Tenho lido relatos nas redes sociais dando conta de alguns espectadores estarem abandonando as salas de cinema nos shoppings onde o filme Praia do Futuro está sendo exibido. E elas se intensificariam principalmente após a primeira cena de sexo entre os personagens vividos por Wagner Moura e Clemens Schick. Isso de alguma maneira nos coloca diante de uma situação curiosa para o qual cabe algumas indagações.
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Será que essas pessoas entraram no cinema sem ler nada sobre o filme, atraídas unicamente pela foto do cartaz de divulgação com Wagner Moura, conhecido, sobretudo, pelo papel do Capitão Nascimento em Tropa de Elite? Ou leram e foram checar se o machão Capitão Nascimento tinha virado viado e não suportaram vê-lo agarrado a outro homem?
Por uma razão ou por outra, ao saírem da sala, esses espectadores perderam a chance de mergulhar numa bela história de amor, intensa, arrebatadora e melhor, narrada com sensibilidade e apuro estético por meio de um filme onde cada plano, cada gesto nos coloca diante de um dos maiores desafios do mundo contemporâneo para os seres definidos como sendo do gênero masculino: o que fazer para romper com séculos de uma cultura cujos sentimentos e desejos são colocados em camisas de força e continua punindo quem delas escapam.
Praia do Futuro conta a história de Donato (Wagner Moura), um salva-vidas cearense que se sente fisicamente atraído por Konrad (Clemens Schick) um piloto de motos alemão a quem ele salva de um afogamento. Apaixonado, ele decide então ir para Berlim, abandonando a mãe e Ayrton (Jesuíta Barbosa), o irmão caçula que o admira como um herói. Anos depois, o irmão vai para a Alemanha para saber se Donato está vivo ou morto.
O filme de Karim Aïnouz (revelado em Madame Satã e responsável por O Céu de Suely e O Abismo Prateado) é corajoso por não se deixar intimidar pelos padrões de comportamento e estereótipos impostos a filmes que tratam de relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo e também por não se ater a uma escritura cinematográfica convencional de obras romanescas para o cinema. A escolha, apontada pelo próprio Aïnouz do que ele chama de melodrama masculino, é uma experiência interessante, pois a caracterização dos personagens e a narrativa por ele construída incorporam uma visão de mundo onde podemos perceber que atitudes normalmente atribuídas ao elemento masculino não inviabilizam o afloramento de relações amorosas viscerais, sejam elas fraternas ou de atração física.
Uma marca do roteiro são as inúmeras elipses, algumas bem radicais, que pontuam todo o filme. Ao mesmo tempo em que elas abrem para o espectador a possibilidade dele imaginar os acontecimentos suprimidos, também provocam pequenos choques pelas quebras inusitadas das expectativas usuais do gênero melodramático. Recurso usado por Rainer W. Fassbinder em alguns de seus filmes, cineasta alemão admirado por Aïnouz e citado como uma de suas fontes de inspiração.
Mas para essa estrutura narrativa funcionar a contento, percebe-se claramente o quanto a direção preocupou-se em estabelecer uma linguagem visual rica em detalhes e significações capazes de traduzir as passagens de tempo, os deslocamentos espaciais e as transformações internas dos personagens. Luz, movimentos de câmera e enquadramentos ao mesmo tempo que se abrem para a paisagem incorporando-a nas tensões dramáticas do enredo, também se aproximam dos corpos dos atores potencializando seus gestos e dando a eles uma vitalidade incomum.
Praia do Futuro mostra braçadas vigorosas no mar que se transformam em abraços carinhosos, murros e tapas que viram beijos, caras emburradas que desmancham-se em lágrimas de saudade. Os espectadores que se levantam das salas revoltados, sejam eles do gênero masculino ou feminino, se tivessem um pouco mais de paciência e serenidade, talvez compreendessem que o amor é um sentimento que não precisa de sexo definido para acontecer e teriam voltado para casa menos assustados.