AXÉ! O PÁTIO É DO POVO!
Festa calcada nos antigos ritmos africanos guarda muito mais que uma ode às raízes da cultura popular
Biu, especial para a Revista O Grito!
Cansado de procurar excentricidades na Boa Vista, decidi sair um pouco do nosso Castro* e ampliar o perímetro de minhas caminhadas noturnas. Naquele dia estava mais a fim de divertimento simples, ao ar livre, para enfrentar o calor senegalês que se abatia sobre nós. Resolvi então cruzar o Capibaribe e me debandar lá para os lados da avenida Dantas Barreto. Local que, em tempos mais amistosos e de menos violência urbana, já circulei e me diverti a valer. Confesso que ao passar próximo à rua do Imperador Dom Pedro II, no bairro de Santo Antônio, um diabinho sugeriu que eu desviasse minha rota e fosse dar uma espiada num cinema que atende pela pomposa e nobre marca de Imperador Rex. Bravamente resisti e não desviei do meu percurso, pois tinha certeza que encontraria na tal sala de “espetáculos” os mesmos delírios eróticos já narrados aqui nas páginas virtuais da Revista O Grito!. E, naquela terça-feira, estava mesmo disposto a desbravar novos espaços. Segui célere meu rumo em direção ao Pátio de São Pedro. Leitores do Recife já devem ter percebido onde eu queria chegar: ao evento recreativo que há oito anos anima as noites do referido Pátio, a Terça Negra.
Aos leitores de outras terras, não se assustem, nada a ver com outro crash da bolsa de valores de Nova York ou algum ritual de magia, mas apenas um dos eventos mais divertidos das noites recifenses. Uma invenção do Movimento Negro Unificado (MNU) e apoiado pela Prefeitura do Recife, desde quando o alcaide-mor da cidade era João Paulo, responsável, como todos sabem, pela benção a todas às iniciativas que os intelectuais denominam hoje de “multiculturais”. A Terça Negra é assim um dos espaços mais democráticos do centro do Recife. Afoxés, cirandas, maracatus, cocos de roda, escola de samba, grupos de pagode, de hip hop, rodas de capoeira, bandas de reggae, bisnetos do manguebeat ou qualquer coisa ligada às raízes afro-descendentes têm espaço garantido no palco armado no lado oposto da secular igreja de São Pedro dos Clérigos.
Naquela terça, como em tantas outras nos últimos anos, ao chegar no Pátio, por volta das 21 horas, ele já fervilhava. Antes de entrar no local, ainda na avenida Dantas Barreto, nas calçadas já dava para perceber o reboliço. Bares improvisados com mesas espalhadas nas calçadas acolhiam uma clientela fiel que se divertia ao seu modo. Em geral esse pessoal prefere ouvir os últimos sucessos de grupos musicais estrambóticos tipo Swing do Amor aos batincuns do maracatu Cambinda Estrela. Mas, como na rua quem manda é o povo, nada de torcer o nariz. É sempre uma alternativa para descansar os ouvidos se lá no Pátio algum grupo de rap pouco inspirado insiste em segurar o microfone a noite toda e não cede espaço a outros ritmos.
Esses bares acabam sendo uma ante-sala da Terça-Negra, pois ali a cerveja é mais barata e os espetinhos de carne, frango, queijo assado são bem mais em conta que nos bares e restaurantes instalados no Pátio. Mas como meu objetivo era o Pátio mesmo, dei uma sacada rápida (percebi os primeiros olhares insinuantes da noite) e adentrei no espaço da negritude. Uma festa! As apresentações já estavam acontecendo e um grupo, no palco, misturava coco com rock e hip hop e evocava os trejeitos e balanços do saudoso Chico Science. As mesas dos bares estavam lotadas, um bando de capoeiristas, no meio da muvuca formava uma roda e dançava qualquer coisa que saísse das caixas de som, e um mundaréu de gente circulava por lá. Os modelitos dos freqüentadores acompanhavam o clima da noite. Vi muitas batinhas brancas, blusas coloridas, saias rodadas, moças com tranças e apliques nos cabelos, exibindo vistosos colares de contas e outros badulaques artesanais, além de rapazes com cabelos no estilo rastafari, que me fizeram pensar se não estaria em algum lugar do planeta em que não sabemos se é Salvador, Jamaica ou Costa do Marfim.
O público não podia ser mais eclético. Tinha comerciários, bancários, professores da rede estadual, mas percebi a predominância de uma moçada vinda do subúrbio: Ibura, Ipsep, Alto Santa Isabel, Santo Amaro, Peixinhos, etc., entre os quais dava para se notar que uma boa parte era composta principalmente por pessoas que foram prestigiar as atrações daquele dia, o tal grupo neomangue e outro de percussionistas de um maracatu do show de encerramento. No meio daquela fauna animadíssima, pude ver turistas branquelas com seus amigos exóticos, bichas com seus respectivos acompanhantes (os populares papa-frangos cantados e exaltados pelo cronista musical mais polêmico dos últimos meses, João do Morro), travecas com trajes que mereceriam um estudo antropológico à parte, cheiradores de loló e um povo que não se aquietava à turma que gosta de queimar um matinho não muito bem visto pelas autoridades policiais e que lá faz isto sem maiores sobressaltos, felizmente.
Apesar de tanta diversidade e talvez exatamente por isso, a Terça Negra, logo conclui, é mesmo um acontecimento bacana. Nela se bebe sem gastar muito, ouve-se música (nem sempre de qualidade, mas e daí? quando a gente quer se divertir basta um ziriguindum maneiro para se ficar com vontade de balançar o esqueleto), e para os mais ousados em busca de outros gêneros de aventuras é só abrir o olho. Quem não se incomoda em realizar trocas simbólicas com os diversos extratos da sociedade fica desacompanhado se quiser. A paquera rola solta. É só ficar esperto. Um olho no padre e outro na missa, porque nesse território livre sabe-se Deus o que pode acontecer ao cruzar o Camelódromo. Portanto, se você tiver alguns amigos de outras paragens visitando o Recife, não hesite, jogue-se com eles no Pátio. Eles vão adorar. Por sinal, neste dia de minha excursão encontrei por lá um conhecido brasileiro que estava com seu namorado, um negro americano from New York. Ficamos juntos na mesma mesa e Rob (era seu nome) adorou o babado. O único probleminha é que o cara era um pedaço de mau caminho e, caros leitores e leitoras, as bibas enlouqueceram e não deram sossego ao moço. As mais afoitas nem estavam aí pelo fato dele estar comprometido. Davam adeuzinhos e lançavam sorrisos matreiros. Teve uma que veio até nós e foi taxativa: “eu quero ele pra mim!?”. Depois disso tivemos que partir, pois o maracatu já encerrara a apresentação e eu não queria estragar a honey moon do meu amigo. Mas, na próxima terça, se não chover, vou voltar ao Pátio.
*Castro ? famoso bairro GLS da cidade de São Francisco, na Califórnia (EUA).
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