capa album o paraiso
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Crítica: Lucas Santtana canta as urgências climáticas e as belezas da Terra em “O Paraíso”

Nono trabalho autoral do cantor baiano aprofunda discussões políticas e ambientais

Crítica: Lucas Santtana canta as urgências climáticas e as belezas da Terra em “O Paraíso”
4.5

Ouvir o repertório de O Paraíso de Lucas Santtana, pensando em defini-lo dentro das linguagens do amor por exemplo, seria “tempo de qualidade”, com o propósito de aproveitar esse tempo embarcando num refúgio sonoro. O novo disco do cantor e compositor baiano nasce no início de 2023 com o pé descalço no “mato”, na natureza. O trabalho também ergue críticas às hipocrisias sociais e problemáticas intrínsecas à humanidade, com foco na crise ambiental.

A sonoridade do disco apresenta a versatilidade e a criatividade ímpar do artista. Desde 2012, lançando seus álbuns e realizando turnês pela Europa, Santtana imprime a brasilidade em sua música com marcas da bossa nova, do samba mescladas ao jazz e a experimentações acústicas ao longo das faixas.

Sendo o nono trabalho autoral do cantor e compositor, O Paraíso é “cria” da pandemia, nascendo num período em que o artista se debruçou sobre leituras que lhe alertaram sobre a urgência socioambiental do planeta. Este talvez seja o principal mote do álbum: cantar sobre as urgências e sobre as belezas de ainda viver o “hoje”. Tal premissa se apoia em estruturas melódicas suaves e ao mesmo tempo diversas em seus componentes, formando um conjunto que proporciona uma viagem pela poesia do cantor.

A composição musical acolhe as percussões de Zé Luís Nascimento, os sopros dos jazzistas Remi Sciuto e Sylvain Bardiau, o cello de Vincent Segal, os sintetizadores e marimbas de Fred Soulard e a voz e  violões de Lucas Santtana.

A faixa homônima, responsável por abrir a sequência, já destaca a intenção “verde”, declarando “sim, o paraíso já é aqui” e evocando a conscientização das riquezas e da preservação do meio ambiente. O paraíso neste caso é a Terra, e o verso “o paraíso já está em mim” expressa o pertencimento mútuo do planeta com o homem. Nesta mesma toada está “Vamos ficar na terra”, reforçando a tese de que o lugar certo é aqui, provocando também a dubiedade da ação de explorar, em seu bom e mal sentido. Ambas criticam a exploração abusiva, mas defendem o lugar de bom plantio, a “água da fonte”.

No repertório, o artista decidiu expressar suas ideias em outras línguas, como em “What’s Life”, cantando em inglês sobre o processo que é a vida. Também em “La Biosphère”, que em francês defende a discussão ambientalista e com um ritmo mais adocicado, ganha destaque com o refrão, acompanhado na segunda parte por um coro de crianças.

“The Fool on The Hill” que marca a parceria com Flore Benguigui, é uma versão da canção de mesmo título dos Beatles. Começando mais reflexiva é contaminada (no melhor sentido da palavra) por uma instrumentalização galante, suave, brasileira e crescente. “Sobre la Memoria” arrisca o espanhol com um fundo samba violão, versando sobre a memória ser o motivo de poder cantar e fazer música, remetendo a um passado opressor.

Outra canção que escolhe termos em francês dividindo espaço com o português é a solar “Muita Pose, Pouca Yoga”, parceria com Flavia Coelho. De forma irreverente, os artistas criticam o mundo das aparências das redes sociais e as hipocrisias do meio virtual, promovendo no clipe da faixa um encontro presencial com amigos ao espalhar os dizeres da letra nas ruas. Essa verve poliglota já tinha aparecido antes em trabalhos de Lucas Santtana, como é o caso do ótimo disco Sobre Dias e Noites, de 2014, cantado em quatro idiomas.

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Foto: Jérome Witz / Divulgação.

Mais uma versão que integra o disco é “Errare Humanum Est”, de Jorge Ben Jor. Com Lucas, a canção sobrevive nessa área suave, de descanso, relaxamento, refúgio, surpreendendo ao longo pelos encaixes dos instrumentos, tornando a faixa robusta, se não a mais robusta no quesito instrumental.

“No Interior de Tudo” aquieta mais os ânimos, cantando sofrida sobre um Brasil que é “ponto cego do retrovisor do passado” mas que ainda é alvo da esperança. Numa estrutura semelhante, “A Transmissão” fala sobre um “invisível, terrível, desordem, ser indizível” e como a mais questionadora da sequência, lança “Quantas mortes serão necessárias para você finalmente entender que estamos muito mal?”. Analisando o período de pandemia em foi construído o disco e as reflexões que a faixa traz sobre consumismo desenfreado, a ganância e a falta de capacidade da humanidade de entender os sinais da natureza, é provável que os adjetivos acima sejam endereçados ao ex-presidente do Brasil, assim como para todos os agentes da destruição do planeta. 

Muito consciente sobre suas pautas, Lucas Santtana entrega um trabalho sensível, rico e com qualidade sonora para continuar representando o Brasil lá fora e ainda obter notoriedade por aqui.

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