Lembro-me vagamente: eu era criança e uma voz nada convencional desafiava o volume máximo e a frequência do rádio. Mainha, o que danado é isso? E meus pais dando uma gargalhada. Isso é Elza Soares, menina. Isso é Elza e qualquer outra explicação não tinha serventia.
Eu, menina negra, criada entre os subúrbios e a classe média recifense, ia entrando em tempos difíceis da minha vida. Descobrindo o que é se sentir desterritorializada no próprio corpo – ainda que tão pequeno como era o meu – o que é ser instada a vigiar, controlar, suprimir cada gesto, fala, expressão de espontaneidade. Ao lado de minhas imposturas estavam, confusa e contraditoriamente, introjeções atabalhoadas de regras de conduta, de interdições. Além de uma dose prematura e mal disfarçada de amargor. Mainha, o que danado é isso?
Na minha casa, como em qualquer casa de brasileiro sem sobrenome, se o rádio não trabalhasse o dia todo – como trabalhavam, afinal, seus donos – eram as vozes da família que preenchiam o ambiente. Imagino, Elza, que de algum modo assim devia ser na sua própria casa. E ficamos nos conhecendo.
Filha de um casal que tinha feito certo sucesso no coral da igreja e, no caso do meu pai, no coral da Escola Técnica, cantar o dia inteiro era um dos tantos traços da personalidade irritante. Negro é dado a um barulho, rapaz… Da rua se escutava a cantoria do meu pai no seu banho. Mas – que danado é isso? – até o caos que era meu mundo tinha suas regras. E aqueles floreios na voz certamente burlavam cada uma delas.
Uma vez tentei imitar (“Fadas” era uma favorita) e me senti ridícula. Tinha menos a ver com a evidente diferença de qualidade vocal do que com um incômodo com a liberdade de corpo ali sugerida.
Não sei se você, que sabe lá deus por que razão me lê, já experimentou, mas um dos modos mais eficientes de projetar-se em cada canto de uma sala é: abrir o bocão. E você pode até estourar no grito, mas tente cantar, que aí não é só estar em toda parte, mas tocar e se deixar tocar. Por tudo.
A mulher do rádio não apenas tomava minha casa, entrando pelos meus ouvidos e enchendo meu próprio corpo, como ameaçava derrubar as paredes, o prédio inteiro. E pior: derrubava minhas certezas sobre aquela típica educação para a subalterna timidez: com licença obrigada me desculpe. Sem rudeza, ela não se desculpava nem pedia licença. De nada, por nada.
Quando dei de cara com a figura Elza, aí foi o choque por cima do choque. O blackzão que sorria para o meu cabelo alisado à força. A bocona pintada me lembrando da milésima vez em que haviam me enxotado, aos oito, dez ou quatorze anos, de um cinema, da frente do consultório médico ou do Playstation, sob a sugestão de que eu estaria “fazendo ponto”; me lembrando da milésima vez em que (com licença obrigada me desculpe – mas com ódio) eu havia jurado nunca mais usar um grama de maquiagem. O olhão puxado pros lados, atento a tudo. Aquela roupa. Aquela roupa que, sozinha, violava dez milhões de regras.
E ela ainda abria a boca e… se segure!
Elza me ensinou, com muita simplicidade, que todas as regras de comportamento eram ridículas. Foi um aprendizado radical e sem tutela. Quanto mais eu insistia: que-da-na-do-é-is-so, mais ela ria: isso aqui é bancar a própria liberdade. Quanto mais eu insistia, mais ela mostrava, com sua figura, sua naturalidade, sua cabeça insistentemente erguida, que experimentar o mundo não era algo de que abriria mão. Você vai ficar se encolhendo, menina?
Então eu me dei conta de que ela também era familiar. Única, sua altivez, sua brabeza de onça que não se cutuca, as garras afiadas de sua voz, do olhar, da ação estavam por toda parte. Estavam na minha mãe, com quem ninguém que tivesse sombra de juízo ousava mexer. Estavam na minha tia, que ansiava sentir a profunda liberdade e alegria do corpo. Estavam nas barulhentas vizinhas do Ibura, que tanto podiam enxotar maridos, amantes, cunhados e até filhos tortos do próprio quintal, quanto comentar, à língua comprida, suas bebedeiras, suas façanhas sexuais e, tudo ao mesmo tempo!, suas devoções e temores a deus. Elza era todinha a coragem, o conflito, a alegria, a estrondosa confusão da mais comum e anônima das mulheres que me cercavam.
E era para essas mulheres que ela falava.
Sem permitir a ninguém deter narrativa alguma sobre sua vida, também não fabulava personagens heroicas. Falava da miséria, da violência doméstica, do convívio com o alcoolismo, da experiência de perder violentamente os filhos olhando nos olhos de todas essas mulheres anônimas. Sabia que sua experiência era a de milhões de brasileiras. Não tinha tempo para se perder em relatos egóicos e inúteis de heroísmo e superação. Queria dizer a essas mulheres: pra cima! coragem! a vida não termina nas nossas derrotas.
Fred Caju, poeta negro recifense, nos fala que um homem se mede pelo que ele entende e administra de sua derrota. Elza, a mulher do fim do mundo, foi, como todas nós – mulheres pobres, negras, indígenas, enxotadas de nossas casas, de nossos territórios, violentadas, afastadas de nossos filhos, despossuídas de nossos corpos –, uma mulher continuamente derrotada. Não, eu não errei as palavras nem você se confundiu, leitora. Estou falando em derrota. Estou falando do amanhecer diário para uma nova dor, para sermos vencidas ainda uma vez pelo nosso algoz.
Mas, Fred, veja bem o que Elza entendia e administrava de suas derrotas. Ela nos dizia: não tenham medo. Nenhuma perda pode ser incapacitante. O ponto final é a morte, até lá: vá à luta – e mesmo depois… quem sabe? É o medo que tem de ter medo da gente. Ponto.
Nessa vida, fui aprendendo com ela e com outras tantas a rasgar os papeis em que se inscreviam as regras que me atormentavam. E se talhassem as regras em pedra, a pedra a gente esmaga. Fui aprendendo a ser feliz preenchendo este corpo e deixando que este corpo preencha o mundo: tudo toque e por tudo se deixe tocar.
Vou aprendendo a gigante, deliciosa aventura de ser uma mulher negra desinibida de viver sensualidade, prazer, volúpia enfim! Por que haveremos de ser pudicas? É o que nos pergunta uma mulher que aos 91 anos não manifestava uma opinião conservadora que fosse. E ainda fazia questão de falar, como quem faz com a voz o maior e mais livre floreio, de sexo. Sexo sempre, sexo de muito, sexo do bom! Uma mulher que desafiava qualquer narrativa sobre o tempo e os limites do feminino. Ela atingia seu auge e dobrava a meta. Aos 80, aos 90 anos.
Hoje, quando estou triste, eu canto com Elza para ver se dou um nó na tristeza que me toma. Ou vou logo sorrindo para a lágrima enxugar, porque nenhuma derrota, afinal, é definitiva. Quando estou revoltada, a ponto de explodir, eu me lembro de que, se nos dizem não, somos um milhão de sins. Daí me lembro também de rir da banca do distinto, tão diminuto em sua vontade de subjugar o que é livre e muito grande, tão ridículo em sua necessidade de impedir toda essa indecência não recomendada à sociedade que não vai se esconder em lugar nenhum.
E se estou feliz… aí eu volto a ser a menina que perguntava que danado é isso. Mas dessa vez, que delícia!, é só abrir o bocão e seguir, com todo desafino, com todo escândalo dos passantes, com toda risada dos parentes, dos presentes, os mais improváveis vocais. E cantar. Cantar: preencher cada canto da sala, da casa, da rua desse mundo. Estar em tudo, com tudo, com todo mundo, indistintamente. Até o fim. Porque o fim, o fim de tudo, o fim do mundo, é, Elza, um malandro engodo!