A cultura brasileira é um manancial inesgotável de temas e por mais que ela já tenha sido retratada em centenas de obras audiovisuais existem inúmeros assuntos e personagens, sobretudo relacionados a diáspora africana no Brasil, cujas realizações e contribuições precisam ser resgatadas. Por isso é sempre louvável quando um documentarista se debruça em histórias como a que vemos no filme Môa, Raiz Afro Mãe, uma produção da Kana Filmes, com roteiro e direção de Gustavo McNair e distribuição da O2 Play.
Môa, Raiz Afro Mãe conta a vida e trajetória do compositor Romualdo Rosário da Costa, conhecido como Môa do Katendê, percussionista, mestre de capoeira de Angola e símbolo de resistência cultural – considerado um dos responsáveis pela revolução do carnaval baiano com a ascensão dos blocos afro. Em outubro de 2018, Môa foi assassinado em um bar de Salvador, horas após o primeiro turno das eleições presidenciais, devido a uma discussão relacionada à disputa eleitoral. O crime foi motivado pela forte intolerância política.
O filme começou a ser produzido antes da morte do mestre de capoeira, que chegou a gravar entrevistas para o documentário. Em complemento a seus relatos, a história do artista é contada por meio de imagens e depoimentos de figuras como Gilberto Gil, integrantes do BaianaSystem, além de pesquisadores e mestres da cultura afro, amigos de Môa que o acompanharam na criação do afoxé Badauê e nos seus trabalhos como educador.
O Grito! conversou com o diretor Gustavo McNair que nos fala do aprendizado proporcionado pelo filme ao mergulhar na ancestralidade da cultura afro na Bahia e da contribuição que ele traz para as gerações futuras ao manter vivo o espírito inquieto e criativo de Môa, um artista que cultivava as tradições, mas não hesitava em inseri-las no mundo contemporâneo estabelecendo conexões entre o passado e o presente.
O Grito! – Como e quando surgiu a ideia de fazer um documentário sobre Môa do Katendê?
Gustavo McNair – A ideia de fazer um documentário surgiu junto a Môa, quando o conhecemos no início de 2018. Ele tinha uma vontade de contar a sua história e nós ficamos encantados pelo que ele falava, ensinava, por sua sabedoria, sua história. E também perplexos por ele não ter um reconhecimento nacional que fizesse jus ao tamanho da sua importância para a cultura brasileira.
De que forma a morte violenta de Môa, ocorrida no início da produção do documentário, influenciou na concepção do filme não apenas em seus aspectos formais, mas também no seu conteúdo? O que foi introduzido e não estava previsto inicialmente?
Quando conhecemos Môa e decidimos fazer o documentário, queríamos fazer um filme sobre sua vida, como forma de disseminar sua história e ecoar seus ensinamentos. Depois de sua passagem, quando seu nome ganhou projeção como uma espécie de símbolo político (que ele era, mas não por seu assassinato, mas pelo seu trabalho como arte-educador e mantenedor da cultura afro-brasileira como forma de elevar o Brasil), tivemos certeza de que o filme precisava continuar sendo sobre sua vida. Para devolvê-lo ao lugar da cultura a que ele pertencia e continuar celebrando o que ele acreditava. Queremos disseminar a mensagem que ele trabalhou a vida toda, uma mensagem de união da nossa diversidade através do conhecimento, valorização e identificação da nossa cultura ancestral.
Além de mostrar a relevância de Môa como artista – músico, dançarino, capoeirista, produtor cultural – o filme é também um inventário sobre a cultura afro em Salvador, sobretudo sobre a presença dos afoxés no carnaval baiano. Vendo Môa, Raiz Afro Mãe temos a impressão de que existia uma lacuna em termos de produção audiovisual sobre o tema. A intenção desse resgate já existia no início ou foi se consolidando durante a realização?
Acho que as duas coisas. Estamos num momento de retomada da narrativa por personagens diversos. Nós, enquanto realizadores, somos interessados nesses personagens, que trazem ensinamentos e ampliam os caminhos de reconexão com a identidade brasileira. E quanto mais a gente os conhece, mais percebemos o quanto ainda precisamos conhecer.
O contato com Môa e com todo o universo em que ele orbita, nos fez, e ainda faz, aprender muito, e ao mesmo tempo perceber nossa ignorância em relação à nossa história cultural. Fizemos muita pesquisa e estudamos bastante para aprender um pouco mais sobre manifestações de matriz africana — e sempre faltam registros, porque é um universo muito rico.
Mas especialmente a história do carnaval na Bahia, que é uma manifestação da ancestralidade africana da Bahia, é muito rica e pouco contada. Então poder ajudar a contar um pouco dessa memória, que é um aprendizado para o presente e futuro, através de uma figura tão polifônica e inteligente como Môa, que era protagonista dessa revolução com um pensamento de vanguarda sobre os modelos de desfiles etc., foi um desejo intrínseco ao filme, desde o começo, e só ganhou força à medida que avançamos na concepção e produção. Não tem como contar a história do Môa sem contextualizar a história do carnaval dos anos 70.
É claro que o filme não dá conta de toda a riqueza dessa história, assim como um só filme não dá conta do tamanho de Môa. Conseguimos falar dos principais momentos da biografia dele, mas claro que muita coisa fica de fora. E conseguimos por meio dele acessar um pouco da história da ascensão das manifestações negras no carnaval da Bahia, uma história que se entrelaça à história do Môa, e que ajuda a refletir sobre os temas que estão permeando ao longo do filme todo: o racismo, preconceito cultural, a crise de identidade brasileira, o apagamento de artistas negros etc.
Uma das questões abordadas no documentário seria o não reconhecimento pelos próprios baianos, com exceção de nomes como Caetano Veloso e Gilberto Gil, da importância de artistas raízes como Môa no cenário cultural brasileiro. Embora não cite nomes, levantar essa questão não deixa de ser uma crítica a um certo circuito musical de ritmos baianos que tem grande visibilidade midiática. Nesse sentido, você acredita que o seu documentário pode mudar a compreensão das pessoas quanto a cultura afro no Brasil?
Acho que existe no Brasil uma ignorância em relação à nossa história cultural, muito porque ela é em grande parte fruto antropofágico da diáspora africana, com os povos indígenas e os colonizadores europeus, e o racismo estrutural tentou sempre diminuir a riqueza dessas narrativas. Então existe muito preconceito, porque existe desconhecimento. E vice-versa. É uma espiral de silenciamento de vozes que trazem conhecimento de narrativas que desafiam a história contada pelos colonizadores.
Môa, assim como tantos outros mestres da cultura ancestral, ensina que precisamos conhecer, reverenciar, e manter viva a cultura afro-brasileira, que é a nossa verdadeira riqueza. E que é a cultura originária do Brasil, que pode nos alimentar de argumentos de Brasil, nos unir em volta de uma identidade comum, nos reconectar e superar as nossas diferenças. Tudo isso é, na verdade, o que temos de melhor.
Môa Raiz Afro Mãe foi realizado num dos períodos mais difíceis da vida brasileira contemporânea. Hoje, felizmente, as trevas do fascismo estão sendo sopradas para longe. De certa forma, seu filme é o documento de uma época. Que contribuição ele deixa para as futuras gerações?
Acho que o filme deixa uma contribuição prática enquanto registro histórico de um movimento importante para a formação estética cultural do Brasil, mas deixa principalmente uma mensagem de conhecimento, reconexão histórica e amor pelo Brasil, por meio da história de um homem que amplia os caminhos e as possibilidades de acessos às riquezas da nossa diversidade, e ao nosso potencial de futuro. Acho que esta é uma mensagem muito importante agora, neste momento histórico em que estamos, mas também para o futuro. Precisamos aprender com nossos ancestrais para termos um futuro mais possível. Ancestralidade aponta para frente, o “Futuro é Ancestral”, como diz o título do livro mais recente de Ailton Krenak. É a mensagem que Môa carregava e a que o filme pretende contribuir.
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