BEM NO “OLHO” DA ARTE
De uma forma ou de outra, ele estava lá, mesmo que subentendido, e persiste, como centro da discussão, inflamando emoções
Por Rocha Jr.
Especial para Revista O Grito!
Grandes pensadores de metodologia visual e da sua aplicação na arte concordam que a unidade básica da expressão é o ponto. Dele surgem as demais representações que reconhecemos: linhas, formas, direção, texturas… Pois bem, o que eles não contam, o que ainda persiste velado por esses teóricos, a verdade constrangedora que fica “escondida” é que não há melhor expressão para um “ponto” do que o cu. Ele está lá desde que constituímos a vida, está presente – com vários nomes – em todos os animais e é somente um, reinando absoluto e soberano em sua região natural.
Sem adornos, sem desculpas, sem nada que tire a nossa concentração sobre ele. Quando vemos ou até mesmo falamos sobre um, o mundo ao nosso redor pára. Devemos concordar que, com tanta capacidade para atrair a atenção do ser humano, não existe melhor chamariz para a arte do que um cu. Não há (literalmente…) maior poder de imersão do que o que ele proporciona. Não há objeto que suplante o cu numa obra de arte. Ele é todo atenção. Ele tem o poder de chamar e de promover a catarse em qualquer representação. A verdade é que um cu, por mais simples que seja, não passa despercebido.
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Especial: O [*] reconfigurado
O cu refilmado
“Qualquer ponto tem grande poder de atração visual sobre o olho”, já dizia a respeitada professora Donis Dondis, autora de best-sellers acadêmicos sobre representações na linguagem visual e diretora do Summer Term Public Communication Institute na Universidade de Boston. Dona de um cu, assim como todos nós, certamente ela já deve ter refletido sobre essa propriedade natural que ele tem de captar a nossa concentração. Um cu inserido numa obra de arte, mais do que qualquer outro tema, provoca a discussão, nos convida a refletir e, não raro, guarda mistérios. Impossível não cair no clichê, mas talvez o maior exemplo de sua inserção na arte nacional seja mesmo a capa do disco Todos os olhos (1973), de Tom Zé, que em pleno auge da ditadura expôs o que se supõe ser uma foto de um cu com uma bola de gude no centro (fazendo as vezes de um olho…) e até hoje ainda rende boas conversas numa mesa de bar.
“Não é um cu. É uma boca”, proclama um. “Não tem como ser uma boca, amigo. Veja as reentrâncias, se concentre nas laterais, só pode ser um cu. Uma boca não é assim”, rebate o outro. Quase quatro décadas depois, a polêmica ainda persiste. Ora os envolvidos dizem que é um cu e que eles conseguiram, como heróis, driblar a mente vazia da censura, graças ao “poder anal”, ora juram que é uma boca e que tudo não passou de uma tentativa frustrada (dizem que o fotógrafo levou sua namorada para um quarto de motel e lá persistiu por horas, mas não conseguiu tirar uma boa foto, restando ela posar com a bola de gude na boca mesmo). Pois é, um cu tem dessas coisas. É um bichinho temperamental.
CU DE FÉ
De uma forma ou de outra, o cu estava lá, mesmo que subentendido, e persiste, como centro da discussão, inflamando emoções. No entanto, um exemplo bem menos famoso e folclórico, porém bem mais recente e realmente polêmico foi protagonizado há pouco mais de um ano numa performance do cientista social e artista visual Pedro Costa, o Pedrx, na abertura do 13º Salão de Artes Visuais da Cidade, em Natal, que, como lembram alguns, ficou nu diante de uma plateia um tanto quanto ortodoxa (depois, visivelmente chocada) e, de quatro – posição máxima para todo cu que queira impor respeito –, tirou um rosário do ânus. Em tempos de tecnologia e convergência, o “saldo” foi transformado em um vídeo que ficou em exposição na galeria Newton Navarro para que o público pudesse apreciar o momento, assim como o objeto da performance (não o cu, mas sim o rosário). Pelo trabalho, Pedrx recebeu na época do governo municipal – assim como os demais artistas envolvidos – a quantia de R$ 1.350.
Senhoras mais pudicas e tradicionais na sociedade potiguar começaram a chamar o artista de “tarado do terço”. Everson Arruda, estagiário de um banco na cidade, até hoje fica indignado quando lembra do assunto. “Ralo o mês inteiro no trabalho e não consigo ganhar isso nem fudendo. Chega esse cara, tira um terço que estava escondido lá no olho cu, faz uma nojeira dessa, ganha dinheiro e o povo ainda chama ele de ‘cientista social’. É foda mesmo.” Everson, em meio a tanta revolta – e mesmo confundindo o fato que, independentemente de desvendar um rosário do ânus ou não, Pedrx ainda permanecia cientista social porque o seu diploma assim o fazia –, não aceitava qualquer explicação que lhe fosse dada sobre o motivo daquele happening e do cu estar lá promovendo reflexão. Na época o artista declarou que a performance promovia a “descolonização do corpo” através da expurgação do terço, que de acordo com ele mesmo é “um dos símbolos do domínio colonialista”. Para Everson isso é conversa bonita pra “camuflar safadeza”.
Pedrx, assim como os outros passou por uma curadoria para ser selecionado. “Agora imagine o cara lá, de quatro, fazendo a performance pra banca. E todo mundo dizendo: ‘Nossa, que coisa bonita… que reflexão!’. É doideira demais. Se um doido desses tira um terço do cu no meio do centro da cidade, de uma da tarde, vai preso ou pára num manicômio. Agora esse cara faz isso num museu, cheio de gente cabeça, e todo mundo aplaude”, completa Everson, já ficando com a voz visivelmente alterada e desempenhando movimentos bruscos e nervosos ao se expressar. Mais uma vez é o poder inegável do cu, mexendo com as mais primitivas emoções do homem.
DE CABEÇA PRA BAIXO
Mais sorte – e, notadamente, muito mais receptividade ao inserir o cu na arte – têm os compositores de músicas para as massas. Um cu sempre é simpático à chamada musicalidade popularesca. Sempre agrega, sempre abre sorrisos sinceros e é tido como prêmio, uma conquista maior do outro, um ponto final da sua epopeia. Não é de hoje que o nosso País canta suas venerações anais. O ato de ralar numa boquinha de garrafa ou de ser confundido com uma famosa marca de fogão são somente as mais recentes versões dessa tão nobre reflexão.
Interessante porém é a visão da corajosa e desbocada “poetisa urbana” Mc Kátia, que vem comandando os bailes mais profanos e honestos no Sudeste deste País e – talvez até mesmo sem saber – elevando o cu à categoria de aura artística em suas composições. Ela atribui ao cu uma condição de existência quase desafiadora ao afirmar em seu maior hit, De cabeça pra baixo, que é capaz fazer o impossível pelo homem que ama. Tudo claro e dito à sua maneira: “Na arte do sexo/ Pode crer que eu exculacho/ Faço tudo que ele gosta e ainda dou o meu cu de cabeça pra baixo”. A última parte deste verso é repetida uma, duas, três vezes exaustivamente. E o público delira. Assim como todos deveriam fazer diante de qualquer obra de arte capaz de nos transportar para uma existência superior. E ainda há quem discorde.