Em 11 de abril de 2014, meu apartamento, que fica numa região comercial do centro do Recife e ao lado do Teatro do Parque (casa de espetáculos municipal de 1.100 lugares, erguida em 1915 e fechada para reforma desde 2010), transformou-se em espaço cênico para a estreia do espetáculo Complexo de Cumbuca. O solo vinha sendo construído há meses dentro do projeto de Pesquisa Artística Vozes Contemporâneas, realizado pelo grupo que dirijo, o Teatro de Fronteira, com o objetivo de investigar procedimentos criativos relacionando a produção de vocalidades cênicas à noção de voz como representação política, ferramenta de empoderamento.
Por ocasião da pesquisa, o ator paulista Rodolfo Lima, fundador do Teatro do Indivíduo, participou de uma tarde de intensas trocas artísticas com os integrantes do Teatro de Fronteira. Eu o havia conhecido em Salvador, onde Lima realizara diversas apresentações de seus solos em apartamentos, sem que eu tivesse, no entanto, a oportunidade de assistir-lhes. Ao ter contato com os experimentos em construção, o ator sugeriu que aqueles exercícios nos dariam ótima oportunidade para explorar o espaço do apartamento como espaço teatral e, dessa forma, a ideia materializou-se.
Complexo de Cumbuca fez duas apresentações na sala de minha casa, preservada em seu formato original, com mobiliário disposto, espectadores acomodados no sofá e em cadeiras da mesa de jantar, luz doméstica, uso de monitor de televisão e computador. Havia entre sete e dez espectadores em cada apresentação. De início, o objetivo da ocupação era prático, considerando o fato de o grupo não possuir sede própria para apresentar seus experimentos.
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Mas a intenção era também simbólico-dramatúrgica, uma vez que o solo tratava das vivências de um jovem gay na grande cidade e julgávamos que o apartamento se constituía numa importante personagem, com suas dimensões minúsculas (60 m2), remetendo ao isolamento e à clausura, típicos dos moradores dos grandes centros. A isso, somava-se ainda o fato de o apartamento estar situado numa região de forte presença homossexual, o bairro da Boa Vista, local de grande sociabilidade gay e onde se encontra a maioria dos estabelecimentos voltada para o público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) da cidade.
Por fim, e não menos importante, uma grande e produtiva contradição se impunha em cena: o fato de estarmos ao lado do Teatro do Parque. Essa tradicional casa de espetáculos vem sendo alvo de um intenso debate entre a classe artística e a Prefeitura do Recife, sendo tomada como emblema do descaso do poder público com a atividade teatral/cultural da cidade. Cerrado para uma reforma desde 2010, o Teatro não abriu mais suas portas, graças a uma controversa e interminável obra sem prazo de conclusão. Isso levou a classe artística a realizar inúmeros protestos, alertando ainda para a situação de abandono de outros teatros municipais.
Vivendo o cotidiano do bairro da Boa Vista e sendo um artista em atividade no Recife, sei da importância fundamental do Parque para os moradores da região e da cidade, para os comerciantes, para o mercado informal, para o meio ambiente (tendo em vista a grande área verde de seus jardins), para a segurança da localidade, para a paisagem arquitetônica, para o turismo e a memória do município. Portanto, vivenciei de perto os impactos causados por seu fechamento em todas essas frentes, trazendo grande degradação para a área.
Por isso, ao ocupar meu apartamento como espaço teatral, minha intenção era também a de suprir essa carência, apontar, a partir das janelas de minha casa, para o vazio deixado pelo Teatro do Parque. Mais que um experimento estético, a ocupação era um grito de protesto, uma maneira de reinventar as relações entre o teatro e a cidade, entre o teatro e o público, entre o teatro e o bairro da Boa Vista. Mesmo sabendo da absoluta incapacidade de suprir essa carência, o mais importante em nossa ação era o gesto, ressaltar a contiguidade entre minha casa e o teatro, marcar posição, como se disséssemos: aqui, de uma forma ou de outro, há teatro e ele é nossa “casa”.
Após os primeiros e exitosos experimentos com Complexo de Cumbuca, o Teatro de Fronteira dedicou-se à finalização de outro solo, SoloDiva, e se concentrou na tradução e criação da leitura dramática de O Caso Laramie, a partir do original norte-americano The Laramie Project. Esses trabalhos voltaram o ocupar o espaço do meu apartamento, ao longo do mês de agosto de 2014, desta feita numa ação que chamamos de A(P)TO 205, em referência ao ATO teatral, ao ATO político, à abreviação da palavra apartamento e ao número da unidade em que resido, 205.
Na oportunidade, lançamos o selo Projeto Fora da Lei, para marcar a carência de políticas públicas para teatro e o fato de a ação não ser subsidiada por nenhuma lei de incentivo à cultura. Realizamos 14 apresentações para um público estimado em 280 pessoas, sem preço de ingresso definido, trabalhando com a ideia de contribuição espontânea do espectador. Por fim, no mês de setembro do mesmo ano, o Teatro de Fronteira estreou sua quarta experiência em espaço domiciliar, o solo Na Beira, seguindo a linha de pesquisa com performance autobiográfica e no espaço do apartamento.
A experiência de Na Beira trouxe algumas mudanças e agregou outros sentidos à investigação, tendo em vista o fato de a casa ser a morada do performer Plínio Maciel, que constrói a cena a partir de fragmentos de sua vida, cercado da própria memória espacial e simbólica do seu lar. O solo realizou três temporadas no apartamento de Maciel, estendendo-se até o ano de 2015, antes de iniciar uma itinerância por outras residências e seguir carreira por teatros e espaços alternativos do Recife. Após a ação inicial do Teatro de Fronteira, outros artistas da cidade deram seguimento a um forte movimento de teatro em domicílios, que gerou cinco grupos teatrais, dez experimentos cênicos e ocupou diversas casas e apartamentos, transbordando ainda para outros espaços alternativos.
Por Todos os Cômodos
Ao longo do ano de 2014, várias iniciativas de Teatro em Casa mobilizaram a cena teatral recifense. Dentre elas, o Teatro de Quinta, da Cia. Maravilhas, era um projeto que relacionava Literatura e Cena, tomando o ambiente doméstico como espaço de investigação performativa. Capitaneada pela arte-educadora Márcia Cruz, que abriu sua casa na Vila Santo Antônio, um conjunto arquitetônico singular no centro do Recife, a ação gerou seis experimentos, todos a partir da escrita de autores pernambucanos, tendo o conto como fonte literária por excelência. Um grupo de atores convidados, e dirigido por Cruz, selecionava os textos a trabalhar e punha-se a traduzir em dramaturgia cênica a obra de cada escritor.
Pelo Teatro de Quinta passaram os autores Cleyton Cabral, Flávia Gomes, Flávia de Gusmão, Cícero Belmar, Luciano Pontes e Adrienne Myrtes. Desses trabalhos, nascidos em edições mensais ou bimestrais, seguiram carreira BON’@PP (Gusmão), (In)Cômodos (Belmar) e O Mundo de Dentro (Myrtes). Os outros sequer chegaram a receber um título, restringindo-se às apresentações de sua edição. Há que se ressaltar que o foco deste projeto era, sobretudo, a difusão da literatura pernambucana, tendo os autores como protagonistas de sua iniciativa.
Ainda assim, a inquietação de cada grupo de artistas que se constituía, a diversidade do material literário e a disposição em investigar possibilidades criativas dentro do espaço doméstico geraram momentos de grande inventividade performativa. Cruz explorou todos os ambientes de sua casa, desde a sala de estar ao banheiro, passando pela cozinha, pelos quartos e pelo quintal. De toda sorte, apesar de romper com o espaço teatral convencional e utilizar como matriz textos literários não pensados originalmente para a cena, os experimentos do Teatro de Quinta preservavam as mediações da ficção e das personagens no contato com os espectadores.
Desde o início, sua idealizadora ressaltou o caráter político da ação: “É uma ação de resistência contra o torpor em relação à cultura” (CRUZ, 2014). Após enfrentar problemas condominiais, o Teatro de Quinta passou a ser itinerante, o que acabou por estimular outros artistas, espaços culturais e indivíduos comuns a fomentar e receber os experimentos, enriquecendo e ampliando o mapa do Teatro em Casa no Recife e na Região Metropolitana.
Dentre os trabalhos resultantes do Teatro de Quinta, (In)Cômodos acabou por ganhar independência, dando origem ao Grupo 4 no Ato, que realizou temporadas regulares do espetáculo na Casa Outrora, residência e loja de antiguidades do ator e diretor Jorge Clésio, também no centro do Recife. Ao arrendar um casarão no local e transformá-lo em espaço cênico, Clésio agregou-se ao esforço de outros moradores em reabilitar a área através de intervenções culturais.
Antes de ceder sua casa a outras ações de Teatro Domiciliar, ele próprio havia realizado dois experimentos cênicos em sua morada: Da Paz (Texto de Marcelino Freire) e Mulher Independente (a partir dos escritos de Simone de Beauvoir). Os solos aconteciam, respectivamente, na cozinha e no quarto de sua residência. Assim como o trabalho do Teatro de Quinta, a direção de Clésio utilizava as convenções do texto, da ficção e da personagem, mas ressaltava as particularidades do ambiente, trabalhando com luz alternativa e enfatizando o papel do mobiliário e da estrutura física da casa na criação de uma atmosfera hipernaturalista.
Também na Casa Outrora, estreou o espetáculo Deixa Ser Eu, com dramaturgia e direção de Marcelo Oliveira, trabalho que deu origem ao Grupo Hazzô. Nascido para o espaço domiciliar, o experimento pretendia dar voz a figuras marginalizadas do bairro da Boa Vista, como uma travesti e uma vendedora de flores. Sua linguagem cênica preservava a busca por um hipernaturalismo das atuações, pela intimidade e proximidade com a plateia, pela valorização do caráter simbólico do ambiente doméstico, mas conservava a audiência em lugar de passividade e mantinha as camadas da ficção e da personagem na relação com o público.
Para fechar esse mapeamento provisório, julgo importante citar os trabalhos dos grupos Cena @ff e Teatro do Sótão, ambos surgidos a partir da agitação dos coletivos de Teatro em Casa. O primeiro realizou o espetáculo Acontece Enquanto Você Não Quer Ver, já o segundo lançou o trabalho Eu Gosto Mesmo de Pezinho de Galinha, Porque Eu Como a Carninha e Limpo o Dente Com a Unhinha. Apresentados inicialmente em apartamentos da zona central do Recife, esses experimentos tinham em comum o desejo de fotografar figuras marginalizadas da cidade, mantendo as convenções da ficção e da personagem, ora trabalhando com a exposição da teatralidade, ora investindo num hipernaturalismo cênico.
Em janeiro de 2015, boa parte desses coletivos artísticos organizou-se politicamente e promoveu uma Mostra de Teatro em Casa como parte integrante da programação do Festival Internacional de Artes Cênicas de Pernambuco: Janeiro de Grandes Espetáculos. Para marcar a ação, escrevi uma espécie de manifesto, que foi publicado na Revista-Programa do Festival. Nele, eu convocava o pensamento de Gaston Bachelard (1988) para ajudar a pensar as relações entre o teatro e a casa, dizendo: Bachelard, em sua Poética do Espaço, fala de uma “Casa Onírica” e de um “Sonhador do Lar”, dizendo: “Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”. Casa e Teatro são espaços em que se criam e imaginam mundos, espaços em que se conhece, pelo sonho, o mundo. Nesse sentido, o Teatro em Casa parece recuperar essa teatralidade primeva, da criança que transfigura o doméstico, que sonha outras realidades, que brinca de transformar sua casa em outra. Como “centro de sonhos”, a casa é mais do que paredes, portas, piso e telhado, ela é a memória de um teatro que nasce com o homem e o faz criar mundos.
Considerando a multiplicação dessa iniciativa de Teatro em Casa, que estimulou espectadores a acolher em suas moradias o teatro – assumindo os papéis de agentes e animadores culturais em suas comunidades -, acreditamos que as estratégias de mediação promovidas por nós para a formação de um espectador qualificado foram bem sucedidas. Um espectador autônomo, crítico, tanto no que diz respeito às questões da linguagem e da política teatral, quanto no tocante à dinâmica social em que está inserido, é aquele que buscamos empoderar com nossos experimentos. Chamado a adentrar um espaço desconhecido e já cheio de história, a penetrar em ambientes cada vez mais cerrados ao outro, esse espectador mostrou-se plenamente disponível para o aprendizado coletivo de um “outro” teatro.
Reinventou-se, assim, uma relação de confiança e afeto com a plateia, de horizontalidade, e o olho no olho se (re)estabeleceu. De tal forma, que voltamos a repetir, com orgulho, o velho jargão teatral: “Hoje, tivemos Casa Cheia!”, agora num sentido absolutamente literal.
*Esse texto é uma compilação autorizada pelo autor de artigo publicado na revista Repertório, editada pela Universidade Federal da Bahia.
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