Certa manhã, Chico acordou de sonhos intranquilos e levantou da cama decidido a sair do armário para sua mãe. Assim começa a HQ Fim de Tarde, ou Tríptico de um Homossexual em Formação – Vol. 1, do pernambucano Chico Lacerda, que, partindo deste episódio pessoal, revisita memórias da infância e adolescência em busca de pistas sobre ele mesmo e a pessoa que sempre foi. Nesta primeira parte da narrativa gráfica, a ser publicada em três volumes, o quadrinista apresenta um retrato muito íntimo e sensível da sua própria vivência gay para falar de amadurecimento, autodescoberta e sexualidade.
Chico Lacerda, que é cineasta, vem nos últimos anos trilhando seu próprio caminho na nona arte e Fim de Tarde marca a estreia dele no formato de publicação autoral mais longa. Mas, segundo o autor, sua relação com os quadrinhos nasce ainda na infância com a ilustração, algo que ele sempre fazia de forma bagunçada e guardava apenas para si. “Só que a coisa cresceu durante a pandemia, quando eu comecei a ter mais tempo, fiquei isolado como todo mundo e tive milhões de reuniões. Nas reuniões, comecei a desenhar meio que para aguentar aquilo e comecei a publicar no Instagram”, contou em entrevista a O Grito!.
Depois de organizadas, as ilustrações da pandemia viraram cartazes e o artista não parou mais. De lá para cá, ele lançou uma série de tirinhas de humor sobre um personagem que está aprendendo a meditar e, depois, as chamadas Historietas, narrativas de caráter memorialista. Tudo publicado em seu próprio perfil no Instagram. “Até que eu entrei nessa que é uma narrativa mais longa, que foi o que deu origem ao Fim de Tarde, sobre lembranças minhas de uma certa descoberta da sexualidade na infância e na adolescência”, revela.
Inicialmente compartilhado na internet de forma esporádica, Fim de Tarde ganha novas nuances em uma versão redesenhada e ampliada, especialmente para o formato impresso e mais extenso. O primeiro volume do Tríptico de um Homossexual em Formação será lançado pela O Grito! na POC Con, convenção de quadrinhos LGBTQIA+ que acontece nesta sexta (9) e sábado (10), em São Paulo.
Quando a sétima e a nona arte se encontram
Narrada em primeira pessoa, a HQ dá continuidade a vontades já expressas por Chico Lacerda na linguagem audiovisual, mais especificamente no curta Virgindade (2015). “Ele já aborda um pouco essa temática. Não é bem sobre a descoberta da sexualidade, mas é sobre o acesso a imagens de corpos masculinos quando eu era criança e adolescente, ao mesmo tempo, em que vou visitando vários lugares do Recife, que na época eu transitava, e que hoje já são outros espaços: cinemas que viraram lojas, locadoras que viraram conveniência”, detalha.
“Então, quando eu comecei a pensar numa narrativa mais longa para quadrinhos, isso que eu já tinha começado a desenvolver no cinema veio como uma possibilidade”, destaca o ilustrador, que revela ter tido como grandes fontes de inspiração as narrativas autobiográficas de Su Friedrich, no cinema, e de Alison Bechdel, com sua premiada HQ Fun Home: Uma Tragicomédia em Família (título reeditado pela Todavia, em 2018).
A memória como ponto de partida
Durante o processo de criação, que envolveu o resgate das suas próprias lembranças e experiências enquanto retratava a si mesmo nas páginas, Chico Lacerda acessou recordações que ele mesmo mantém em casa. “Eu tenho esse apego à memória já de muito tempo, então eu guardo muita foto, eu registro muito as coisas, tudo que eu produzi na adolescência eu tenho guardado. Então, eu sempre fiquei com a sensação de que aquilo está guardado e uma hora eu vou usar de alguma forma. Então, foi assim que eu comecei a acessar essas memórias.”
Ele também atenta para o fato de que, assim como no cinema, nem sempre esse processo é tão preto no branco, já que, durante o percurso criativo, há uma transformação do que é memória em termos narrativos. “Existe um nível de ficcionalização para transformar o que eu vivi em certos episódios”, conta. “Então, eu tenho uma transformação do material, que é memória pura, nessa narrativa, e que incide em alguma construção de algo novo, que dialoga com o que eu vivi, mas que também não é exatamente igual”, aponta.
Próximos passos
Enquanto este primeiro volume se concentra na infância e o início da adolescência, no terceiro e último, Chico Lacerda pretende se debruçar sobre o final da sua adolescência e início da idade adulta. Nesse ponto, ele conta que tem esbarrado em certas dificuldades para transpor a vida real nos quadrinhos, sobretudo, porque será a primeira vez em que abordará sua relação com a mãe e o dia em que saiu do armário para ela. “Foi algo bem difícil na época, isso anos 1990 ainda. Foi um período super difícil, super marcante”, relembra.
Ele diz que conversou com a mãe para rememorar o episódio — em suas palavras, doloroso para ambos. “Para mim, o que é mais complicado é como representar isso de forma justa em relação ao que aconteceu, mas tendo um cuidado em relação a ela, porque ela vai estar sendo representada e lida por outras pessoas”, pondera o autor. “É uma história que é minha, mas também é dela, e eu vou tornar pública. Então, eu estou com muito cuidado nessa construção para que isso não seja, de alguma forma, negativa para ela hoje.”
Fim de Tarde, de Chico Lacerda
Lançamento na POC Con
CCSP – Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso, São Paulo – SP
Sexta e sábado, 9 e 10 de junho, das 15h às 21h. Entrada gratuita.