A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie foi cirúrgica ao afirmar que o poder é a habilidade não apenas de contar a história de outras pessoas, mas de fazê-la sua história definitiva. “Sempre senti que é impossível se envolver direito com um lugar ou uma pessoa sem se envolver com todas as histórias daquele lugar ou daquela pessoa. A consequência da história única é esta: ela rouba a dignidade das pessoas. Torna difícil o reconhecimento da nossa humanidade em comum. Enfatiza como somos diferentes, e não como somos parecidos”, relata no livro O perigo de uma história única (2018).
Acompanhar atentamente as pautas relacionadas aos direitos dos povos originários no Brasil, em várias regiões e diferentes etnias, me faz refletir que o buraco é bem mais embaixo, e as ligações com interesses políticos, econômicos e geográficos tensionam complexas camadas sociais. A teia de corrupção e atividades criminosas, quando o assunto é demarcação dos territórios, está se tornando cada vez maior na atualidade. Pelo menos agora nos livramos do véu que prejudicava enxergar preciosos detalhes nas conjunturas históricas.
A errônea crença enraizada no período colonial, de que temos uma parcela desimportante da população segue ativa até hoje: indígenas e negros foram objetificados a partir do momento em que o homem branco invadiu a terra alheia impondo as suas vontades. A crise identitária surge da negação dos valores humanos e culturais imposta pela colonização.
Contemplada pela teoria pós-colonial, o conceito de outremização diz respeito à dessemelhança entre o sujeito colonizado e o colonizador. Este termo foi cunhado pela teórica literária indiana Gayatri Spivak, autora de Pode o subalterno falar? (1985), para explicar o processo pelo qual o discurso hegemônico cria seus ‘outros’. Nos estudos da artista interdisciplinar Grada Kilomba, a ‘Outridade’ é como a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade branca, ou seja, o outro é tudo que o sujeito branco não quer ser reconhecido.
O indígena, no caso, é transformado numa criatura inferior, não civilizada, marginal, selvagem e atrasada. Indigna de valorização e reconhecimento (qualquer semelhança com a homofobia não é mera coincidência).
A atuação do ex-presidente Jair Bolsonaro não apenas legitimou tais estereótipos, justificando a violência contra os corpos indígenas e a exploração ilegal dos seus territórios, como incentivou declaradamente o projeto de extermínio dos nativos.
Compreender que as histórias únicas não compõem a rica diversidade estrutural do país (sem romantizar as cenas à la Gilberto Freyre no livro Casa-Grande & Senzala), abre espaço para o protagonismo e autoria indígena na hora de contar a própria versão dos fatos.
Seguindo o curso deste rio de denúncias e conscientização que navega na contramão do esquecimento, duas produções recentes, uma estrangeira e outra nacional, abordam a temática e discorrem acerca do não cumprimento do direito à terra e segurança dos habitantes. Indígenas, apoiado por ativistas, são obrigados a desenvolver estratégias para garantir a sobrevivência de seus familiares e da floresta.
Os guardiões das matas
O documentário O Território (2022) mostra a realidade dos indígenas Uru-Eu-Wau-Wau na defesa por suas terras, que ocupam pelo menos 12 dos 52 municípios de Rondônia, abrigando ainda alguns povos isolados. O desmatamento, as queimadas e as ações de grileiros são as principais ameaças.
Dirigido pelo norte-americano Alex Pritz e com coprodução dos Uru-Eu-Wau-Wau, o filme destaca o papel de Bitaté, um jovem cacique na sua comunidade, o assassinato do integrante da equipe de vigilância indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau e o cotidiano da ativista Ivaneide Bandeira, a Neidinha, que dedica boa pare da sua vida agindo em prol da causa. Filmado ao longo de três anos, a narrativa intensifica as acusações contra a política genocida (aos povos originários e quilombolas) do desgoverno bolsonarista.
Na frente das câmeras, como os protagonistas, e atrás delas, contando a partir do próprio ponto de vista, a participação dos Uru-Eu-Wau-Wau é vital para a ótima qualidade da obra.
Tangãe Uru-Eu-Wau-Wau é um dos responsáveis pela fotografia do doc e nos coloca dentro da cena, é possível ter a sensação de estar caminhando com o time de defensores dentro da floresta durante as atividades de monitoramento e expulsão dos invasores. Tecnologias como drones auxiliam no processo da guarda.
E por falar neles, os pequenos agricultores, posseiros, colonos e garimpeiros são ouvidos e apresentam suas ideias. Eles não carregam a máscara de vilões, sabemos que por trás existem políticos poderosos e grandes empresários que financiam as apropriações e manipulam pessoas em situação econômica desfavorável para realizar as atividades criminosas.
Com o dinheiro arrecadado pela produção, premiada internacionalmente, já está sendo construído um centro multimídia dentro da terra indígena, com ilhas de edição e locais para realização de oficinas e outras atividades culturais.
Temos aqui o excelente trabalho de um corpo consciente de humanos que passa a ter acesso aos meios audiovisuais para costurar suas memórias. Para quem não conhece, destaco também o projeto Vídeo nas Aldeias que há 30 anos produz filmes, mais de 70, de cineastas indígenas e não indígenas, tornando-se referência no país.
Assinam a produção executiva do Território o cineasta Darren Aronofsky e a ativista Txai Suruí. A obra está disponível no Disney+.
Os Isolados
O selo Sonia Bridi de qualidade jornalística vai para o documentário Vale dos isolados: o assassinato de Bruno e Dom (2023), dirigido pela própria com imagens de Paulo Zero e roteiro assinado por Cristine Kist. No total, foram mais de 100 dias gravando numa área afastada dos grandes centros.
Vivemos sob um paradigma perigoso no qual o poder e a destruição prevalecem; tudo o que impede a soberania do controle dominante é tido como uma ameaça digna de ser silenciada . É um plano de aniquilamento que atua não apenas focado em minorias políticas, ativistas e jornalistas, mas também na população em geral, essa vista como um grande rebanho alienado propositalmente.
De acordo com o relatório da ONG Global Witness divulgado ano passado, o Brasil foi o país que mais matou ativistas ambientais e líderes comunitários em dez anos. Isso é assustador, pois evidencia, de inúmeras maneiras, a guerra híbrida mundial e os sombrios contextos nacionais.
O assassinato do indigienista pernambucano Bruno Pereira e do jornalista britânico Dominic Phillips em 2022 – Bruno havia levado Dom para entrevistar indígenas treinados por ele para fazer a vigilância local -, revela como a negligência do Estado perpetua um ciclo histórico de violência na região da Terra Indígena Vale do Javari (AM), que abriga o maior número de indígenas isolados do mundo.
Entre eles estão: os Isolados do Alto Jutaí, os Isolados do Igarapé Alerta, os Isolados do Igarapé Amburus, os Isolados do Igarapé Cravo, os Isolados do Igarapé Flecheira, os Isolados do Igarapé Inferno, os Isolados do Igarapé Lambança, os Isolados do Igarapé Nauá, os Isolados do Igarapé Pedro Lopes, os Isolados do Igarapé São José, os Isolados do Igarapé São Salvador, os Isolados do Jandiatuba, os Isolados do Rio Bóia/Curuena, os Isolados do Rio Coari, os Isolados do Rio Esquerdo, os Isolados do Rio Itaquaí, os Isolados do Rio Pedra, os Isolados do Rio Quixito, os Isolados Korubo, os Kanamari, os Korubo, os Kulina Pano, os Marubo, os Matis, os Matsés e os Tsohom-dyapa.
Que nunca cesse a capacidade de indignação. Precisamos estar despertos para não naturalizar qualquer tipo de violência e elaborar de uma vez por todas as feridas coloniais abertas que impossibilitam a cura de traumas seculares na composição da América Latina.
Existe o lado certo da História. Disponível na Globoplay.
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