BEM-VINDOS AO PLANETA CAFUÇU
Ritinha já estava cansada de tanta tortura. Queria voltar ao seu planeta. Topava qualquer coisa. Até transar com os ETs em troca da liberdade
Por Sérgio Ripardo
Especial para a Revista O Grito!
Ritinha foi raptada por ETs e levada para um lugar muito estranho. Era o chamado Planeta Cafuçu. As pessoas tinham uma cabeça bem grande, orelhudas, narigudas e vestiam roupas bem coloridas. Falavam uma língua muito esquisita. Na verdade, sussurravam expressões.
– Oxe!
– Afe!
– Vixe!
No Planeta Cafuçu, as coisas ficavam voando: jarrinhos, quadros de artistas sem moldura, imagens de santo, potes de margarina com plantinhas, baianas e garças feitas com búzios, crucifixos, desenho do escudo do time feito com linha e prego, garrafinhas de Coca-Cola e outros objetos.
– O que estou fazendo aqui?
– Afe!
– Oxe!
– Vixe!
– Parem com isso. Estou enlouquecendo.
Finalmente, Ritinha encontrou uma placa “Bem-vindos ao Planeta Cafuçu”.
– Que diabo de lugar é esse?
– Afe!
– Oxe!
– Vixe!
No Planeta Cafuçu, as pessoas viviam batendo a cabeça na parede, chutando o ar, imitando o movimento dos animais, dando coices.
Ritinha já estava cansada de tanta tortura. Queria voltar ao seu planeta. Topava qualquer coisa. Até transar com os ETs em troca da liberdade. A proposta não deu certo. Ninguém se interessou pelo sexo de Ritinha. Ela acabou pegando as manias de dizer “Afe”, “Oxe”, “Vixe”. Só não deu certo tacar a cabeça na parede. Morreu de traumatismo craniano.
Cafuçu é uma gíria comum no Nordeste para cafuzo, mestiço com parentes índios e negros. No meio gay, adquire o sentido de qualquer homem rústico, agreste, masculinizado, sem intenção de relacionamento amoroso nem identificação explícita com a “cultura queer”. às vezes, se declara hétero e justifica o sexo com gays com vantagens materiais e experiência sexual mais liberal. Sem muito repertório de educação formal, pode ser monossilábico – cafuçu não fala, cafuçu não escreve, cafuçu “faz” e deixa saudade.
Alguns cafuçus gays assumidos ou efeminados costumam ter dificuldades de aceitação de seus traços étnicos com receio de sofrer estigmas, preferindo mimetizar códigos culturais ligados à elite e às convenções do “moderno global” e “alternativos urbanos”. Com a revalorização nacionalista, há na cultura jovem um ambiente mais favorável ao “orgulho cafuçu”, que se manifesta como o kitsch brasileiro, o brega, a bagaceira. No Carnaval, blocos celebram as diferenças regionais e a miscigenação brasileira.
Sérgio Ripardo é jornalista e autor do livro Guia GLS São Paulo (Publifolha). Esta crônica faz parte de uma série sobre os cotidianos urbanos e estará presente num futuro projeto do autor.
A foto é de Deco Vicente. Ele fez uma galeria com imagens do bloco I Love Cafuçu, no Carnaval de Olinda, em seu Flickr. Conheça o trabalho dele: flickr.com/s6xtoandar