ERA UMA VEZ
Fábulas, uma das mais famosas séries da Vertigo, é HQ que vale a pena descobrir
Por Dandara Palankof
Colunista da Revista O Grito!
Já disse algumas vezes que passei um bom tempo sem comprar gibis mensais – o que pode levar a maioria das pessoas a imaginar que isso se refere apenas aos títulos de super-heróis. Mas desde a retomada de crescimento do mercado, ali no fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, outros títulos periódicos podiam ser encontrados nas comic shops que não aqueles estrelados por encapuzados e adeptos do colant. Um pouco depois, principalmente com a expansão da editora Panini, muitos já podiam ser encontrados também nas bancas.
Daí que, se bem me lembro, a última revista mensal que comprei religiosamente, antes de meu pequeno recesso, foi Fábulas Pixel. A segunda publicação em formato mix da editora (que está voltando aos pouquinhos, depois de ter sido dada como morta) tinha, como carro chefe, a sensacional série que dava nome à revista e é originalmente publicada pela Vertigo (a coisa mais legal que existe na DC, tomara que os rumores do fim não passem disso). E com seu cancelamento, acabei deixando de acompanhar a história.
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Mesmo depois que a agora gigantesca Panini incorporou a publicação a seu catálogo e retomou a publicação aqui no Brasil, demorei bastante para retomar a leitura – sabe-se lá por que tanta procrastinação. Agora, enquanto a editora há pouco publicou o décimo segundo arco – o que provavelmente é um recorde pra uma série contínua da Vertigo no Brasil –, eu acabo de ler o sexto.
Todo esse blábláblá pra dizer que você, se nunca topou com a série, corra atrás do tempo perdido. E se o bolso permitir, de forma mais ágil do que eu.
A premissa da série, criada pelo roteirista Bill Willingham, é bem interessante: digamos que todos os contos de fada e lendas afins realmente existissem em mundos paralelos – os contos referentes a cada cultura constituiriam, cada um, um mundo de fantasia paralelo ao nosso. De repente, não, mais que de repente, esses mundos começam a ser arrasados e conquistados por exércitos de criaturas malignas, comandados por um poderoso inimigo conhecido apenas como O Adversário.
Willingham optou por iniciar a série envolvendo-os em uma trama de mistério policial com toques de filme noir e de intriga política
Enquanto resistir parecia inútil, fugir tornou-se uma solução mais viável; e o refúgio é, justamente, o nosso mundo. Assim, várias das fábulas que conhecemos dos contos infantis vieram refugiar-se entre nós, mundanos – como somos chamados. A maioria dos personagens vem dos contos de tradição europeia, mas há espaço para outros reinos, como são chamados, ainda que (até aonde li, pelo menos) apenas mencionados – com exceção da belíssima minissérie As 1001 Noites, onde Branca de Neve vai visitar o reino das fábulas árabes para alertá-los sobre o Adversário e muitos detalhes do passado dos personagens de seu reino são revelados.
Digressões a parte: a série tem início, então, acompanhando as fábulas sobreviventes das investidas do Adversário, que conseguiram vir para o nosso mundo através de portais dimensionais. Ao longo do tempo, os mesmos foram sendo descobertos e fechados pelas hordas inimigas, mas dando tempo suficiente para que muitos pudessem fugir e se estabelecessem entre nós. Ainda que muitos prefiram viver entre os mundanos, há uma espécie de colônia principal – no meio da cidade de Nova Iorque. Lá, vivem as fábulas de aparência humana; aquelas de aparência animal, que não poderiam viver entre os humanos, como os Três Porquinhos, ou os Três Ursos de Cachinhos Dourados, precisam viver na Fazenda – o que causa grande insatisfação em muitos e, em determinado momento, tem consequências bem desagradáveis. Mas estou me adiantando.
Na colônia de Nova York, convivem personagens mais conhecidos entre nós, como a já citada Branca de Neve, sua irmã menos conhecida Rosa Vermelha, João das Lorotas (mais lembrado por aqui pelas aventuras envolvendo um certo pé de feião), o psicótico Barba Azul, o casal Bela e Fera (que ainda perde a aparência humana todas as vezes que indispõe com a esposa), o Príncipe Encantado – aliás, bem interessante a versão de Willingham, que o retrata como sendo o mesmo nas histórias de Branca, Cinderela e Bela Adormecida – o cara foi um canalha com todas, que sucessivamente o abandonaram; e o Lobo Mau, que ganhou a confiança de (quase) todos após ajudar na fuga pelo último portal, antes de ele também ser fechado pelo exército do Adversário, ganhar um encantamento que lhe permite assumir forma humana e se tornar o xerife da chamada Cidade das Fábulas.
No que pude acompanhar até agora, as histórias se desenvolvem não apenas na interação entre os personagens da Cidade das Fábulas – que é muito mais intrincada e cheia de intrigas, rusgas e disputas do que se poderia supor em um primeiro momento. O Adversário se torna cada vez mais próximo, disposto a não deixar que a colônia fugitiva e rebelde desafie seu poder de forma tão acintosa diante dos outros reinos. Além disso, acompanhamos as movimentações na fazenda e também algumas interações com os mundanos.
Willingham optou por iniciar a série envolvendo-os em uma trama de mistério policial com toques de filme noir – principalmente pela construção do Lobo – e de intriga política; esta última característica é uma das mais fortes na condução das tramas seguintes focadas nos acontecimentos internos da Cidade das Fábulas; com o desenrolar dos arcos, as histórias passadas nas chamadas Terras Natais, no passado ou no presente, e a aproximação do Adversário dão a Fábulas também um caráter épico. A partir dessas duas vertentes, o roteirista consegue traçar diversos paralelos sobre a política e a visão de mundo norte-americanas – com alguns pontos sendo mais questionáveis do que outros e que seja bem-vinda a controvérsia. São notáveis (pequenos spoilers à frente!), nesse sentido, as tramas que envolvem a revolta na fazenda, a militarização diante de uma tropa enviada pelo Adversário e a candidatura do Príncipe Encantado a prefeito da Cidade das Fábulas. Ainda sobra um pouquinho pra indústria do entretenimento, através da última aventura de João das Lorotas na série – que viria a ganhar seu próprio gibi (não sei se, em algum ponto futuro, ele voltou a aparecer. Correr com esses encadernados…).
Seu ponto alto na condução da série é ter conseguido criar personalidades um tanto quanto inusitadas para a maioria de seus personagens principais. Excetuando-se o Lobo (uma mistura de Wolverine com detetive particular de, repito a referência, filme noir), existem características bem interessantes no seu elenco principal que talvez nunca tenham passado pela cabeça de nenhum leitor, acostumado com as modernas versões açucaradas – e algumas vezes bem diferentes das originais –, principalmente depois de Walt Disney ter descoberto o filão. O também já citado Príncipe Encantado e seus conceitos morais, em sua maior parte deturpados, são um belo exemplo. Ambicioso, infiel e egoísta como nenhuma história jamais havia ousado contar.
Mas o destaque durante grande parte da série ficou mesmo para Branca de Neve. Tendo como pano de fundo um passado muito menos acolhedor do que se supunha envolvendo os Sete Anões, a difícil relação com sua intempestiva irmã Rosa Vermelha e as más lembranças do final do casamento com o Príncipe Encantado, Branca se mostra durante a série como uma mulher firme e determinada, amável com poucos, mas sempre buscando o que considera ser o justo: assumindo o posto de assistente do Rei Cole, prefeito da Cidade das Fábulas desde sua fundação, na verdade cabia a ela resolver toda e qualquer questão administrativa, deixando para Cole apenas as aparências e relações públicas.
No desenrolar da história (repetindo, até o sexto arco, onde estou no momento), Willingham não cai na esparrela de suavizar o caráter enérgico e as atitudes comedidas de sua personagem principal após um envolvimento romântico – como numa gag de Family Guy, em que a personagem de um filme, executiva sem tempo para si, ouve de um colega “Shhhhh. Nos próximos 90 minutos, vou mostrar que todos os seus problemas podem ser resolvidos pelo meu pênis”, ao som de Coldplay. Tal envolvimento é previsível, seu desenrolar é interessante e seu comportamento diante dele é plausível, mas nunca deixamos de reconhecer a Branca de Neve que vimos no início da história, como o verdadeiro braço forte da colônia.
Já são muitos os Prêmios Eisner que Fábulas ganhou (gostaria de citar o número exato; algumas capas das edições da Panini dizem 25, a Wikipedia diz 14, o site da Vertigo não diz nada…). A leve arte de Mark Buckingham e as belíssimas capas de James Jean foram responsáveis por alguns deles. Mas é realmente o talento de seu roteirista que segura a série; seu senso de ritmo na construção de seus arcos, sabendo onde avançar e quando desviar o foco, afora o já citado sucesso em estabelecer um grupo criativamente cativante de protagonistas, em releituras muito interessantes de personagens já tão conhecidos (em sua maioria), além de sua adaptação ao “nosso mundo”, fazem com que Fábulas seja uma daquelas séries que, com o perdão do trocadilho, encantam.
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* Dandara Palankof é a identidade secreta da Garota Sequencial. Diz que sua relação com quadrinhos é destino, já que aprendeu a ler com um gibi do Cebolinha. Nerd orgulhosa, marvete e editora do gibi Estranhos no Paraíso, publicado no Brasil pela HQM Editora.”