No mundo das redes sociais, da tecnologia de ponta, o teatro ainda encanta adultos e crianças quando esses, claro, têm acesso e são tocados por um espetáculo teatral. No Recife, o teatro feito para crianças vem resistindo ao longo dos seus 77 anos de história. Com ou sem incentivo cultural as produtoras e os grupos teatrais continuam trabalhando num solo ainda árido e desprovido de uma política cultural voltada para infância e juventude. Esses profissionais começam a entrar em sintonia com a criança do mundo moderno, que já nasce e cresce num tempo ritmo alucinante onde só vale o “ter e o ser”. E, mesmo assim, o teatro encanta e cativa.
Nos tempos atuais, os bebês foram contemplados com profissionais que se dedicam ao teatro na primeira infância (0 a 3 anos). O muito fofo “Teatro para Bebês”, criado na Europa e desenvolvido no Brasil pela Companhia Teatro para Bebês Liliana Rosa (RJ) e o Grupo Sobrevento (SP). Esses artistas oferecem ao seu público alvo espetáculos frutos de longa pesquisa, tamanha delicadeza e apropriação com o tema.
Bailarina do Grupo Sobrevento é um bom exemplo. Em 2011, o espetáculo foi apresentado ao público recifense dentro da programação do 8° Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco. De acordo com os artistas criadores a montagem é fruto de um processo amadurecido ao longo de cinco anos de discussões e muito trabalho para estabelecer e desenvolver o teatro para bebês no Brasil. O Sobrevento tem como parceira a experiente Cia. La Casa Incierta, da Espanha, especializada no teatro para o público desta faixa etária.
Com a encenação de Bailarina a família com seus bebês vivenciam uma experiência de troca de afetos, respeito e delicadeza, onde os bebês entram num espaço cênico com poltronas preparadas para eles, visando uma boa acomodação para que possam assistir a um monólogo com cores sóbrias, sem bichinhos ou música alta. De olhos atentos, uma caixinha de música, colares e a atriz, Sandra Vargas interpretando a bailarina, transportam a seleta plateia de 40 pessoas para o universo poético e silencioso da encenação. Os bebês têm a liberdade de transitar pelo espaço, balbuciar palavras e interagir com a atriz/personagem.
Faço questão de citar a experiência com o Teatro para Bebês para ressaltar que sendo o teatro uma arte artesanal, ele consegue sobreviver em meio à evolução humana, a toda essa parafernália de equipamentos eletrônicos, ao caos urbano, a falta de estímulos. A criança que não tinha desejos em séculos passados, hoje já começa a ser valorizada desde a sua concepção. Portanto, encontraremos um teatro para crianças que aborda temas variados, como a morte, a pedofilia, a sustentabilidade, o amor.
Uma cena que mostra uma diversidade estética e de gêneros. Ressaltando a maturidade dos profissionais que atuam no segmento em todo o Brasil. Artistas independentes ou grupos de pesquisa que têm consciência do respeito que a criança tem que ter ao se conceber uma obra para ela, já que são seres pensantes em formação. A Cia. Teatro Por Um Triz (SP), Cia. do Abração (PR), o Grupo Artesanal (RJ) e a Boto Vermelho (RJ), são bons exemplos de companhias estáveis que produzem um teatro de qualidade abordando diversos temas de forma lúdica e poética.
Recife, nacionalmente conhecida como importante polo de produção teatral, não fica atrás. Apesar sofrer com o fechamento do Teatro do Parque há seis anos, que levou a uma desaceleração do mercado local, a cidade mostra uma cena pulsante para o público infantil, com espetáculos que vão desde as adaptações dos clássicos da literatura como as histórias encenadas, cheiro da cana de açúcar e bela trilha instrumental do primoroso Algodão Doce da Cia. Mão Molenga. A montagem ilustra o doce-amargo da Cultura do Açúcar no Nordeste, seu imaginário e contradições, desde a chegada da cana ao Brasil, conseguindo proporcionar um exercício teatral impar para a turminha ligada no WhatsApp, musical.ly, Pokemon Go e milhões de aplicativos tecnológicos que distancia a criança do convívio social.
Não menos importante, o trabalho do Teatro de Produção (Cia. do Sol, Roberto Costa Produções, Capibaribe Produções, Humantoche, entre outras). Empresas que produzem espetáculos teatrais durante o ano todo, muitas vezes dois por ano. Independente de editais de incentivo, esses criadores esperam o lucro da bilheteria, seja colocando as peças em cartaz nos finais de semana ou desenvolvendo o projeto Teatro Escola. Essa forma de produção garante o sustento da cadeia produtiva do teatro para crianças, pois gera trabalho e renda para atores, autores, diretores, costureiras, cenógrafos, cenotécnicos, sonoplastas, iluminadores durante todo o ano. Além de lançar jovens artistas para o mercado profissional.
O fato é que o Teatro para Crianças no Recife, independente de formas de produção, gêneros ou propostas, (r)existe, pensando e trabalhando com foco na infância atual. O Teatro de Grupo chegou ao século 21, de forma intensa. Das companhias que acompanho a Cia 2 Em Cena acaba de estrear DORAlice, de Alexsandro Silva. Em exibição no Espaço Experimental (Recife Antigo), mescla teatro, circo e dança para contar a história de Alice, uma garotinha que vive tranquilamente a sua meninice junto a sua família. Mas um dia tudo muda, a chegada do Tio de Alice transforma a vida da menina. O Tio que parece legal e até brinca de casinha com a garotinha, é na verdade um grande malvado que na ausência dos pais faz coisas más com a menina. O espetáculo aborda, de forma lúdica e poética, o tema abuso sexual infantil trazendo referências dos contos de fadas Chapeuzinho Vermelho e O Barba Azul.
Já a Cênicas Cia. de Repertório realiza um trabalho de formação de novos atores e tem em sua trajetória adaptações de clássicos como Pluft, o Fantasminha, de Maria Clara Machado, e Pinóquio. O grupo também enveredou para o tema da sustentabilidade e conscientização ambiental, tendo o cuidado de não ser didático, com a adaptação teatral do livro homônimo de Martha Pannunzio Era uma vez um rio. A música sempre pontua as encenações da Cênicas.
A Cia. Fiandeiros de Teatro iniciou seu trabalho, em 2003, focado numa pesquisa direcionada ao Teatro para Infância e Juventude. Acaba de estrear o musical Vento Forte para Água e Sabão, de Amanda Torres e Giordano Castro. O espetáculo dirigido por André Filho encena a história da amizade entre uma bolha de sabão e uma rajada de vento. E, mostra a preocupação de um amigo em propiciar àquela bolha de sabão, sensações, descobertas e prazeres que ela irá levar para outras dimensões quando a sua breve existência no nosso planeta terminar. Portanto, enfoca o tema da morte, de maneira divertida e poética.
Há 27 anos trabalhando como atriz, produtora e dramaturga, mantemos em sociedade com o também artista, Ruy Aguiar, a Métron Produções. A trajetória de 18 anos da produtora registra oito espetáculos, abordando diversos temas e um Festival direcionados às crianças. As montagens, todas bem acolhidas pelo público de Pernambuco e estados como Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Bahia, fazem parte do repertório da Métron. São elas: Chapeuzinho Vermelho (1997), adaptação e direção: Uziel Lima; Teatro Castelo Rá-Tim-Bum: Onde está o Nino? (2000), texto: Flavio de Souza / Direção: Mira Haar; Coração de Mel (2003), texto: Cícero Belmar / Direção: Williames Sant’Anna; Grande Circo em Presente de Palhaço (2004), texto: Edivane Bactista / Direção: Ruy Aguiar; Meu Reino Por Um Drama (2007), texto: Cícero Belmar / Direção: Ruy Aguiar; Chiquinho, o Caranguejo Ensacolado (2009), texto: Edivane Bactista / Direção: Ruy Aguiar e Pedrinho e a Chuteira da Sorte (2014), adaptado e dirigido por Ruy Aguiar, do livro do jornalista pernambucano, Marcelo Cavalcante.
Festival
No ano de 2004, a Métron Produções lançou o Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco. Um empreendimento cultural criado para incrementar, em nível nacional, o segmento da infância e juventude, promovendo a troca de experiência; a formação e reciclagem. Além de propiciar o escoamento dos espetáculos produzidos em Pernambuco e outros estados brasileiros. Nas treze edições realizadas, foram exibidos cerca de 150 espetáculos, do Brasil e de Pernambuco.
Com o amadurecimento da nossa equipe, estamos observando, na prática, as peculiaridades do nosso fazer teatral. Guiados pelo sentimento de respeito a criança e ao jovem, cumprimos a risca o desejo do grande inspirador desse projeto: o Mestre Marco Camarotti: ‘Respeitar a inteligência da criança e do jovem’. Assim tem sido a cada elaboração de projeto, a cada edição de um empreendimento cultural independente, realizado por artistas do teatro pernambucano, de forma ininterrupta, durante 13 anos. Ofertando ao grande público, o belo, o encantamento, a alegria, a inquietação por meio da reflexão, da mistura de linguagens, da arte em todas as suas formas! Um mês festivo para as artes cênicas do Brasil.
O Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco é um dos únicos projetos de Teatro do Brasil direcionado a infância e juventude. Uma mostra criada para ser nacional. O projeto não é competitivo, pois o objetivo é o crescimento da categoria. Acontece de forma grandiosa em solo nordestino, com incentivo ou sem incentivo. Os grupos tornam-se parceiros das edições quando não captamos os recursos necessários.
Na realidade, Pernambuco sedia um dos únicos congressos das artes cênicas cujo foco é a criança, o adolescente, o artista que atua no segmento e a família. São vários polos com atrações e atividades formativas oferecidas em sua maioria gratuitamente. “É o mês das férias que a família pernambucana aguarda com grande expectativa a programação diferenciada das crianças que vivem em mundo isolado, reféns da internet (redes sociais, games). O estar ao vivo passou a ser um luxo para poucos, pois falta a consciência da grande maioria das pessoas de que o melhor é vivenciar emoções e aprender com o outro de forma ‘presentificada’. O Teatro possibilita essa troca”, atesta Ruy Aguiar, produtor e um dos curadores do FTCPE.
É importante ressaltar que o Festival de Teatro para Crianças de Pernambuco vem contemplando ao longo desses anos todas as classes sociais por meio da exibição de bons espetáculos com ingressos comercializados a preço acessível e gratuitos; além de oficinas e palestras gratuitas para crianças e profissionais do segmento.
DOSSIÊ TEATRO EM PE:
PANORAMA CRÍTICO: No Recife, uma cena em transição
Teatro Alternativo, poéticas e estéticas
Entrevista com Stella Maris
Teatro em Casa, um canto para sonhar e resistir
Teatro infantil (r)existe
O estado de espírito dramatúrgico de Puro Lixo
Nascido do caos, o coletivo Magiluth
A via híbrida do Coletivo Angu de Teatro
Carta do artista: Cleyton Cabral