“Eu queria ser pianista clássica, mas isso foi mudando à medida que fui me entendendo compositora”, confessa a recifense Sofia Freire, que vem se firmando como uma das artistas mais inventivas da música pernambucana contemporânea. Hoje, aos 27, ela comemora um novo momento da carreira com o recém-lançado Ponta da Língua, álbum que põe fim a um intervalo de sete anos desde seu último trabalho de estúdio, Romã (2017).
Com letras que falam sobre desejo, amadurecimento e dilemas existenciais, o novo projeto marca a incursão da artista em novos territórios sonoros: enquanto nos dois discos anteriores Sofia misturava o piano com elementos eletrônicos, agora ela abre mão do instrumento que a formou musicalmente e sempre esteve presente na sua discografia para mergulhar de vez no universo dos sintetizadores. O dark pop de Björk e o trip hop da banda Cibo Matto são algumas das influências citadas pela cantora.
“Acredito que o Ponta da Língua foi o resultado de colocar em prática tudo que venho aprendendo nesses anos. Seu processo foi o mais solitário, mas também o mais divertido e lúdico”, explica Freire, que assina desde a composição até a produção do álbum. “Passei um bom tempo pesquisando formas de tirar o melhor proveito das minhas limitações acústicas e técnicas, já que fiz tudo em casa, boa parte durante o período de isolamento social.”
Em entrevista à Revista O Grito!, ela aprofunda os detalhes da concepção do novo disco e revela o que mudou em seu processo criativo, qual sua relação com o piano e como a literatura inspira suas composições. Leia o bate-papo na íntegra:
Desde o seu disco de estreia, Garimpo (2015), você manifesta a vontade em combinar o piano com outras texturas sonoras, mas agora decide deixar o instrumento de lado. O que te levou a essa escolha?
O piano é o instrumento que me formou, então era natural que ele fosse o condutor das minhas composições. Os sintetizadores sempre estiveram presentes, mas acho que com o tempo foi se criando, também de uma forma muito natural, uma necessidade de explorar outros timbres e outras maneiras de tocar, expandir minha pesquisa e prática musicais, então houve esse mergulho nos synths, que é um mundo à parte pelo qual me encantei.
Também fui compreendendo minha voz como um instrumento, e penso que ela hoje cumpre o papel do piano nos outros álbuns, embora eu não o tenha abandonado; ele continua presente, mas de forma mais sutil, faz parte de quem eu sou.
Sete anos separam seu último álbum, Romã (2017), deste novo trabalho. O que mudou em seu processo criativo de lá para cá?
Muita coisa, senão tudo! Foram muitos anos desenvolvendo minha musicalidade, angariando muita experiência de palco também, não só circulando com o Romã mas como instrumentista com outros artistas, o que acho que fez toda diferença. Acredito que o Ponta da Língua [abreviado pela artista para a sigla PDL a partir deste ponto da conversa] foi o resultado de colocar em prática tudo que venho aprendendo nesses anos.
Seu processo foi o mais solitário, mas também o mais divertido e lúdico, e talvez tenha sido essa a maior diferença: senti com o PDL uma liberdade criativa diferente, talvez por me sentir mais experiente, talvez porque, com os álbuns anteriores, eu tenha me preocupado mais com meu posicionamento no mercado enquanto a artista que pretendia ser, e acho que certa forma consegui um com o Romã, então agora me senti confortável para deixar essa preocupação mais de lado e somente me divertir.
Para você, qual fase da sua carreira artística este terceiro disco pode representar?
Talvez ainda seja cedo para afirmar qualquer coisa, mas sinto que ele é uma retomada, justamente por ter passado tanto tempo sem lançar nada, embora eu sempre estivesse na ativa. Uma retomada pessoal também, em que me sinto realmente uma pessoa muito diferente do que há sete anos atrás, liberta de muitas coisas, e o PDL é um retrato disso.
Além de adentrar novos universos sonoros, você também assume as rédeas de toda a produção. Pode compartilhar um pouco sobre como foi essa experiência de conduzir todas as etapas do disco?
Foi muito trabalhoso, mas também muito gostoso. Passei um bom tempo pesquisando formas de tirar o melhor proveito das minhas limitações acústicas e técnicas, já que fiz tudo em casa, boa parte durante o período de isolamento social. Embora estivesse no contexto pesado pandêmico, em casa eu estava muito confortável para experimentar, processar tudo emocionalmente, compreender e respeitar o tempo das coisas, não havia a “pressão” de estar no estúdio, com tempo e dinheiro contados. Adoro criar em coletivo, mas a solitude é meu território, decerto aprendi bastante, me reconheci e me diverti muito.
Por que o título Ponta da Língua? E quais inquietações te guiaram até chegar neste conceito?
Quando a pandemia da Covid-19 estourou, precisei cancelar turnê e pausar a produção de um disco novo (totalmente diferente do PDL), tudo sem perspectivas de retorno. Isso, fora todo o medo, luto coletivo e o contexto político no Brasil, me abalou muito, e paralisei. Entrei num bloqueio criativo que durou quase um ano. Nesse meio tempo, me voltei a outros estudos, como desenho, leitura, animação tradicional.
Tudo isso na intenção de me alimentar intelectual e espiritualmente, de sentir prazer, sem a pressão dessa lógica capitalista de monetizar seus hobbies. Percebi que a música era minha fonte de tudo, para o bem e para o mal, e havia um tempo eu estava no modo automático. Havia muito a ser dito após tudo o que foi sentido.
A sensação era que estava tudo na ponta da língua, nada saía. Foi preciso dessa pausa e ressignificação do papel da música na minha vida para reencontrar meu caminho de volta. Quando retomei, entrei no processo muito intenso de criação que culminou no disco. Depois que compus a música “Ponta da Língua”, compreendi que ela sintetizava tudo o que eu pretendia dizer com esse trabalho, e fiz uma pesquisa sobre a simbologia da língua e me pareceu uma feliz coincidência que a língua representasse discernimento, expressão e libido, os principais temas do álbum. Então o título ficou.
Como foi esse movimento de explorar novos ritmos e se aprofundar na sonoridade dos sintetizadores? Quais foram suas principais referências?
Como falei antes, foi muito natural. Acho que o aspecto mais intencional nessa construção foi de pensar nas estruturas das músicas, harmonia, e a produção em si, os aspectos mais técnicos. Björk continua sendo uma grande influência. Me aprofundei mais no trip-hop, com o qual eu já flertava bastante, mergulhei nas discografias de Cibo Matto, Lamb, Tricky, Gorillaz. Eles e o álbum The Low Theory, de A Tribe Called Quest, me guiaram bastante para explorar outras formas de usar samples na minha música.
Passei os últimos seis anos acompanhando no palco artistas de gêneros diferentes, que naturalmente também me influenciaram muito – acredito que a vivência prática, não só o que eu curto escutar sozinha em casa, também me impacta e reflete no que coloco no mundo depois.
Seu trabalho também vem inspirado pela literatura de escritoras como Virginia Woolf e Hilda Hilst. Como isso atravessa suas composições? A faixa “Orlando”, por exemplo, seria em referência ao romance semi biográfico de Woolf?
Nasci numa família de escritores, então a literatura sempre desempenhou um papel importante na minha vida. Cultivo o hábito de ler bastante e algumas dessas leituras, no período em que estive compondo o álbum, me marcaram demais. Não é raro eu levar para as sessões de terapia os livros do momento, a literatura me apresenta sempre novos óculos para observar o mundo e a música é uma forma de processar tudo.
Me inspirei na elegância de Hilda em Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão ao abordar a sexualidade quando escrevi “Minha Imaginação”. A Amiga Genial, de Elena Ferrante, A Lua Vem da Ásia, de Campos de Carvalho, e Bom Dia para os Defuntos, de Manuel Scorza, me inspiraram “Arrebento” e, sim, Orlando, de Virginia Woolf é o/a Orlando da música. Esse último foi uma coisa louca, Woolf parecia falar diretamente comigo, como se validasse algumas noções sobre o processo de amadurecimento que eu estava tendo naquele momento.
Em Ponta da Língua, você também apresenta um brega, “Minha Imaginação”. Pode comentar um pouco sobre sua aproximação com o ritmo? Era uma vontade antiga?
“Minha Imaginação” foi uma das últimas a entrar pro repertório, porque ela nasceu de um exercício pessoal de composição, sem intenção de entrar pro PDL. Foi uma provocação que me fiz, me perguntei como seria se eu fizesse uma música mais pop, e qual seria a minha perspectiva sobre um tema que geralmente não falo nas minhas composições, isto é, um desejo sexual por alguém.
O fato de ser um brega também veio desse lugar. É um ritmo que está muito presente na vida de quem é recifense, eu sinto que faz parte desse repertório cotidiano que constrói nossa identidade cultural, então pensei como seria um brega com minha assinatura. Não era bem uma vontade antiga, mas depois que fiz, me perguntei por que não havia feito antes! E o resultado foi tão legal que resolvi botar no disco.
Você vem em uma safra de novos talentos que tem movimentado bastante a cena musical pernambucana como Flaira Ferro, Amaro Freitas, Isadora Melo e Martins (só para citar alguns nomes). De que forma você se enxerga dentro deste cenário?
Todos que você mencionou e muitos outros me chamam a atenção por quebrarem expectativas sobre uma noção bastante estereotipada do mercado sobre o que é “música pernambucana”, sabe? Não acredito que haja uma única cena, mas várias, que apontam para o futuro. Me sinto, diante disso, um pouco nessa missão de difundir, com o que me cabe, um pouquinho de nossa identidade contemporânea.
E o que fez você despertar para a música? Sempre foi um desejo se tornar cantora?
Sempre fui uma criança musical, tinha uma escuta sensível, comecei a pegar músicas de ouvido no teclado e, percebendo minhas aptidões, meu pai me incentivou a ter aulas de música. Felizmente, cresci numa casa muito fértil artisticamente, observando meu pai, Wilson Freire, que é poeta parceiro de Antônio Nóbrega, compondo letras com seus parceiros, escrevendo poemas, romances, e minha irmã Clarice Freire, que também é escritora e ilustradora, criando. Minha mãe Lúcia pinta aquarela lindamente e tem um gosto musical maravilhoso, ela me apresentou a Queen, Kate Bush, Crosby, Stills, Nash & Young, Simon & Garfunkel.
Eu queria ser pianista clássica, mas isso foi mudando à medida que fui me entendendo compositora e tive a sorte de ter uma professora de piano que me estimulava a ser criativa. Quando chegou aquele momento do vestibular, eu já estava com a produção do meu primeiro álbum em andamento, já andava pesquisando e me apresentando aqui e ali, e quase me matriculo em ciências sociais na UFPE, mas tomei a decisão de percorrer uma carreira na música e aparentemente isso não foi surpresa para ninguém. Então não diria que houve bem um despertar, mas uma escolha.