O cineasta pernambucano Fábio Leal, diretor de O Faz-Tudo, se surpreendeu ao vencer o prêmio de melhor curta na mostra principal do Festival do Rio, uma das mais importantes premiações do cinema nacional. Leal esperava, no máximo, um reconhecimento no Prêmio Félix, dedicado às produções LGBTQIA+. “Foi muito emocionante. Jamais passava pela minha cabeça ganhar o prêmio principal. É um palco muito importante, com a presença de diretores, atores, atrizes e até do secretário de Cultura do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo”, contou Leal, em entrevista à Revista O Grito!.
O filme O Faz-Tudo tem apenas cinco minutos e nasceu da vontade de experimentar. Leal define o curta como uma mistura entre videoclipe, documentário e ficção, além de dialogar diretamente com a tradição da pornochanchada, gênero popular nos anos 1970 e 1980, mas ainda marcado por preconceito dentro e fora do cinema. “Acho que o Brasil criou um gênero cinematográfico por excelência e depois renegou”, diz Leal.
Para o autor, o cinema mundial, e não só o brasileiro, vive hoje uma caretização. “Existe um medo enorme de se colocar o pênis na tela, de filmar o sexo, como se isso desqualificasse a obra. Para mim, explorar a sexualidade é muito importante, sobretudo dentro da nossa comunidade queer, que hoje é tolerada pela sociedade desde que não se lembre que a gente transa, deseja, fantasia”.
A pornochanchada popularizou-se no Brasil no início dos anos 1970, com filmes de baixo orçamento, mas com grande sucesso comercial. O gênero teve como contexto histórico a liberação de costumes do período e trazia filmes que misturam humor e erotismo, em produções que contestavam o moralismo da sociedade em plena ditadura militar. As tramas normalmente traziam aspectos do dia a dia, em cenários essencialmente urbanos, com temas como adultério, virgindade, casamento e desejos reprimidos.
A proposta de O Faz-Tudo é justamente recuperar o tensionamento entre sexualidade, cotidiano e, sobretudo humor, que eram parte essencial das pornochanchadas. O corpo masculino, pouco explorado no cinema brasileiro, é colocado em evidência neste novo trabalho de Leal, conhecido por filmes como Seguindo Todos os Protocolos (2022), Deus tem AIDS (com Gustavo Vinagre), de 2021 e o curta O Porteiro do Dia, sua estreia como diretor, em 2016.

A realização também foi marcada por um processo colaborativo. O filme foi concebido durante uma residência artística em São Paulo, na Casa Líquida, espaço que recebe artistas de diversas áreas. Toda a equipe surgiu desse convívio: o fotógrafo Vicente Otávio dividia quarto ao lado de Leal; o protagonista, Eduardo Magliano, morava no andar de baixo; a montadora Gabriela Leonor era frequentadora da casa. “Foi feito sem nenhuma troca monetária, mas com muita troca simbólica. Cada um deu sua força de trabalho”, lembra Fábio Leal.
O diretor não quer romantizar a falta de recursos, mas diz que é importante pensar soluções criativas para as limitações impostas. “Foi a primeira vez que eu fiz um filme desse jeito. Sou acostumado a fazer filme com muito pouco dinheiro, mas sem dinheiro nenhum foi a primeira vez”, recorda. “Não podemos deixar que a nossa expressão artística seja dependente de um orçamento grande ou da aprovação em edital. Isso não pode definir se a gente faz ou não faz. É muito importante exercitar a escrita do roteiro e a direção pensando no orçamento do projeto, sabe?”

Cinema queer BR
O reconhecimento em um evento do porte do Festival do Rio traz à tona também a diversidade e a força do cinema queer brasileiro atualmente. “Temos nomes muito incríveis em atividade hoje e muitos estavam presentes por lá. Só pra ficar em Pernambuco, o cinema de André Antônio é muito diferente do meu, apesar de muitos nos colocarem na mesma prateleira, por sermos homens gays mais ou menos da mesma idade. E ambos somos bem diferentes de Chico [Lacerda] ou Alexandre Figueirôa.
Existe uma assinatura clara em cada um desses trabalhos. Eu gostaria de ver mais políticas públicas contemplando esse tipo de cinema mais autoral, sem fazer com que esses filmes tenham que concorrer pelos mesmos editais que o cinema comercial.”
A carreira de O Faz-Tudo já vinha ganhando destaque antes do prêmio no Rio. O curta estreou em Tiradentes no início do ano e percorreu festivais no Brasil e no exterior, passando por Belo Horizonte (no Fenda), Manaus, no Indie Lisboa e até no Frameline de São Francisco, o mais antigo festival LGBTQIA+ do mundo. Em Nova York, foi exibido numa mostra de documentários “desviantes” no Anthology Film Archive. Em breve deve ir para São Paulo. “Tem sido uma trajetória bem interessante”, avalia.
Com o prêmio no Festival do Rio, Leal acredita que a circulação do curta pode se ampliar ainda mais, embora reconheça que as barreiras ao cinema com conteúdo sexual explícito seguem presentes. “A gente sabe hoje que colocar um pênis em um filme fatalmente vai diminuir a sua circulação”, diz Leal.
Além de celebrar o momento de O Faz-Tudo, Fabio Leal já finaliza um novo projeto. Trata-se de O Vale, um longa-metragem que ele define como uma “pornochanchada triste”, previsto para estrear no próximo ano.
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