Um jovem que gosta de práticas sexuais muito particulares, principalmente ligadas ao fetichismo. Esses fetiches vão de tênis Nike a meias malcheirosas. É dessa premissa que parte Vênus de Nyke, o mais novo filme do diretor recifense André Antônio.
Além de contar sobre seus encontros íntimos com outros homens, o personagem (interpretado pelo próprio André, que também assina roteiro, montagem, arte e figurino), vai a sessões de terapia, deixando sua analista obcecada por um paciente tão esquisito. “O universo dos fetiches e das práticas masoquistas quebra totalmente essa visão e pensa a relação erótica a partir de outros termos”, afirma o cineasta.
Vênus de Nyke é exibido na mostra competitiva do 28º Festival Internacional de Cine de Valdivia, no Chile, que ocorre em formato híbrido, em virtude da pandemia da Covid-19. Também está marcada a estreia europeia do filme para o Festival du Film LGBTQI & +++ de Paris, que ocorre de forma presencial, entre 20 e 30 de novembro.
Veja aqui na Revista O Grito!, em primeira mão, o trailer desse média-metragem de aproximadamente 41 minutos.
Vênus de Nyke – Trailer from Deslumbramento on Vimeo.
Esse formato, a princípio, não estava no planejamento do realizador. “Não foi algo premeditado. Quando escrevi, achei que seria um curta e durante as filmagens descobrimos que certamente seria mais longo”.
André Antônio integra o coletivo Surto & Deslumbramento, criado em 2012, ao lado de Chico Lacerda, Fábio Ramalho e Rodrigo Almeida. André dirigiu ainda os curtas-metragens Mama (2012) e Canto de outono (2014), além de A Seita (2015), seu primeiro longa-metragem, sempre atuando em diversos ofícios cinematográficos.
O grupo tem se destacado no cenário nacional por fazer apenas filmes sobre temática LGBTQIA+. Além desse longa, já foram realizados 14 curtas com circulação em diversos festivais no Brasil e no exterior, com inúmeros prêmios e menções honrosas. O coletivo produz um cinema que busca se distanciar da heteronormatividade, apresentando um cinema ligado ao artifício, ao deboche e ao lúdico.
Nesta conversa, o cineasta detalha seu novo filme, revela suas inspirações, analisa a produção LGBTQIA+ no cinema brasileiro e critica o atual desmonte na área.
Seu mais novo filme Vênus de Nyke tem estreia marcada para o Festival Internacional de Cine de Valdivia, reconhecido como um dos mais importantes no Chile. Qual expectativa para fazer o debut da obra lá? O evento será realizado em formato online?
Este ano o FICValdivia acontece de forma mista, com sessões presenciais e também online (apenas para acesso no território chileno). Fiquei bem animado com a estreia lá, porque além de ser um festival muito prestigiado, a programação sempre destaca filmes mais experimentais, com uma pesquisa de linguagem mais ousada e que propõem discussões políticas que não estão separadas da estética. Muitas vezes filmes que dialogam com o universo LGBTQI+ são vistos apenas por essa dimensão, são valorizados só por abordarem esse “tema”. E aí o lado da pesquisa estilística é meio esquecido. Fazer parte da mostra competitiva de longas (o festival considera como “longa” qualquer filme que tenha mais de 40 minutos) mostra que um filme como Vênus de Nyke, mesmo abordando questões queer, pode interessar a qualquer pessoa, e pode propor experimentos estéticos e de linguagem como qualquer outro filme.
De onde surgiu a ideia de realizar um filme com sessões de terapia de uma bicha fetichista?
A heteronormatividade enxerga o sexo a partir de vários dogmas: a centralidade dos genitais, esquecendo de todas as outras partes do corpo e excluindo acessórios inorgânicos (como certas peças de roupa); a procriação, ignorando que é possível trepar sem finalidade específica; a monogamia, restringindo a possibilidade de descobertas com pessoas diferentes, etc. O universo dos fetiches e das práticas masoquistas quebra totalmente essa visão e pensa a relação erótica a partir de outros termos. Desde que comecei a perceber minha sexualidade, sou fascinado por esse universo e é algo que cultivo até hoje quando trepo, então achei que tinha chegado a hora de fazer um filme sobre isso. Porém, o mergulho no fetichismo pode trazer um perigo: o vício, o dar uma importância desmedida a essa dimensão da vida, esquecendo de todas as outras, acreditando que esse é o único lugar onde se encontra plenitude, prazer e realização. Aí eu estruturei Vênus de Nyke através de uma dialética entre um paciente que está completamente obcecado por sua prática masoquista e uma psicóloga que consegue enxergar aquilo com um certo distanciamento, com alguma dose de ironia e através de pesquisas que tentam entender de onde vem aquele fetichismo. Tentei, no filme, não optar por nenhum dos dois lados, criando uma tensão entre os dois extremos.
O filme tem 41 minutos. Por que contar essa história em formato de média-metragem?
Não foi algo premeditado. Quando escrevi, achei que seria um curta e durante as filmagens descobrimos que certamente seria mais longo. O primeiro corte tinha mais de 50 minutos e ao longo do processo de edição o filme encontrou seu tempo certo em 41 minutos. Por um instante até passou pela minha cabeça diminuir para caber no formato “curta” e assim, possivelmente, ter mais chances no circuito de festivais. Mas aí eu teria que tirar do filme várias coisas que considero importantes para ele “dar seu recado”. Decidi que deveria ter o tempo que o próprio filme estava pedindo, independente de convenções externas. Acho meio bobo que vários festivais brasileiros ainda desconsiderem o formato do média-metragem, cuja duração é mais ou menos a de um episódio de série – o gênero audiovisual mais assistido pelas pessoas atualmente.
Como foi a sensação de fazer cinema durante a pandemia? O que mudou para o modus operandis da equipe trabalhar?
Eu realizei Vênus de Nyke porque o projeto do meu próximo longa, Salomé, teve que ser adiado devido à crise no repasse de verbas da Ancine (depois da chegada de Bolsonaro à presidência). Eu tinha um argumento engavetado que tratava do universo erótico fetichista que me interessa pessoalmente. Para não “enferrujar” o olhar de tanto esperar até “Salomé”, me propus o desafio de transformar aquele argumento num roteiro extremamente barato, que desse para ser filmado em uma única locação e com equipe mínima, garantindo a segurança dos envolvidos em meio à pandemia. Não sabia no que ia dar, mas fui ficando satisfeito com os tratamentos, percebendo que aquilo podia ser filmado integralmente apenas no apartamento onde moro atualmente. Em algum ponto percebi que eu mesmo poderia interpretar todos os personagens, como alguém que, no sexo, é versátil e gosta de ser tanto dominador quanto submisso. No fim das contas, conseguimos filmar tudo em 5 dias. Nos primeiros três dias, havia apenas três pessoas no set (eu, Aristeu Portela – que fez produção, catering e uma aparição como elenco – e Chico Lacerda – que fez a direção de fotografia). Nos últimos dois dias, chegou mais uma pessoa: Sosha, que fez a caracterização (maquiagem, cabelo e acessórios) da personagem da psicóloga. Todas as outras pessoas da equipe entraram no projeto na parte da pós-produção, atuando remotamente. Sem a experiência prévia dos filmes da Surto & Deslumbramento – muitos dos quais fizemos sem orçamento e com equipe mínima – e sem o aporte da Ponte Produtoras na finalização, não teríamos conseguido, mas ficamos bem felizes com o resultado.
Vários aspectos são caros aos filmes do coletivo Surto & Deslumbramento como a frivolidade, o humor, a ambiguidade e o artifício, por exemplo, que vão desde a escrita do roteiro até a montagem. Qual dimensão desses elementos está na construção de Vênus de Nyke?
Existe um hábito muito chato de associar personagens LGBTQIA+ a um status de vítima, para comover as plateias hétero e legitimar nossa existência através de uma estrutura dramática que, em algum momento, deve ter tido sua importância política, mas que agora já virou um clichê que ofusca outros milhões de aspectos complexos das nossas subjetividades. Em Vênus eu quis fazer um filme tesudo, pensando em espectadores que porventura venham a compartilhar comigo aquele erotismo – e não um filme higienizado que quisesse “provar” que o fetichismo masoquista gay é algo “normal”. Ainda bem que não é normal. Não acho que seja um fenômeno que precise ser julgado como positivo ou negativo. É algo que podemos investigar com o coração aberto. Também quis fazer um filme divertido, engraçado. Ter uma experiência de sexo dissidente não faz da vida algo amargo, triste e sério – pelo contrário, pode trazer potencialidade e descoberta. Por fim, um tema central no filme é a moda e a ligação que as roupas têm com a sexualidade. Eu tento investigar como o BDSM tem transitado, contemporaneamente, do universo das peças de couro para o mundo das roupas esportivas e suas marcas. É outra fantasia de dominação/submissão, onde a figura do motociclista (cap, jaqueta, botas) dá lugar à figura do bad boy moldada ao longo da década de 1990 (boné, tênis, calça adidas). A moda é uma dimensão relevante da nossa experiência no contemporâneo, embora possa parecer um assunto frívolo pra muita gente.
Qual a sua visão sobre o cinema de temática LGBTQIA+ feito atualmente no Brasil?
Comparando com a época em que a Surto & Deslumbramento começou a fazer filmes (2012), hoje eu percebo uma pluralidade maior de pontos de vista e de vozes diferentes. De lá pra cá tem havido também mais reconhecimento, por parte do circuito, da relevância dos debates sobre gênero e sexualidade. Eu particularmente adoro o cinema sci-fi cuir feito nos últimos anos aqui no Nordeste (filmes como Espavento, Boca de Loba, Janaína Overdrive, X-Manas, Eyes Without a Face no Recife, Batguano, I am Virus, Canto dos Ossos, etc). Também curto muito quando os temas LGBTQIA+ não se dissociam de experimentações formais mais radicais. E me interessa muito quando os filmes saem um pouco da questão das identidades sociais de gênero e investigam mais a fundo o sexo, o tesão e o erotismo.
Queria que falasse sobre sua formação cinematográfica, saber como foi esse processo.
Fiz graduação em Jornalismo porque na época não havia a opção Cinema. No curso havia algumas disciplinas que discutiam cinema de um ponto de vista mais teórico e crítico e também fiz Pibic e TCC sobre cinema, o que ajudou a cultivar um olhar mais aguçado e a cinefilia. Outra coisa que contribuiu pra aumentar o repertório fílmico foi ter colaborado com o Cineclube Dissenso, que acontecia na Fundaj todo sábado. Mas a parte prática mesmo aprendi fora da universidade, primeiro estagiando na produtora Símio Filmes, contribuindo sobretudo com os projetos de Marcelo Pedroso, e depois fazendo filmes junto ao coletivo Surto & Deslumbramento, com Chico Lacerda, Fábio Ramalho e Rodrigo Almeida. A formação prática foi e continua sendo mais autodidata, no próprio fazer, através de tentativas e erros.
A moda é uma dimensão relevante da nossa experiência no contemporâneo, embora possa parecer um assunto frívolo pra muita gente.
O cinema sofre um verdadeiro extermínio patrocinado pelo governo federal. Como seguir produzindo em meio a esse caos?
Não sei se eu teria uma resposta. Comecei a trabalhar com cinema por volta de 2010 e de lá pra cá vi algumas coisas mudando, ainda que de forma muito lenta e sutil: os sets passaram a adotar uma quantidade mais humana de horas de trabalho, os setores dos filmes passaram a ter equipes menos brancas e menos masculinas, tetos mínimos de cachê começaram a ser adotados, roteiros LGBTQIA+ começaram a ser um pouco mais premiados em alguns editais… De repente, a gente vê essas conquistas que eram apenas iniciais caindo por terra. Cinema é uma arte cara. Reunir as condições ideais pra fazer um filme sem orçamento, como foi o caso de “Vênus”, é raro. Artistas precisam pagar contas. Todos os países que apresentam uma produção cinematográfica robusta e lucrativa investem sistematicamente dinheiro público no setor. Não é uma questão de cinema comercial versus cinema de arte, essa história é velha, basta estudar um pouco o mercado para perceber isso. É uma questão de reconhecer que há uma grande movimentação econômica na área da produção criativa como um todo, em nichos diversos e variados, e a paralização nos investimentos públicos está destruindo aquilo que vinha dando provas de um grande potencial. Eu realmente desejo que num futuro próximo possamos estar em condições melhores e em vias de superar essa crise. E que o cinema saia dessa com um fogo renovado, com o amadurecimento e o aprendizado que os momentos adversos sempre proporcionam.
Que tipo de espectador você é com seus próprios filmes?
Sempre que faço um filme penso: este deve ser um filme que eu teria amado encontrar, descobrir, assistir e conhecer. Ao longo de todo o processo, desde escrever até ver os cortes mais finais, fico me perguntando: “eu teria amado esse filme se tivesse sido feito por outra pessoa?”. Sempre que a resposta é negativa, tento ir mudando o máximo que posso até chegar em uma versão que teria me deixado, no mínimo, obcecado caso eu fosse um espectador de fora. Então acho que sou o tipo de espectador que fica feliz com o fato desses filmes existirem. Mas também sempre acontece uma coisa louca: quando tento ver o filme pronto, não consigo distanciamento, não consigo captar a completude ou o sentido daquilo, não consigo enxergar o que o público está enxergando. É uma sensação de alheamento bem estranha.
MAMA (André Antônio, 2012) from Deslumbramento on Vimeo.
Leia mais entrevistas: