O VIRA LATA SAIU DO PRESÍDIO PARA VIRAR CLÁSSICO
Publicado pela primeira vez de forma completa, HQ foi importante para falar de temas como drogas e sexo para detentos do extinto Carandiru
Por Porco, do Pula Pirata
O mercado de histórias em quadrinhos no Brasil vive um momento saudável, o que torna bastante propício um olhar para o passado e a aposta na reedição de material antigo e clássico, como é o peculiar caso do personagem O Vira Lata, que fez fama primeiro pelas páginas da saudosa Revista Animal e depois como publicação exclusiva para detentos do presídio de Carandiru, mas só agora chega de forma completa às livrarias de todo os país, numa bela edição da Editora Peixe Grande, detalhando toda a história da publicação e incluindo as sete histórias editadas entre 1991 e 2000, além de uma inédita que nunca antes vira a luz do dia.
Se nos quadrinhos o personagem é filho de uma mãe e cinco pais, na vida real O Vira Lata se tornou uma série de revistas em quadrinhos pela confluência de muitos fatores. No início dos anos 90, o músico e compositor Paulo Garfunkel comentou com seu amigo e também músico Skowa que queria criar um herói urbano brasileiro e tinha um roteiro de HQ pronto, mas sem ninguém para desenhar. Skowa fez a ponte com o também músico e ilustrador Libero Malavoglia, que quase deixa passar o projeto por causa de uma viagem à Europa, mas a simples menção do quadrinista Hugo Pratt (pai de Corto Maltese) como uma influência de estilo os fez querer trabalhar juntos. Depois de terminarem a primeira história fechada, levaram para a Animal que a publicou como o oitavo e último número do especial Grandes Aventuras Animal, em novembro de 1991.
Foi essa edição lida pelo médico Drauzio Varella (que prestava serviço voluntário no presídio desde os anos 80) que lhe incitou a entrar em contato com os autores e usar o personagem para abordar temas preventivos como o uso de drogas injetáveis e sexo sem proteção em histórias que engajassem os presidiários, coisa que os panfletos caretas da Secretaria de Saúde nunca conseguiu. O resto é história e está muito bem contada no dossiê presente entre a primeiras páginas dessa edição. Uma história pouco divulgada mas muito interessante e importante.
O primeiro capítulo funciona como uma história solo e mostra em cortes paralelos o presente – onde o personagem conhecido com O Vira Lata começa a fazer justiça pelas próprias mãos – e o libidinoso passado de sua mãe nos anos 60. Com um bem construído roteiro, Garfunkel traça a origem do personagem, com todas as idiosincrasias de um samurai urbano brasileiro, mestiço e guiado por Ogum e Exu. Apesar de contar uma história carregada de sexualidade com uma pitada de kenjutsu, o tema principal desse primeiro capítulo era a violência desenfreada na capital paulista, onde grupos de extermínio faziam chacinas cada vez mais abertas contra mendigos, prostitutas e favelados. Tudo isso num traço sujo e um tanto rudimentar que se inspirava claramente não só em Pratt, mas também em Manara, Crepax e Carlos Zéfiro, além da óbvia influência do mangá Lobo Solitário (Kazuo Koike e Goseki Kojima) e das rabiscadas cenas de ação de Frank Miller. O Dr. Varella viu ali um personagem que foi levado a lutar contra injustiças e contra a polícia corrupta da maneira que pode, com suas próprias mãos, além de incluir muitas cenas de sexo e uso de drogas não-injetáveis, perfeito para usar como entretenimento e também como prevenção à DSTs em meio a um público que só se interessava pela sessão de filmes se fossem pornô.
Do segundo capítulo em diante as histórias já eram feitas especialmente para o Carandiru e percebe-se alterações na maneira de conta-la para se adequar aos planos do médico. O próprio presídio torna-se um personagem. Já o Vira Lata, um poético narrador, agora se apresenta como um ex-encarcerado que respeita muito as mulheres, repudia qualquer pessoa que se pica na veia, não sai de casa sem várias camisinhas e trocou seu linguajar de umbanda por expressões típicas do sistema prisional brasileiro. Ele também assume totalmente sua faceta de justiceiro de mil faces, que se envolve mais em tramas investigativas que sempre o levam à cama de uma linda mulher. As cenas de sexo, aliás, passaram de eróticas a explícitas, funcionando não só como mais uma fonte de entretenimento libidinoso para os internos, mas também como lições e tutoriais de como usar proteção durante o ato sexual.
O legal é que, apesar de toda essa carga educativa, o personagem não deixa de ser um anti-herói politicamente incorreto e malandro, que não dispensa uma boa briga e não foge da responsabilidade de ajudar seus amigos nos problemas mais cabeludos, que geralmente envolvem vilões muito comuns e reais à todas as cidades brasileiras. Além disso, é notável que o apuro técnico no traço de Malavoglia vai se fortificando nos pequenos detalhes/enquadramentos a cada capítulo/edição, que culmina com a bela história A Princesa e O Poeta (que conta com intervenções do próprio Drauzio Varela, desenhado) e as belas cenas tórridas da até então inédita história que se passa na Amazônia.
Tanto em termos gráficos como narrativos, O Vira Lata foi uma experiência de se trazer influências de quadrinhos estrangeiros em voga na época para dentro da nossa cultura e acabou se transformando num misto de HQ erótica permeada por temas de educação sexual. É também um produto não só de seu tempo, mas também da influência de seu inesperado grupo de leitores, e deve ser visto por esse espectro. A edição completa da Peixe Grande serve não só como uma boa leitura, mas também como um documento da história dos quadrinhos nacionais.
O VIRA LATA
Paulo Garfunkel e Libero Malavoglia
[Peixe Grande, 440 págs, R$ 69/2012]
Nota: 8,0
* Pula Pirata, onde este texto foi originalmente publicado, é um dos sites mais importantes sobre quadrinhos, com destaque à produção independente nacional.