Foi Apenas Um Acidente
Jafar Panahi
IRÃ/FRA, 2025. Drama. Distribuição: MK2 Filmes
Com Vahid Mobasseri, Maryam Afshari, Ebrahim Azizi
Apregoar a relevância de Jafar Panahi para o cinema contemporâneo é nadar em mar de obviedades. O diretor iraniano figura, desde o final dos anos 1990, como um dos artistas por trás das câmeras mais instigantes do nosso tempo, especialmente se compreendido o contexto geopolítico no qual se insere. Iraniano, luta contra o regime autocrático do seu país através de obras que denunciam arbitrariedades promovidas em nome dos costumes e da religião. O cineasta já foi preso 3 vezes – por “propaganda contra o regime” – e impedido de exercer sua profissão, além da impossibilidade de sair do país durante 14 anos.
Foi Apenas Um Acidente (2025) é a primeira produção de Panahi após sua última libertação, dois anos antes, que marcou também o retorno das viagens internacionais do diretor. Comovente perceber como, nas obras anteriores, o diretor se colocava em frente à câmera, personagem-autor dos filmes, numa decisão narrativa que ressaltava a presença do seu corpo enquanto instrumento político. Nesta nova obra, o diretor volta a sair de cena, algo que não acontecia desde Fora do Jogo (2006), há quase vinte anos. O recém-chegado filme também marcou o retorno de Panahi ao Festival de Cannes, e o ciclo não poderia se concluir de melhor maneira: o longa conquistou o júri e foi agraciado com a Palma de Ouro, louro máximo da premiação.
As honras fazem jus à excelência da obra. Inquieto e limitado pelas imposições do governo, Jafar Panahi sempre experimentou dispositivos de filmagens diferentes em produções anteriores, como nos ótimos Isto Não É Um Filme (2011), Táxi Teerã (2015) e 3 Faces (2018). Em Foi Apenas Um Acidente, o cineasta claramente goza de maior liberdade de gravação – ainda que não plena – e possibilidades imagéticas. A longa sequência sem cortes inicial, que registra o mencionado acidente do título, comprova a subida de nível formal em relação aos filmes precedentes: dos movimentos de câmeras bem orquestrados à iluminação cênica primorosa, proposta pela fotografia de Amin Jafari, a trama é envolta numa harmonia estética exemplar.
Sob a sombra das violências perpetradas pela república islâmica do Irã, o enredo se desenvolve a partir do momento que Vahid (Vahid Mobasseri) acredita ter reencontrado o homem que o torturou, anos antes, na prisão. Antes de executar seu plano de vingança, a dúvida o assombra, pois durante o cárcere ele permanecera a maior parte do tempo vendado. Obrigado a ter certeza que aquele é, de fato, o terrível agente do estado responsável por tantas atrocidades, Vahid recorre a antigos companheiros, colegas de encarceramento que também foram vítimas do carrasco. Inicia-se, então, a saga narrativa de um filme que mergulha na reabertura de feridas difíceis de cicatrizar, a tentativa de seguir em frente apesar do passado, do peso dos traumas sentido na alma e no corpo.

Se vingança e perdão podem ser analisados como as temáticas medulares de Foi Apenas Um Acidente, o filme iraniano complexifica as questões para muito além desta dualidade. Os vestígios cotidianos da corrupção policial na cena de extorsão com a máquina de cartão de crédito; os impasses burocráticos e absurdos de uma sociedade onde homens/maridos precisam autorizar mínimas ações das mulheres; ou seja, a narrativa promove uma radiografia incisiva a partir de enfoques tão específicos quanto universais (o espectador brasileiro certamente reconhecerá atitudes dos oficiais iranianos no conservadorismo à brasileira dos anos 2020). Sem panfletarismo, Panahi expõe as vísceras de um status quo do qual, ele próprio, tem sido vítima há tantos anos.
Mesmo cercado por sentimentos devastadores, o filme contém a substância predominante na biografia de Jafar Panahi: o humanismo e a esperança no futuro, ainda que o presente insista no contrário. Ao, mais uma vez, trazer à cena personagens infantis, o diretor aposta no sentimento de genuinidade infantil para suavizar corações brutalizados pelo ódio e pela violência. Numa das sequências finais mais assombrosas do ano, Foi Apenas Um Acidente se encerra na atmosfera de realidade-pesadelo que provoca nada menos que aperto no peito, nó na garganta. Quando os traumas são tão profundos, a liberdade é um caminho possível ou apenas ilusão?
- “Kontinental ‘25” e as crises de consciência da classe média romena
- “Dolores”: sonhar como escoamento para as desilusões da realidade
- “Blue Moon”: filme sobre compositor da famosa música tem interpretação inspirada de Ethan Hawke
- “No Other Choice”: a lógica neoliberal e o colapso do altruísmo
Leia mais resenhas
- “Eternidade” imagina um pós-vida burocrático e cheio de dilemas
- “A Natureza das Coisas Invisíveis”: entre descobertas e despedidas
- “A Queda do Céu”: sobreviver ao desmoronamento do mundo
- “O Agente Secreto” lidera bilheteria e tem maior abertura do cinema brasileiro em 2025
- “Foi Apenas Um Acidente”: certas feridas jamais irão cicatrizar | Cobertura Mostra SP 2025


