BUFFY QUE ERA MULHER DE VERDADE
Uma das melhores séries já feitas, Buffy – A Caça Vampiros conseguiu abordar sexo, aventura e humor com uma heroína empoderada e rara nos dias de hoje
Por Dandara Palankof
Colunista da Revista O Grito!
Buffy – A Caça-Vampiros, criada pelo hoje famoso, reconhecido e milionário Joss Whedon, é uma das séries mais hostilizadas de que já ouvi falar. Sofre de um mal até comum: o “não vi e não gostei”. Acredito que grande parte dessa impressão negativa das pessoas foi formada pela seguinte combinação de fatores, em um rápido vislumbre de poucos capítulos: assisti-la na Globo, em sua (péssima, logicamente) versão dublada; os efeitos especiais de baixo orçamento das primeiras temporadas – algo nada diferente de qualquer série de TV dos anos 1990; a cara de bolacha Maria da Sarah Michelle Gellar, quando nova. Eu era uma dessas pessoas.
Buffy também é uma série com um dos grupos de fãs mais fiéis que já conheci. Permaneceram firmes e fortes quando a série mudou de canal após a quinta temporada, acompanharam seu spin-off, Angel, com a mesma devoção e vibraram quando a série, que foi cancelada após sua sétima temporada, foi retomada – em formato de histórias em quadrinhos. E eu também sou uma dessas pessoas.
Fui adolescente na virada do milênio, sem acesso constante à TV por assinatura, quando a internet ainda engatinhava por aqui. Quando assisti a um episódio da quarta temporada, durante as férias na casa de meu pai, foi que percebi que a série tinha evoluído bastante – ou o que antes me era despercebido nela, já não era mais. Daí em diante, consegui acompanhá-la forma esporádica, entre episódios inéditos e reprises, até meados da quinta temporada, quando – glorifiquemos de pé – o milagre do cabo chegou ao meu humilde lar.
(Há de se ressaltar também que meu interesse por Buffy cresceu ainda mais quando percebi que sua braço-direito, Willow, não só tinha se descoberto lésbica como vivia um romance com sua colega de bruxaria Tara. Sim, meus caros: faz diferença para adolescentes gays encontrarem personagens com os quais possam se identificar em sua orientação sexual, ou em sua identidade de gênero, nas aventuras que gostam de ler ou assistir.)
Resumo pra quem boia na história: Buffy Summers era a típica adolescente “abelha-rainha” norte-americana: loira, líder de torcida, popular e preocupada apenas com a manutenção de seu status e com o próximo par de sapatos a comprar. Até que descobre ser a próxima de uma linhagem milenar de Caçadoras (slayers), mulheres escolhidas para, com os poderes que herdam, defender a humanidade de toda a sorte de criaturas demoníacas. Após os eventos do filme (meia-boca), quando Buffy descobre seu destino, a série tem início. Vista como uma garota problema, ela é expulsa do colégio; com a separação dos pais, sua mãe decide se mudar para a cidade de Sunnydale.
Buffy conhece um novo Sentinela (responsáveis por treinar e guiar as Caçadoras), Giles, “infiltrado” como bibliotecário de sua nova escola; faz amizade com o desengonçado Xander e a nerd Willow – obviamente, localizados na base da pirâmide social dessa bizarrice chamada segundo grau – e mais ou menos com a abelha-rainha local, Cordelia. Obviamente, todos descobrem seu segredo e passam a ajudá-la em suas batalhas. Ela conhece Angel, um vampiro que recuperou a alma após matar uma cigana e ser amaldiçoado por sua família (sim, amaldiçoado, pois ao recuperar a alma, seria atormentado por sua consciência diante dos atos sórdidos que cometera durante séculos); os dois, é claro, se apaixonam. O resto é história – em sete temporadas.
Mas por que é bom?
Primeiro, é uma série protagonizada por uma heroína, algo raro ainda nos dias de hoje; e uma heroína que não necessariamente atende a atributos padronizados de beleza, nem utiliza qualquer tipo de apelo sexual para vencer seus inimigos ou conquistar o que quer que seja – mas que exerce sua sexualidade, sem recalques ou moralismos; e que não se mostra dependente de nenhuma figura masculina. Giles é constantemente contrariado e desobedecido, enquanto Angel, quando não é a figura do interesse romântico, é o companheiro de batalha, não o cavaleiro andante salvador. Buffy é uma personagem feminina de força e personalidade (o que, viríamos a descobrir no futuro, é especialidade de Mr. Whedon); porém, é bastante humana, mostrando-se falha em vários momentos.
Segundo: ela supera suas limitações técnicas com uma característica bastante difícil de encontrar em séries voltadas para o público adolescente (em qualquer lugar e até hoje): é extremamente bem escrita. Com raras exceções, os episódios possuem um ritmo excelente, tramas bem elaboradas, diálogos rápidos, cheios de humor e referências, além de uma boa dose de auto ironia. Os personagens são bem trabalhados. Além disso, é uma das poucas séries que consegue trabalhar de forma criativa o componente sexual – algo que geralmente é tratado da maneira mais superficial possível, principalmente em se tratando de uma série para adolescentes.
Terceiro: ao longo do tempo, a série só se aprimorava. Talvez isso não seja consenso entre os fãs – a sexta temporada não é exatamente uma unanimidade – mas eu vejo um crescimento a cada temporada, só decaindo na sétima; muito provavelmente, por conta da mudança de planos acarretada pela decisão do cancelamento no meio da produção. Até então, Buffy só evoluía. Não necessariamente por conta da progressiva mudança de tom, com as histórias se tornando cada vez mais pesadas e os personagens cada vez mais sombrios – apesar disso denotar que não havia intenção de se estabelecer uma zona de conforto. Mas tudo melhorou progressivamente: os roteiros, os conflitos entre os personagens, as tramas, a edição, os efeitos especiais, as cenas de luta, o cabelo de Willow.
Quarto: a concepção dos vampiros é sensacional. Em tempos de algo como Crepúsculo, é bom rever vampiros sádicos, monstruosos – literalmente, pois suas feições humanizadas são apenas um disfarce – e sanguinários. Via de regra, vampiros são demônios sem alma que não saem à luz do sol. Ponto. E sem poderes mutantes.
Resumindo, Buffy kicks ass.
Os quadrinhos (e uma nova chance)
Eu sabia que existiam gibis de Buffy publicados pela Dark Horse, mas li apenas uma minissérie sobre Willow e Tara, mais por ser desenhada pelo Terry Moore (Estranhos no Paraíso) e por… bem, ser protagonizada Willow e Tara. Muito tempo depois, soube que o gibi protagonizado por Angel e publicado pela IDW não eram histórias passadas, mas uma continuação de sua série de TV – o que fazia sentido, já que o final do ótimo episódio final era um enorme gancho para tal; e até o vampiro Spike, um dos melhores personagens e com uma das melhores trajetórias ao longo de ambas as séries, tinha ganhado suas edições. Mas só quando eu soube que Buffy ganharia uma oitava temporada em quadrinhos – chamada assim, mesmo – é que passei a acompanhar fielmente os gibis protagonizados por uma de minhas heroínas favoritas.
A chamada Oitava Temporada foi contada ao longo de 40 edições, publicadas pela Dark Horse, começando em 2007 (quatro anos após o cancelamento da série de TV) e sendo encerrada em 2011. A maioria dos arcos foi desenhada pelo ótimo George Jeanty, enquanto vários roteiristas se revezaram, com destaque para Jane Espenson, Drew Goddard, Brian K. Vaughan e Brad Meltzer. Joss Whedon assumiu o mesmo papel que tinha na versão televisiva da história: por vezes assinava os roteiros, mas era ele o “dono” da série, enquanto produtor executivo – sim, era dessa forma que ela era creditado no gibi. Ou seja: era Joss quem determinava os rumos da história e cada capítulo só era publicado após sua aprovação. O que foi simplesmente maravilhoso.
Após um final de série relativamente tímido para as possibilidades abertas pela trama (dadas as limitações financeiras inerentes a um cancelamento certo), a retomada nos quadrinhos ofereceu a oportunidade de fazer com que a história iniciada na última temporada da televisão alcançasse níveis de grandiosidade limitados apenas pela imaginação e talento dos autores – algo recorrentemente apontado como uma das maiores vantagens de se produzir uma história em quadrinhos. E isso sobrou na oitava temporada.
Ainda que uma das características mais presentes nas histórias de Buffy – o destaque para os conflitos entre os protagonistas – tenha sido colocado um pouco de lado, Whedon e seus autores levaram a trajetória da heroína e seus companheiros de batalha a um nível completamente inédito. Em nível de tensão crescente, os leitores foram conduzidos a um arco final verdadeiramente épico, simplesmente de tirar o fôlego e que nos fazia ansiar por cada edição. Ao longo de cinco anos, a equipe criativa conseguiu criar um dos melhores gibis de aventura do mercado, oferecendo novas perspectivas sobre personagens já conhecidos, resgatando coadjuvante queridos pelo público cativo do chamado Buffy-verse, a fim de criar uma trama surpreendente. Sério, coisa fina.
A Nona temporada se iniciou na sequência, ainda em 2011, e encerrou-se no final do ano passado. Apesar de durar menos tempo, mais histórias foram publicadas. A série de Buffy, escrita quase totalmente por Andrew Chambliss e novamente com Georges Jeanty assinando a arte da maioria das edições, teve 25 números. Ela foi acompanhada por uma série paralela, estrelada por Angel e Faith (outra caçadora, longa história); os roteiros ficaram a cargo de Christos Gage, com desenhos, na maior parte do tempo, de Rebekah Isaacs; o título também durou 25 números. Além disso, Willow e Spike ganharam minisséries de 5 edições.
As tramas apresentaram os personagens, basicamente, lidando com os (grandes) estragos causados no final da temporada anterior – com exceção de Spike, cuja história o levou a lidar com os estragos causados nele mesmo ao longo dos últimos anos de sua trajetória. A surpresa positiva dessa nona temporada foi o fato de que a série tida como secundária, Angel & Faith, apresentou uma história muito mais coesa e empolgante do que a série principal.
Apesar de ter tido seus bons momentos, principalmente ao trazer de volta ao centro do palco o aspecto humano nas histórias de Buffy, certos fatos pareceram despropositados, enquanto outros, muito mais condizentes com o cenário proposto no início da temporada, não foram devidamente explorados. Tanto que Gage e Isaacs, na vindoura décima temporada (que começa em março), ficarão a cargo de Buffy; Victor Gischler será o novo roteirista de Angel & Faith (cuja continuidade é um mistério, após a conclusão da temporada), que terá desenhos do brasileiro Will Conrad.
Desde 2007, a criação mais famosa de Joss Whedon estabeleceu no mercado uma das melhores séries mensais em quadrinhos de ação e aventura, correndo por fora no mercado dominado por capas e colãs (que agora são porcarias de armaduras, Nolan, a culpa é sua). No geral, só possuem um problema: são séries para iniciados – o que fica um tanto óbvio nos subtítulos que os denominam como temporadas subsequentes às da TV. A série foi pensada para atender à considerável base de fãs dos EUA, mas que é significativamente menor fora de lá.
Mas as novas temporadas de Buffy nos quadrinhos estabeleceram nessa mídia, de forma contínua, personagens femininas que encontram poucos pares entre suas companheiras de nanquim, no que diz respeito às sua concepção: fortes, independentes e tangíveis – não só Buffy, mas também Willow, Faith e várias outras coadjuvantes, que diferem do estereótipo feminino visto na maioria dos gibis. E o fez de forma extremamente competente – e a gente sabe o quanto o mainstream das HQs anda carente de histórias realmente interessantes.
A Netflix tem todas as temporadas. Os gibis, ainda que inéditos em sua maioria por aqui, são bem fáceis de encontrar (se é que você me entende dá para ler online no Comixology ou comprar pela Amazon). A Oitava Temporada saiu como minissérie em cinco edições pela Panini em 2009. É a chance de ver que Joss Whedon é muito mais do que o filme d’Os Vingadores. E que Buffy – A Caça-Vampiros, e todo seu universo, em todas as mídias, são um dos melhores exemplos de que a cultura pop pode relegar velhos clichês, reinventar outros tantos, de forma inteligente e, acima de tudo, divertida e instigante.