Dê uma história em quadrinhos de super-herói de presente para uma menina
Depois das heroínas semi-nuas de segundo escalão, personagens femininas ganham destaque e tornam-se peças-chave nas histórias
Por Dandara Palankoff
Colunista da Revista O Grito!
Sim, eu sei. Quadrinhos de super-herói , em princípio, são “coisa de menino”. Gibis desse gênero, em sua maioria – e ainda mais nos malfadados anos 1990, Deus tenha piedade – não apenas são voltados para o público masculino, como o fazem recheados dos estereótipos machistas, representações hiperbólicas do ancestral papel masculino de caçador, protetor e reprodutor. Nesse contexto, a mocinha passa a ser simplesmente mais um objeto de reforço do intuito de perfeição do mesmo. Ainda que ela pegue em armas, tenha poderes mutantes ou seja a prima kryptoniana.
Mas eu disse EM SUA MAIORIA. Afinal, o mundo gira.
Sim, a concepção do herói é ligada ao masculino desde sempre, por conta do reforço dos papéis sociais sexistas e patriarcais. É por isso que meninos ganham espadas e as meninas, as presumidamente doces, maternais e frágeis meninas, ganham bonecas. E enquanto os meninos dos anos 1960 liam Batman, as meninas liam foto-novelas – porque a Mulher-Maravilha não era exemplo pra ninguém, não é mesmo, senhor Fredric Wertham?
Sob este prisma, histórias de super-heróis serem o gênero quadrinístico no qual isso mais se desenvolveu é simplesmente porque elas são o mainstream dos quadrinhos. Que é machista em qualquer expressão. Mas a essência do gênero de super-heróis, do superpoder, não é ligado intrinsecamente ao masculino, mas à superação das limitações comuns à humanos de ambos os gêneros. Heróis com poderes sobre-humanos, seja qual for a razão, existem desde que resolvemos contar histórias.
Então, acho que cabe aqui pensarmos um pouco sobre o por que desse gênero de fantasia, em específico, ter se desenvolvido tanto na indústria quadrinística; e acredito que essa razão seja justamente a mesma pela qual tantos artistas tem se deixado seduzir pela nona arte: o papel comporta a loucura que você quiser. Hoje, pode até parecer banal botar na tela um Lanterna Verde, mas não havia a menor possibilidade de dar vazão a loucuras como essa, visualmente falando, que não fosse nas páginas de um gibi.
Para que as histórias de super-heróis continuem sua evolução rumo ao fim do sexismo, é preciso que mais mulheres continuem a se apaixonar por esse universo cheio de possibilidades
E por ser a arte, como já dissemos, um reflexo social, eis que as conquistas feministas e o início (sim, ainda estamos no início) da reformulação do exercício destes papéis sociais trouxe algumas mudanças de costume, como a mulher se colocando como um ser social que aprecia tais características heroicas, não apenas no outro, mas também gostando de se ver representada com elas, sem que isso necessariamente esteja ligado ou a uma submissão fetichista ou à alusões preconceituosas de lugar social ou mesmo de sexualidade.
A derrubada dos preconceitos dentro destas histórias vem justamente quando os papéis, responsáveis pelo direcionamento do que se deve consumir, vão se misturando, se tornando nebulosos e, por final, caindo por terra. É quando os artistas das gerações que vivenciam essas mudanças criam não apenas protagonistas masculinos menos excludentes, quanto também representações femininas que dialoguem com as aspirações de suas leitoras contemporâneas.
As protagonistas femininas são cada vez mais presentes – e se tivesse que arriscar, diria que foi mais uma das benesses da invasão britânica na indústria americana, nos anos 1980. Mesmo que o caminho a percorrer nessa questão ainda seja longo, o espectro é muito mais amplo e heterogêneo do que há algumas poucas décadas, com suas super-heroínas semi-nuas de segundo escalão: Feiticeira Escarlate, Mulher-Aranha e Emma Frost há muito são peças-chave do universo Marvel. Na DC, uma das personagens mais comentadas nos últimos tempos foi a Batwoman.
E para que as histórias de super-heróis continuem sua evolução rumo ao fim do sexismo, é preciso que mais mulheres continuem a se apaixonar por esse universo cheio de possibilidades, histórias mirabolantes, realidades alternativas e que ainda é uma das principais portas de entradas para o Fantástico Mundo dos Quadrinhos.
Mais leitoras significam histórias menos machistas. E é preciso sair do lugar comum do “coisa de menino”; afinal, as representações não são necessariamente doutrinárias; podem ser questionadas, como o fiz quando crescida. Mas se não tivesse tido a sorte de entrar em contato com esse mundo ainda na infância, não teria tido a oportunidade de me apaixonar pelo que ele é e pelo que pode ser.
E uso a palavra “sorte” porque meu gosto por gibis veio de casa, fruto de uma criação isenta do reforço desses papéis sociais restritivos; minha primeira “revistinha” do Homem-Aranha (tinha o Kraven na capa, lembro vagamente) me foi dada por meu padrasto, hábito que se somou ao de minha mãe, que já me comprava gibis da Turma da Mônica e da Luluzinha.
A representatividade aumentará junto com o crescimento da base de leitoras. Que precisam ter contato com o meio. Não quer dizer que toda menina que pegar um gibi da Liga da Justiça vai se afeiçoar pelo gênero. Mas é preciso que elas não mais sejam privadas das possibilidades desse incrível universo de fantasia simplesmente porque ele é “coisa de menino”. E então ele, definitivamente, deixará de ser.
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* Dandara Palankof é a identidade secreta da Garota Sequencial. Diz que sua relação com quadrinhos é destino, já que aprendeu a ler com um gibi do Cebolinha. Nerd orgulhosa, marvete e editora do gibi Estranhos no Paraíso, publicado no Brasil pela HQM Editora.“