O ABUTRE SAI DAS SOMBRAS
Gil Scott-Heron passou décadas eclipsado na música pop, mas foi um dos precursores do rap. Novo disco comprova que ainda tem vigor pra continuar radical
Por Eduardo Carli de Moraes
Colaboração para a Revista O Grito!, em São Paulo
A revolução não vai passar na televisão. Nem virá com intervalos comerciais e replays. A revolução, irmão, vai ser ao vivo. Com estas palavras, declamadas no maior pique, Gil Scott-Heron marcou época com o hino de protesto setentista “The Revolution Will Not Be Televised”, perfeita síntese de sua carreira e que demonstra bem sua importância histórica. Ele foi um MC antes de existir o rap; foi Malcolm X cantando um soul; foi o poeta da Revolução Negra no pós-Woodstock; e foi a encarnação do espírito Hip Hop, antes deste existir.
Scott-Heron, apesar do ostracismo em que caiu por grande parte dos anos 1990 e 2000, principalmente por ter sido enjaulado pelos tiras duas vezes por posse de “substâncias controladas”, continua ativo e operante: acaba de lançar, neste 2010, o álbum I’m New Here. Suas palavras e discos ecoam dos anos 70 até hoje e é tido como um dos pais do Hip Hop.
Gil é do Tennessee, terra do blues. Seu leitinho na mamadeira, aposto, foi turbinado com litros de B. B. King, John Lee Hooker, Lightnin’ Hopkins e bourbon. Já crescido, mudou-se para Nova York. Mas não aquela dos cartões-postais ou dos filmes de Woody Allen. Aquela dos guetos e becos flagrados pela lente de Spike Lee, onde porto-riquenhos, dealers, cafetões, putas, tiras corruptos e brancos cuzões se bicam num cenário urbano caótico e tenso.
Era o fim dos anos 1960 e o Black Power não era somente um penteado afro classudo, mas todo um efervescente movimento social. Impulsionados pelo exemplo de Malcolm X e Martin Luther King, os negros americanos “se organizavam para desorganizar”. Em protesto contra a segregação racial, o preconceito, o fascismo, o imperialismo, Nixon, a Guerra do Vietnã e outras pragas sociais, inventavam um novo som e uma nova poesia adequadas aos combates dos tempos.
Gil Scott-Heron – “Me And The Devil” from Adam F. on Vimeo.
Pouco tempo antes de Scott-Heron “decolar” com o lançamento de seus primeiros álbuns – o spoken word Small Talk at 125th and Lennox e o soul-funk Pieces of a Man – Jimi Hendrix havia blasfemado lindamente contra o Hino Nacional Americano em frente a 500 mil almas embasbacadas em Woodstock. Enfiando distorsão e discórdia no discurso oficial. Pintando de negro, ou afundando na psicodelia, a “Star Spangled Banner”.
Gil Scott-Heron, junto com seu companheiro Brian Jackson, gravaram um punhado de discos brilhantes anos 1970 e 80 afora. Ao mesmo tempo louvando seus heróis culturais do passado (John Coltrane, Aretha Franklin, Isaac Hayes, Billie Holliday, Al Green…) e com pés fincados nas problemáticas sócio-políticas da era (em que a “canção de protesto” tinha voltado aos holofotes pelos esforços de Bob Dylan nos anos 60 e a Geração Folk que seguiu seus passos), fizeram pérolas das mais preciosas daquilo que hoje chamamos black music.
Se a obra deste negobão é tão desconhecida entre nós, isto se deve um pouco à estupidez da “Indústria Cultural”, que não se dava muito bem com o radicalismo ideológico e a riqueza sônica da arte de Scott-Heron. No meio dos anos 1970, a black music de conteúdo político-crítico-lúdico-provocativo (que tinha ainda seus paladinos no Funkadelic e no Sly & The Family Stone) viu-se lançada nas sombras pela explosão da discow. “Gil viu sua carreira ser progressivamente eclipsada com a aproximação e a passagem dos anos 80, época em que a caretice yuppie grassou e desgraçou a cultura pop”, escreveu o crítico e jornalistaAlex Antunes.
Como o próprio Gil Scott-Heron diz, a galerinha da discow perdeu completamente a noção de que havia uma distinção entre a ferramenta e o objetivo — “the tool and the goal”, como ele diz. A “black music”, cooptada pelas grandes gravadoras, cessou de ser uma tool nas mãos de artistas-ativistas lutando pelo goal da transformação social e comportamental, para se tornar hedonismo vazio e consumista. A balada foi sendo despolitizada e foi virando cada vez mais uma curtição frívola e sem consequências, quase um mecanismo de fuga. Demoraria alguns anos até que o Punk nascesse para chutar o rabo da Geração Discotèque e trazer de volta o inconformismo e a rebelião para o centro do quadro.
Pois é: não é à toa que Gil Scott-Heron é reconhecido por grandes figuras do Movimento Hip Hop mundial — como Chuck D ou Mos Def — como um dos Pais da Matéria, “The Godfather of Rap”. Sem ele, talvez não tivessem surgido o Public Enemy e o Outkast, a Lauryn Hill e o Ben Harper, o Rappa e o Planet Hemp. Sem falar que, sendo um maconheirão prá-lá-de-gente-fina, continua sendo uma referência para todos os que curtem os efeitos de expansão da consciência, do senso-de-humor e da percepção estética gerados pela cannabis.
Pra quem curte literatura, vale frisar ainda que Gil Scott-Heron, poeta de mão cheia, escreveu ainda dois romances: The Nigger Factory e The Vulture. Este último, conhecido por cá como Abutre, saiu no Brasil pela Conrad Editora e vale cada centavo. Narra a via-crúcis de um traficante de drogas de New York que tréta com os porto-riquenhos e vê sua vida sempre ameaçada pelos becos escuros do Harlem, Chelsea e redondezas. Lê-se com o prazer que se tem vendo um bom filme de Spike Lee ou um clássico da blaxpoitation (tendência que Tarantino “homenageou” em Jackie Brown).