Gabeu 1. Créditos Sillas H
O cantor queernejo Gabeu (Foto: Sillas H / Divulgação)

Entrevista com Gabeu, ícone do Queernejo, movimento que une o imaginário sertanejo com a cultura LGBTQIA+

Abraçando o mix com o pop e o eletrônico, movimento exalta as raízes caipiras ao mesmo tempo em que celebra a diversidade

Vertente que reúne artistas LGBTQIA+, o Queernejo ganha milhares de fãs e abre espaço a novas vozes no Brasil num gênero tradicionalmente dominado por homens héteros. Em 2019, Gabeu lançou sua primeira música, Amor Rural, pegando de surpresa a comunidade LGBTQIA+ e, especialmente, a comunidade de música sertaneja. “Desde a composição até o videoclipe eu já tinha tudo pronto na minha mente e eu contei com um time que entendeu e se jogou na ideia de resgatar esse sertanejo romântico”, conta o artista, filho de Solimões, da tradicional dupla Rio Negro e Solimões.

Além de Gabeu, fazem parte desse movimento musical nomes como Gali Galó, Alice Marcone, Reddy Allor, Bemti, entre outros. O objetivo do movimento é também abarcar outros gêneros musicais além do sertanejo, abraçando o pop, o eletrônico e outros estilos. “O Queernejo surge da necessidade de artistas do interior, caipiras, de se reconectar com suas raízes, com o lugar de onde vieram, de uma forma harmônica e genuína, sem que precisemos negar outra importante característica, que é o fato de sermos parte da comunidade LGBTQIA+”, detalha Gabeu.

“Tive momentos meio conturbados com o estilo, houve uma época de negação muito grande por não identificação, em paralelo com meu processo de auto-entendimento enquanto homem gay”, relembra Gabeu. Sua proposta de fazer música caipira e sertaneja com humor e representatividade lhe trouxe ainda mais holofotes.

Gabeu adianta ainda à Revista O Grito! que lança seu primeiro álbum ainda neste mês de agosto. “É o maior projeto da minha vida”. Confira o bate-papo com o cantor:

Qual origem da sua relação com a música sertaneja?

Essa relação nasceu quando eu nasci! A música sertaneja sempre esteve presente ao meu redor e dentro de casa, o gênero musical predominante no interior de São Paulo é o sertanejo, e por conta do meu pai eu acabei conhecendo muitas coisas da música caipira.

Curtiu o estilo desde jovem? Sempre se sentiu à vontade, era um lugar peculiar a você?

Tive momentos meio conturbados com o estilo, houve uma época de negação muito grande por não identificação, em paralelo com meu processo de auto-entendimento enquanto homem gay. A ideia enraizada de homem bruto e rústico nunca combinou comigo, então acabei me encontrando em outros lugares, outros estilos, outros gêneros e inclusive outras áreas da arte, porque nesse processo também vinha na minha mente que eu jamais faria música de forma profissional, que seria apenas ou hobbie, não via muitas possibilidades de mercado. Com isso eu fui para o teatro, fui para o cinema e hoje com todas essas outras bagagens eu sinto que estou ainda mais preparado para mostrar a minha arte.

Qual influência do seu pai, o cantor Solimões, na sua trajetória? Ele reconhece a representatividade do seu trabalho para a comunidade LGBTQIA+?

Nossa relação se baseia em respeito e afeto. É importante ressaltar que o meu pai me apoia e me incentiva porque sou filho dele e ele me ama por isso, mas ainda assim existem barreiras quando se trata dessas pautas, conflitos geracionais. Eu reconheço a importância do meu trabalho e aqueles que me consomem também, eu não espero a aprovação ou reprovação de quem não possui essas vivências.

Você tem formação em música, chegou a estudar nessa área?

Atualmente estou cursando produção fonográfica e tenho adquirido cada vez mais conhecimento musical e mercadológico, são coisas que eu gosto de estudar além de executar. E obviamente tenho estudado bastante sobre a história da música sertaneja, por conta própria. 

Vamos falar sobre o Queernejo. Quando vocês perceberam a necessidade de criar um movimento? Quem são os demais integrantes?

O Queernejo surge da necessidade de artistas do interior, caipiras, de se reconectar com suas raízes, com o lugar de onde vieram, de uma forma harmônica e genuína, sem que precisemos negar outra importante característica, que é o fato de sermos parte da comunidade LGBTQIA+. Em 2019 fomos nos conectando online, prestando atenção no que cada um de nós estávamos fazendo, quando surgiu a ideia de Gali Galó, de realizarmos um festival, o Fivela Fest. Esse festival marca o nosso encontro e firma esse coletivo de artistas LGBTQIA+ no sertanejo, com shows meu, de Gali, Alice Marcone, Reddy Allor, Bemti, entre outros.

Historicamente, a história do sertanejo está muito ligada ao imaginário de uma masculinidade tóxica. Na sua opinião, existe entrave para a aceitação do Queernejo por parte dos LGBTQIA+?

Sim, existe uma abertura grande desse público para essa proposta, mas existe também uma parcela de pessoas que são resistentes, o que eu acho totalmente compreensível porque eu fui resistente a isso durante muitos anos. Talvez algumas dessas pessoas ainda não tenham entendido totalmente a ideia ou simplesmente não gostam de sertanejo mesmo, o que também é válido. É impossível dialogarmos artisticamente com todas as pessoas e não é porque temos um discurso de representatividade LGBTQIA+ que vamos atingir toda a comunidade, que é extremamente plural. Historicamente, o sertanejo está sim ligado ao imaginário de uma masculinidade tóxica, mas também ao racismo, por exemplo, o que também impede a aderência de pessoas negras no gênero. Aonde estão os artistas negros do sertanejo? Por que com o passar das décadas o sertanejo foi ficando cada vez mais branco? São perguntas importantes que devemos nos fazer também.

E qual sua avaliação sobre a recepção do público e dos artistas do sertanejo mais tradicional?

Tem de tudo, pessoas que compraram a ideia, que aderiram a mensagem, pessoas que não estão nem um pouco a par das pautas LGBTQIA+ mas que se aproximaram pela nostalgia, porque de alguma forma, musicalmente, o meu som tocou em algo que as transportou para um outro momento da vida delas, pessoas mais velhas que começaram a se interessar um pouco mais por essas discussões e a olhar seus filhos e filhas LGBTQIA+ com mais carinho… Muitas coisas boas vieram! Óbvio que nem tudo são flores e existem sim muitas outras pessoas que se sentem extremamente incomodadas com tudo isso, e especialmente na internet elas tem muita coragem de dizer tudo o que elas pensam, sem medo algum. Tenho meus dias bons e ruins, dias que nada disso me afeta e dias que eu acabo sentindo o peso dessas críticas, não dá pra fingir que é sempre fácil lidar com isso, mas a gente segue tentando e no final fica tudo bem.

Já foi vítima de homofobia nas redes? Como reage para combater o preconceito?
Sempre aparece uma pessoa ou outra nas redes com comentários infelizes, alguns desses comentários eu sinto que devo responder, outros não, alguns de forma mais séria, outros de forma mais debochada, depende muito também de como aquilo me atinge naquele momento. Mas acho importante não abaixarmos a cabeça, respeitando também a nossa própria saúde mental e os nossos limites, para que a gente não enlouqueça.

Do ponto de vista da representatividade LGBTQIA+, quais são as suas inspirações?

Minhas maiores inspirações estão na música. Orville Peck é um cantor de country gay que me inspira musicalmente e esteticamente, o fato de se lançar num gênero musical norte-americano que também carrega preconceitos, assim como o sertanejo, faz dele uma figura que me inspira demais! A Linn da Quebrada é uma pessoa que vou exaltar sempre que eu tiver chance. Eu digo que para mim ela é a maior artista brasileira que temos hoje, além de carregar consigo um discurso muito potente sobre as mulheres trans. Ela tem uma proposta artística que é muito única, isso me inspira, estou viciado no Trava Línguas.

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O artista se prepara para lançar seu primeiro álbum neste mês de agosto (Foto: Sillas H / Divulgação)

Você se posiciona em relação à política nas redes sociais e como você vê a postura de outros cantores no sertanejo?

Eu encaro a postura da isenção como conivência. Não é a forma que eu acredito que devamos lidar com as coisas, com o atual cenário que estamos vivendo, por exemplo. Busco usar os privilégios que possuo para, além de fazer arte, passar uma mensagem e discutir questões importantes.

Você chegou a lançar um trabalho pop, antes de fazer a transição para o sertanejo?

 Há uns anos atrás eu costumava pegar instrumentais de músicas pop na internet, escrever uma letra em inglês e gravar no meu quarto, de forma bem amadora, sem pretensão e planejamento algum, eu simplesmente fazia e postava num antigo canal do YouTube que eu tinha. Mas hoje essas coisas estão bem guardadas, não acho que elas condizem com o que eu quero passar artisticamente hoje, mas quem sabe um dia eu não consiga revivê-las de alguma forma. Depois de um tempo cheguei a entrar no estúdio de fato para gravar algumas coisas, mas nada que eu tenha levado adiante, acho que eu ainda não era maduro o suficiente para afirmar com certeza o que eu queria musicalmente.

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Foto: Silas H./Divulgação.

Seu primeiro hit é “Amor Rural”. Como foi o processo de produção dessa música?

Foi bem interessante porque foi minha primeira experiência profissional de produção em um estúdio, eu já havia gravado algumas coisas antes, como dito anteriormente, mas num momento muito incerto, de não saber exatamente o que eu queria, projetos que nunca vingaram. Mas com “Amor Rural”, desde a composição até o videoclipe eu já tinha tudo pronto na minha mente e eu contei com um time que entendeu e se jogou na ideia de resgatar esse sertanejo romântico. O Fabrício, meu produtor e arranjador, não poderia ter feito “Amor Rural” de uma maneira melhor, ele entregou exatamente o que eu escutava antes de produzirmos.

Qual a previsão para o lançamento do seu álbum, com algumas parcerias? Já tem título?

Meu primeiro álbum sai em agosto. Já temos data, nome e está tudo pronto, estou para anunciar muito em breve! É o maior projeto da minha vida, estive trabalhando nele por quase dois anos e espero muito que as pessoas curtam, porque é musicalmente bem diverso. Embora no final seja tudo sertanejo, cada música bebe de uma fonte diferente, de uma fase diferente do sertanejo e outros gêneros musicais, além de contar com duas parcerias incríveis!

O que tem feito para sobreviver à pandemia?

Terapia! A terapia tem me ajudado muito a lidar com todas as questões da minha vida, algumas são mais difíceis que outras, e durante esses últimos meses tudo ficou mais intenso para mim. Entendi o que é são crises de ansiedade e de pânico e exercitar minha comunicação na terapia tem sido positivo.

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