É comum se render à tentação de destacar a importância de Pedro Cobiaco pelo inusitado: tem apenas 19 anos e já está no segundo álbum autoral de quadrinhos. Mas é importante lembrar um dado marcante: ele é parte de uma geração que começou cedo e que desde sempre utilizou todos os meios disponíveis na rede com muita naturalidade. Assim como seus pares ele também é bem disposto à experimentação, o que dá aos seus trabalhos um tom de crueza, caos e sensibilidades muito evidentes. A existência de autores como ele é essencial para as HQs brasileiras.
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A Mino lança agora As Aventuras na Ilha do Tesouro, uma HQ que explora o melhor das histórias de fantasia, mas com um traço muito particular de Pedro, entre a narrativa clássica de aventura e as inovações estéticas. A HQ traz personagens carismáticos e conta a história de um Capitão e seus amigos em uma ilha mágica. É uma obra cheia de sensibilidade, mas também muita força criativa para explorar as possibilidades da linguagem dos quadrinhos.
Para quem acompanha Pedro desde Harmatã (2013) vai se surpreender com um autor ainda mais ousado na forma e no texto, agora com o uso de cores. O livro será um dos destaques da Mino no Festival Internacional de Quadrinhos, que começa nesta quarta (11) em Belo Horizonte. A editora lança também Mayo, do Fábio Cobiaco (pai de Pedro) sobre uma heroína brasileira que percorre o Brasil arcaico atrás de tesouros.
Conversamos com Pedro sobre as inspirações para a nova HQ, histórias de aventura, quadrinistas de geração e paixões.
Você fez parte de uma nova geração de autores que já começou fazendo uso desse novo modo de produção, bem mais independente (selos menores, crowdfunding, divulgação online, produção própria). Como avalia o momento atual? Quais os desafios?
Acho que o momento atual abre imensas possibilidades de alcance para os autores e autoras, que já não dependem mais de terceiros pra que possam ter suas histórias veiculadas ou seus trabalhos expostos, visíveis pra todo mundo. Esse papo que a gente já ouviu em toda entrevista do mundo, mas é porque é real mesmo. E, mesmo quando em dependência de terceiros, com todas as pequenas editoras e editoras iniciantes estando cada vez mais em alta, as possibilidades se abrem de qualquer modo. Posso estar falhando na minha análise, mas não acho que exista uma “força principal” no mercado nesse momento, tirando talvez algo como a MSP, que de qualquer modo joga outro jogo, não é com quem estamos competindo. Veja por exemplo a Cia das Letras, que era o sinônimo do que existe de mais importante sendo lançado aqui, mas que já anda fraca de lançamentos há uns dois anos (digo em quantidade de títulos mesmo, mas talvez também em títulos de destaque) e que agora está tendo o nome coberto por editoras novas, como a Veneta (que, vale lembrar, é tocada pelo Rogério de Campos, nome importante pro nosso quadrinho) ou mesmo pra Mino, que fez um primeiro ano fortíssimo nesse 2015.
Em suma, acho um período ótimo pra que novos autores tenham seus trabalhos chegando em muita gente. Porém, sinto falta de uma resposta mais forte dos próprios autores à esse tempo de acessibilidade. Falo de gente mais nova, apesar de talvez termos também nossos velhacos dormindo na cadeira enquanto a cena roda e roda. Sinto que faltam mais novos autores pesquisando quadrinhos, história dos quadrinhos, estudando quadrinhos, lendo todos os quadrinhos do mundo sem preconceitos ou baboseiras, entendendo quadrinhos, se perguntando questões incisivas, propondo coisas mais interessantes, ou seja, agindo como reais profissionais do que fazem, mais do que gente de passeio pela área.
Não que não tenhamos nomes explorando de maneira bem forte as possibilidades do momento em que estamos. A LVLV6, por exemplo, é uma autora que eu venho admirando cada vez mais, por me parecer bem sintonizada com questões atuais (afinal, não foi sem motivo que ela virou uma voz de peso) e por estar usando quadrinhos de uma maneira muito interessante. Temos também o Jopa Moraes, que eu considero o quadrinista mais interessante e promissor da nossa geração – uma pena que o filho da puta não esteja publicando nada nesse exato momento, ou vocês poderiam confirmar. O (Felipe) Nunes também está fazendo um trabalho foda e muito respeitável, dando o sangue com profissionalismo mais do qualquer um, eu mesmo admiro e invejo muito, e o resultado disso na obra dele é cada vez mais visível. Enfim, apesar de ter meus pessimismos, também acho que temos, sim, muitos novos autores interessantes aparecendo. A Aline Lemos (da página Desalineada, publicando também na Mandíbula) é uma quadrinista que eu acho que todos vocês se arrependeriam de não começarem a prestar atenção agora. Temos também a Mazô, que fez alguns dos quadrinhos mais fantasmagóricos e instigantes que li daqui no último ano, leiam Ateneu e as coisas dela pra nébula. A Paula (Puiupo) e o Adonis, que tão pra lançar o Úlcera. O Diego Sanchez, que é coleguinha de Mino e da vida, e que faço questão de elogiar por estar fazendo um trabalho muito bonito (e por estar dando as entrevistas mais engraçadas). O Victor H, que tá começando a ousar em narrativas maiores e que tem uma mente lírica criativa linda. O Felipe Portugal, que tá dando um salto imenso do último quadrinho dele (Badonkadonk) pra esse novo (Espiga). Conheci também agora em Santos, na Comic Expo, um pessoal, alunos do Victor Freundt (que amo e admiro) que me animaram pra caralho por tarem imensamente animados com quadrinhos. Eles respondem como Quadriculando e tem alguns ali que tão totalmente incendiados de fazer HQ, acho foda demais isso. Enfim. E muitos outros autores que eu espero conhecer no FIQ, como costuma rolar.
Histórias de aventura carregam um poder muito grande de gerar mais aventuras, elas formam novos viajantes, novos doidos, fazem as pessoas fugirem de casa e fazem homens e mulheres
O Capitão, protagonista de sua nova HQ, tem muitos elementos do herói clássico de fantasia, mas ao mesmo tempo ele é bem peculiar. Como foi para você compor esse personagem?
No começo, foi totalmente instintivo, hahaha. Não tive nenhum planejamento específico da personalidade do capitão, diferente do que fiz com todos os outros personagens. Eu fiz ele totalmente no impulso por dois capítulos, e ai quando acabei eles dois percebi que poderia ser bom entender melhor esse personagem que eu estava trabalhando. Então eu peguei os dois capítulos que tinha prontos, abri um caderno, e fiz uma analise anotada quadro por quadro de cada emoção, reação, expressão e ação do Capitão por esses dois capítulos, e com isso eu construí um mapa base da personalidade dele, de quem ele era, poderia ser. Comecei a entender os questionamentos e confusões dele melhor, e ai fui construindo. Ele é um personagem de extravasadas, intenso, emotivo, confuso, canalizando alguma coisa de mim que eu gostei muito de ter conseguido botar ali.
Você gosta/acompanha histórias de aventuras? Quais são suas referências e como elas aparecem no seu trabalho?
Eu amo histórias de aventura, porque elas conseguem canalizar grandes sentimentos da vida. Uma aventura é sempre uma coisa grandiosa, uma coisa com começo, meio, muitos fins e ai depois zilhões de começos de novo, que parece que invalidam todos os fins. É uma coisa infinita, e eu adoro que o personagem de aventura seja essa forma de vida em movimento eterno e constante. E aí, quando uma pausa existe, quando um silêncio se cria, quando um Corto Maltese senta na beira da praia ou quando um Jack Kerouac olha a paisagem do banco do carro, isso se sente com uma intensidade tão grande, é uma coisa de tanta ternura, nada é mais mágico na vida do que o confrontamento do aventureiro com ele mesmo e com o mundo dentro de uma jornada. Histórias de aventura carregam um poder muito grande de gerar mais aventuras, elas formam novos viajantes, novos doidos, fazem as pessoas fugirem de casa e fazem homens e mulheres atravessarem certos lugares e travarem certas jornadas atrás da trilha de quem veio antes. O livro de aventura congela uma aventura, não é incrível? A ideia de que uma coisa tão caótica, de tantos lados e possibilidades, possa ser capturada, mesmo que não em totalidade, mas ao menos em essência.
Você lançou o Harmatã de forma independente e depois pela Mino, que agora lança também o “Aventuras na Ilha do Tesouro”. Como começou esta parceria e o que você está achando?
Está sendo incrível. Desenvolvi uma conexão emocional muito forte com a Janaina e o Lauro [fundadores e editores da Mino]. Eles são muito conscientes, inteligentes e maduros (mas permanecem doidos) e viraram uma estrutura pra que eu pudesse trabalhar, crescer como profissional, crescer como gente. Viramos amigos mesmo, é muito bonito. Posso te dizer com toda a certeza do mundo que o papel deles no livro é imenso. Não existia Ilha se não existisse Mino. E não tou falando de imprimir, tou falando de criar. Eles editam de verdade – metem o nariz, sugerem, discutem, conversam, eles amam isso aqui como eu amo, e isso é maior que qualquer outra coisa pra mim. São pessoas com quem posso passar horas (sério, a gente passa) discutindo porque tal papel é melhor pra tal livro mais do que outro, gente com quem posso conversar narrativa, enquadramentos, sem cansar, porque ali dentro tudo isso importa muito. E falamos mal (e bem) de todo mundo juntos, claro, somos umas corocas. Aprendo muito do mercado, de quadrinhos, dos autores e da vida com eles. Dá pra dizer que li também muito mais desde que virei um Mino, HAHA, a biblioteca deles é imensa e ótima. Além de que eles me abrigam todo final de semana depois das minhas perambulações por São Paulo. Corre por aí a lenda de que a Mino só publica autores que não tenham onde dormir.
Esta é sua primeira narrativa longa toda em cores certo? Como foi colorir seu traço?
Um inferno. HAHA, sério, foi a coisa mais difícil de todas. Teve páginas ali que puta que pariu! Mas a cor foi também um dos campos onde eu mais senti prazer de trabalhar no processo, e uma das partes do quadrinho onde mais consegui acreditar que criei coisas interessantes, fascinantes. Acho que fiz um bom trabalho com essas cores, mas tou curioso pra ver o que penso daqui a um ano, porque muito do que eu experimentei ali acho que beira o brega (que foi o motivo d’eu querer fazer, kakaka).
O que você anda lendo e ouvindo ultimamente?
Ando lendo: Truman Capote (terminei A Sangue Frio, que livro), Tomas Pynchon (no caso Vineland, nunca li nada mais divertido, denso, bagunçado e absurdo na vida), Power Paola (o quadrinho dela que saiu aqui pela Nemo, Vírus Tropical, é ótimo! Recomendo muito), Tércia Montenegro (ainda não acabei, mas Turismo para Cegos tá se saindo uma das coisas mais bonitas que leio em um bom tempo), um livro de entrevistas do Ginsberg (e eu pensava que dava respostas longas… e quanta coisa incrível ele fala! de estourar a cabeça mesmo, muitas ideias fascinantes sendo jogadas), Nausicäa (do Miyazaki, uma das obras mais lindas de quadrinho da história), Dragon Head (um mangá INCRÍVEL de suspense, grandioso pra caralho, dum jeito que só esses quadrinhos de duzentas mil páginas conseguem ser) e acho que é isso.
Ando ouvindo: Lambchop (uma banda maravilhosa dos EUA, descobri não tem nem um mês e tou obcecado, eles constroem essas músicas longas que nunca enjoam, são calmas e cínicas ao mesmo tempo, ternas e debochadas, e o vocalista/compositor, Kurt Wagner, é um mestre), Siba (velho, esse cara é FODA. Quem me mostrou foi a Janaina. Tou ouvindo muito o Fuloresta do Samba, uma das coisas mais intensas, poéticas e cheias de vida que eu já vi, amando, a história por trás desse disco é incrível também, procurem no youtube um doczinho que explica legal até), Julia Holter (virou uma das minhas músicas preferidas do mundo, eu chorei sangue dia após dia esperando sair o álbum dela esse ano. É encantador, onírico, cotidiano mas com um realismo mágico, lindo mesmo), Nina Simone, Scott Walker, Cartola, Nick Cave, Sharon Van Etten, Miles Davis, Nação Zumbi, Almir Sater, Mark Lanegan, um cara incrível chamado Destroyer, MC Bin Laden (que tá fazendo coisas incríveis e muito bem produzidas, além de ter clipes fodas), e sei lá, é isso ai, tem muita coisa pra lembrar.
Qual a lembrança mais remota de desenhar, ou melhor, de querer ser um quadrinista?
Velho, se eu conseguisse lembrar a primeira vez que desenhei… não lembro nem que foi que eu comi no almoço de ontem, HAHAHA. Mas de fazer quadrinhos… não sei. Lembro de querer fazer coisas mais a sério depois que li Akira. Nessa época juntei com uns amigos, éramos todos fãs de Naruto e tentamos fazer uma história em conjunto, um mangá. Eu ia ser o desenhista. Só que ai a gente fazia reuniões pra desenhar (eu devia estar na quinta série) na casa de um dos figuras, que tinha piscina e o cacete, e ai todo mundo ia pra piscina e eu lá naquela mesa com o papel, sozinho na sala silenciosa. Falava “se fuder que eu vou ficar aqui” e ai pulava fora pra ir com eles jogar bola, nadar, HAHAHA. Ai nunca rolou o tal mangá.
Depois de “Aventuras…” o que você está preparando? Pode adiantar alguma coisa?
Não faço a menor ideia, juro. Tive umas duas, três semanas de ficar com a cabeça borbulhando depois que acabei o livro, tendo mil ideias do que fazer, começando várias coisas, pilhando total. Mas percebi esses dias que não é assim, não é isso que eu quero ou preciso agora. Vou tirar um tempo pra ler, pesquisar, viver. Depois eu volto e penso a próxima. Queria fazer bastante história curta até lá também, me manter trabalhando. Uma vontade que eu tinha era de fazer algo que envolvesse pesquisa de campo, entrevistas, ou quem sabe algo parecido. Outra era a de trabalhar com tiras, acho um formato foda. Tou numa de estudar quadrinhos antigos, sunday pages e tal. Mas quem sabe, por enquanto eu quero ver no que vai dar a Ilha, que eu passei um puta tempo suando sangre nisso, hahaha. Tou curioso pra ver até onde ela vai. Finalmente eu sinto que tenho meu livro, e que tem gente muito boa trabalhando nele comigo (me refiro à Mino), pra fazer ir longe.
Serviço:
As Aventuras da Ilha do Tesouro tem 144 páginas e custa R$ 68.