★ (Blackstar), de David Bowie, é a obra-prima de um artista que, aos 69 anos e uma carreira sem precendentes na história da música pop ocidental, se recusa a viver de passado. É um disco cheio de texturas, ótimos textos e uma estranheza que mostra o intuito de Bowie em perseguir a inovação. E faz isso saindo dos trilhos e lançando um novo disco anti-pop, fora do curso atual do que está sendo produzido hoje.
David Bowie é um caso estranho na música pop desde que explodiu como o personagem Ziggy Stardust nos anos 1970. Após alguns anos em que tentava vencer a corrida da indústria por mais espaço, ele decidiu abandonar o convencional para entreter pelo inusitado. Era agora um alienígena que veio à Terra avisar sobre o fim eminente. Nas suas metamorfoses, Bowie encarnou outras facetas em outras narrativas (o duque estóico, o galante, o pierrô), foi à Berlim experimentar com as vanguardas eletrônicas e se deu bem na era da New Wave. Em algum momento ele decidiu remar na certeza e foi pegar onda na música eletrônica dos anos 1990 ao lado do amigo Trent Reznor. Seu discos seguintes também se adequavam ao período seguinte e estavam empenhadas na busca por inovação do rock independente. Foi também uma fase de intensa colaboração de Bowie com outros artistas, turnês, participação em trilhas sonoras (nessa fase houve até um ataque do coração, o que acabou dando um freio nessa produção). Ainda que nenhum disco dessa fase possa ser considerado um clássico, é memorável pela discografia prolífica.
Então eis que os anos 10 começam e Bowie volta a ficar à margem do pop para subvertê-lo mais uma vez. Não mais tentar acompanhar de perto as mudanças vividas pelo pop. O que ele vem fazendo até aqui é dar saltos mais arriscados que possam, de alguma forma, alcançar a relevância que conseguiu nos anos 1970-80. Após uma fase recluso, o novo trabalho foi feito com colaboração do amigo Tony Visconti totalmente em segredo. The Next Day era um disco de rock que esborrava um classicismo rebuscado, mas era cheio de vigor e com hits que entram fácil para o melhor do melhor de Bowie. A capa – um recorte branco em cima do clássico Heroes – era um recado para aqueles que ainda o reverenciavam por suas obras-primas: o camaleão estava vivo e olhando para o futuro, então todos deveriam fazer o mesmo. Mas nada, até agora, se compara com seu trabalho em Blackstar.
Com o disco, Bowie criou o seu clássico desta década ao se reconectar com a sua proposta para se destacar no pop: o inusitado. Mais uma vez ele rompe com as expectativas dos fãs e da própria indústria ao criar um trabalho ao mesmo tempo emotivo e experimental. Supera The Next Day tanto nas propostas estéticas quanto no texto, o que mostra que a escrita de Bowie nunca esteve tão criativa. Evocando cantos gregorianos, tragédias medievais e bíblicas, Blackstar é uma obra que explora diversas possibilidades, mas ainda assim é concisa em suas intenções.
Com apenas sete faixas, o disco parte do jazz para criar experimentações, que não soam inacessíveis, mas também não se rendem facilmente ao ouvinte. O trabalho traz os singles “Blackstar” e “Lazarus”, além de duas faixas lançadas anteriormente, como é o caso de “Sue (Or in a Season of Crime)” e “‘Tis a Pity She Was a Whore”. Ambas foram regravadas e ganharam a adição de saxofones. “Blackstar”, o single, traz o vocal arrastado que é marca registrada de Bowie para uma faixa trágica sobre o destino de um homem. A batida monótona e a virada na metade final coroam essa faixa longuíssima (a segunda maior da carreira de Bowie, atrás apenas de “Station To Station”).
Em “Lazarus” Bowie canta “tenho cicatrizes que não podem ser vistas”, se colocando vulnerável como nunca em uma balada que chega a ser sombria. “‘Tis a Pity She Was a Whore”, que apareceu primeiro no single de Sue (Or in a Season of Crime) destaca a levada jazzística dos instrumentos de sopro e a bateria marcada como pano de fundo para uma das mais emocionadas interpretações de Bowie. O título é baseado em uma obra de John Ford e fala do horror da Primeira Guerra Mundial.
Essa mistura de jazz e interpretação teatral nos vocais dá ao disco um tom dramático e sombrio. É um trabalho sobre o horror de várias épocas e também uma reflexão sobre a própria mortalidade, o que vindo de um mito é algo bastante contundente.
Produzido por Tony Visconti e Bowie, o disco encontra parâmetro em outro artista igualmente inventivo, Kendrick Lamar. Em entrevista à Rolling Stone, Visconti disse que Bowie escutou bastante as músicas de Lamar e se amou o quanto ele se mostrou aberto às possibilidades do hip hop ao se libertar das amarras do gênero. Foi exatamente o que David Bowie faz em Blackstar ao se afastar o máximo possível do rock para fazer um disco que soa único dentro da discografia de seu criador.