociais do museu. Fiz as oficinas e comecei a me interessar, e fiquei apaixonado pelo mundo dos bonecos”, completou o jovem.
Para Medeiros, dentro da brincadeira do mamulengo a parte que ele se sente mais completo é quando está dentro da barraca se apresentando. “Quando eu tô dentro da barraca e consigo tirar o riso das pessoas na plateia, isso é impressionante pra mim. Com o boneco na mão e fazendo o público gargalhar, isso é o que me encanta”.
Mesmo sendo uma das poucas crianças que é mestre do mamulengo na cidade, Thiago garante que nunca houve qualquer tipo de olho torto dos outros mestres aos integrantes do Risadinha. “Aqui no município, temos quatro mestres atuantes: Mestre Bel, Mestra Titinha, Mestra Cida Lopes e o Mestre Bila, os quatro gostam que estejamos na brincadeira porque, segundo eles, o mamulengo não pode morrer. Então, com jovens interessados, eles sabem que vamos repassar esse conhecimento no futuro”, disse.
Mestra Titinha e a Flor do Mulungu
Uma das mestras de Thiago, Edjane Lima, mais popularmente conhecida como Mestra Titinha é artesã, bonequeira e mamulengueira e trabalha no Museu do Mamulengo de Glória do Goitá, que é o principal ponto de cultura desse tipo de manifestação em Pernambuco. O museu fica situado em um antigo mercado público, espaço amplo e acolhedor. No local são expostas diferentes peças do teatro de bonecos, como também são realizadas oficinas de mamulengos e apresentações.
“Eu comecei como bonequeira através de um projeto que se chamava Prêmio Boneco Brasileiro no ano 2000. O intuito desse projeto era formar dois centros de revitalização do mamulengo em Pernambuco, um em Glória do Goitá e um em Olinda, e ter dois grandes polos de produção de bonecos e de mamulengueiros”, relembrou Titinha. A mestra relembra ainda que o projeto durou até 2002 e com o seu fim, os participantes fundaram a Associação Cultural dos Mamulengueiros.
Como continuidade ao projeto foi formalizada a associação e com o apoio do mestre Zé de Vina eles aprenderam outros elementos que faziam parte da apresentação. Após a oficina de Zé de Vina, no ano de 2008, eles formaram o “Mamulengo Nova Geração”, onde Titinha passou a brincar como Matheus ou contramestra dentro da barraca, e o grupo foi ganhando reconhecimento e proporção. “Aí foi quando eu tive contato com o mamulengo, de brincar mesmo, até então eu só sabia fazer o boneco mesmo. Na minha infância eu via o mestre Zé Lopes brincar e sempre admirei muito, mas era muito nova pra brincar”.
A Associação Cultural de Mamulengueiros e Artesãos de Glória do Goitá (ACMAGG) foi fundada no dia 07 de maio de 2003 e junto com ela, nasceu o Museu do Mamulengo de Glória do Goitá. A ideia de formar esta Associação foi da prefeita na época Fernanda Paes e da professora Cássia Nery, com intensa colaboração do Mestre Zé Lopes.
Elas ofereceram suporte técnico para os artesãos da cidade depois do encerramento do projeto Mamulengo: Boneco Brasileiro, coordenado pelo pesquisador Fernando Augusto. Este projeto teve o objetivo de criar um Centro de Revitalização do Mamulengo Pernambucano e transformar Glória do Goitá e Olinda em dois grandes pólos de produção de bonecos e de mamulengueiros. A primeira presidenta da Associação foi a artesã Vera Lúcia do Nascimento Rufino.
Em 2007, no dia 05 de agosto, foi eleita a Presidente e Artesã Edjane Maria Ferreira de Lima (Mestra Titinha) e, com ela, muitas conquistas viriam. O Mamulengo Nova Geração,fundado por Titinha e que pertence a Associação, rompe barreiras e coloca, inclusive, uma mulher para assumir a figura do Mateus, historicamente feita por homens.
Mestre Zé Lopes morava em frente da casa de Titinha e, mesmo antes do projeto, foi observando ele que a mestra deu os primeiros passos. Com os mestres Zé de Vina e Bila aprendeu a manipulá-los durante a apresentação, montar cenários e criar enredos. No começo de sua trajetória como mestra encontrou as recorrentes dificuldades, relacionadas ao preconceito de ser mulher, em uma arte com predominância masculina. Como resposta a esse movimento, em outubro de 2020, a bonequeira criou o Mamulengo Flor do Mulungu, o primeiro formado apenas por mulheres.
“Porque quando eu comecei no Nova Geração, que pertence a Associação de Glória, era eu e meu irmão. Depois era eu e mestre Bel, que é meu marido e filho de Zé Lopes, mas começou a ficar muito pequeno na barraca eu e ele, tanto de espaço quanto de presença mesmo. Dois mestres é difícil pra trabalhar. Aí eu pensei em fundar um mamulengo composto só por mulheres, mas não é um mamulengo com temáticas feminista. Ele brinca o tradicional como Zé de Vina passa, mas é apresentado só por mulheres”, esclareceu Titinha. Fazem parte do Flor do Mulungu a mestra Titinha, a contra mestra Jennifer ( filha de Titinha), Jacilene Félix interpretando o personagem Mateus, Catirina – zabumbeira, Genilda Félix – triangueira e Stefani no ganzá.
“Eu coloquei esse nome por ser uma flor de resistência e que é diretamente ligada ao mamulengo, já que é da madeira do mulungu que fazemos os bonecos”, explicou a mestra. O Flor do Mulungu é um projeto que simboliza a busca da mulher pelo reconhecimento de seu protagonismo, não só no mamulengo, como também na cultura popular. É uma maneira delas se colocarem e marcarem sua posição dentro da cultura. “Quando eu comecei no mamulengo eu percebi que a mulher não tinha muito lugar na brincadeira”, relembrou. Segundo Titinha, o mestre Zé de Vina foi determinante para impulsionar sua trajetória no brinquedo, dando liberdade para ela brincar do jeito que quisesse.
“Zé de Vina dizia que a gente podia ser o que quisesse, se errasse, se desafinasse, eu quando erro o nome do boneco, já invento outro, quando não tenho um boneco, já pego outro e é assim. Já aprendi dentro dessa dinâmica com ele”, esclareceu. De acordo com Titinha, Zé de Vina dava liberdade para o improviso dos brincantes. Além de Zé de Vina e Zé Lopes, mestre Bila também foi um professor para a mamulengueira. São três mestres de gerações e práticas diferentes, aos quais Titinha foi tirando ensinamentos para desenvolver a sua forma de brincar.
Para a mamulengueira, um bom mestre deve saber que é fundamental abrir espaço para as novas gerações brincarem e, assim, garantir o futuro da cultura. “O mamulengo por mais que você esteja em um grupo, você tem que abrir para as novas gerações virem surgindo. Eu quando fundei o Flor do Mulungu convidei a minha filha, que desde pequena já vivia aqui dentro, pra ser contra mestra”, garantiu.
A liberdade é o pilar do modelo de trabalho da mestra Titinha que, entre os afazeres, oficinas e apresentações do museu, consegue ensinar a jovens como Thiago o valor do mamulengo. Ela sempre mostra leveza e bom humor, mesmo acumulando diversas funções, dormindo pouco e quase nunca parando quieta dentro do museu. É uma mulher vivaz, multitarefas e simples que ainda cuida dos filhos e de jovens que frequentam o museu como se fossem seus filhos. Além de mamulengueira e bonequeira, Titinha também é produtora cultural.
“Eu tive que entrar na produção também, virei produtora porque senão todo o mundo aqui ia sofrer. Quando eu virei presidente da associação, não sabíamos fazer currículo, não tínhamos certidão, basicamente não tínhamos nada”, revelou. A mestra, inclusive, acredita que essa parte da produção, mesmo sendo fundamental para a cultura, ainda não é devidamente valorizada. “Eu faço tudo, eu cobro as pessoas, tiro foto, faço release, faço tudo, inscrevo projetos, mas não recebo nada. É um problema”, desabafou. Titinha resolveu assumir essa parte da produção até para proteger os mestres de possíveis golpes.
As passagens (histórias) eram preconceituosas, onde negros, gays e mulheres eram alvo de piadas jocosas. Inclusive, muitos personagens eram construídos única e exclusivamente dentro dessa perspectiva de fazer pilhéria com algumas minorias. Recentemente, isso vem mudando com a revisão desses temas [no mamulengo”.
Desvalorização e dificuldades
Nesse mesmo sentido, a mestra mamulengueira Cida Lopes lista as principais dificuldades para o desenvolvimento do mamulengo: a desvalorização da brincadeira, falta de apoio, ausência de editais culturais específicos e muitos outros. “Nós podemos citar todos esses como obstáculos, eu acabei de vir de um festival de bonecos em Joinville e conversando lá com o pessoal e todo o mundo falava sobre isso, é aquele negócio do santo de casa não faz milagre”, contou.
“Aqui na nossa cidade mesmo, e não só o mamulengo, mas tudo o que é relacionado a cultura popular, aos artistas da cidade, sempre vai ter aquela questão do que é de fora é melhor. E não digo nem de fora e cultura popular, mas aqueles artistas e bandas grandes, essa cultura de massa mesmo”, explicou. “Porque tanto o povo quer ver isso, e também a gestão pública acha que isso é o suficiente, que não precisa colocar mais nada. Então, fica naquela política de migalhas: te ofereço uma apresentação aqui, outra ali, e você espera seis meses para receber”, denunciou a mestra. Essa realidade é encontrada em todas as manifestações da cultura popular que essa série de reportagens ouviu, e todos os representantes batem nessa mesma tecla.
Há ainda, outro fator a ser levado em conta. Cida Lopes atenta também para a dificuldade que alguns mestres das gerações mais antigas têm no contato com a tecnologia. “Eu sou uma mamulengueira mais jovem, eu consigo ter acesso a internet, computador, aos editais e consigo colocar meus projetos no mundo”, contou. “Mas, pensando nesses mestres mais antigos, eles ficam totalmente dependentes de produtores e de outras pessoas que façam isso para eles”, completou.
Cida destacou ainda que existem sim vários editais em Pernambuco para o fomento da cultura no Estado, mas ainda assim quando se pensa no tamanho todo e tudo o que se tem de diversidade cultural nele, acaba se tornando insuficiente. É preciso que sejam criadas novas políticas públicas de fomento cultural, e que alguns editais específicos para a linguagem de teatro de bonecos sejam desenvolvidos.
Renovação e tradição no mamulengo
Alex Apolônio é mestre em Artes Cênicas e produtor cultural na Zona da Mata Norte há cerca de 12 anos, especializado em projetos financiados com leis de incentivo. Para ele o teatro de bonecos é contemporâneo por sua essência. “A brincadeira é atual desde sempre, é uma tradição popular que necessita de um público para comunicar cenicamente aquilo que mais toca os artistas e o povo. É necessário por carregar a história da nossa gente, alguns valores, algumas tradições que permanecem atuais e importantes para a sociedade”, esclareceu.
O produtor explicou que quando fala de valores, quer dizer a percepção da nossa herança cultural e história, da importância do povo negro, da mulher e do homem trabalhadores da roça na construção do nosso país. “Nós lidamos, diariamente, com questões muito graves como: desigualdade social, racismo, machismo, e o mamulengo brinca, ironiza mesmo, todos esses temas de forma engraçada, mas que também nos faz refletir, dialogando na linguagem do povo para operar mudanças”.
De acordo com Alex, o mamulengo está em constante renovação e se atualiza conforme os avanços da sociedade. “Isso não sou eu que tô dizendo, basta pegar as fotografias, os depoimentos, os livros que contam a história do brinquedo para perceber que de tempos em tempos, ele parece que vai morrer e renasce. Renasce em outra cidade, com outro nome e com pessoas como Zé Lopes e Zé de Vina, por exemplo, que articulam novos brincantes, novos artistas, com um papel formador mesmo”, afirmou. Para Alex, por ser um brinquedo lúdico, o mamulengo encanta e atrai o público desde a infância.
Hoje em dia, o produtor enxerga cada vez mais crianças brincantes e para ele isso é um sinal claro do futuro da brincadeira. “Acredito eu que não é porque nasceram filhos e filhas de brincantes, mas porque elas veem nesse boneco a possibilidade de ampliar o seu universo de criança e a vida vai acontecendo, aquilo vai virando um trabalho para essas crianças também e o universo lúdico passa a ser também fonte de renda para o sustento”, concluiu.
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Esta reportagem foi produzida com apoio do edital Acelerando Negócios Digitais, do ICFJ em parceria com a Meta.
Créditos:
Reportagem: Yuri Euzébio e Gabriela Passos
Fotos: Hugo Muniz, Ivson Gambarra e Gabriela Passos
Edição: Paulo Floro
Revisão: Alexandre Figueirôa
Esta reportagem foi produzida com apoio do edital Acelerando Negócios Digitais, do ICFJ em parceria com a Meta.
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