Para os pais, nada é pior que ver seus filhos passarem fome. As crianças, por sua vez, têm como grande medo o abandono dos pais. Uma história que una esses dois elementos já é, por si só, angustiante.
Em 1697, o francês Charles Perrault publicou os Contos da Mamãe Gansa ou Histórias do Tempo Antigo, uma coletânea de fábulas recolhidas da tradição oral que trazia a sua versão para O Pequeno Polegar. No conto, um casal de lenhadores e seus sete filhos vivem de maneira próspera até chegar a guerra, quando todos os seus recursos ficam escassos e eles começam a passar fome. Não suportando mais a situação, os pais decidem abandonar os filhos no meio da floresta, para não ter que enfrentar suas mortes face a face e ainda terem alguma chance de sobreviver. O esperto Pequeno Polegar joga pedrinhas brancas pelo caminho e consegue encontrar o caminho de volta. Na segunda vez, ele não tem tanta sorte e o caminho improvisado de pão desaparece, fazendo com que as crianças andem ao relento até se depararem com a casa de um ogro devorador de criancinhas. À época, a intenção de Perrault com suas histórias era instruir jovens mocinhas a respeito dos perigos da vida.
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Pouco mais de cem anos depois do livro de Perrault, os irmãos Grimm fizeram o mesmo, dessa vez na Alemanha: começaram a reunir fábulas locais, com a intenção de resistir à dominação cultural francesa pós-invasão Napoleônica. Uma dessas histórias era a de Hensel e Gretel, contada a Wilhelm Grimm por Henriette Dorothea Wild, sua vizinha de doze anos que, vinte anos mais tarde, se tornaria sua esposa. A história contada por Henriette era bem parecida com a do Pequeno Polegar de Perrault, com algumas diferenças no enredo: em vez de sete garotinhos, os pais agora tinham um casal. E em vez de um ogro, as crianças encontram uma velha bruxa e escapam de maneira bem menos violenta que a fuga do conto anterior.
Conhecida no Brasil como João e Maria, a história ganhou adaptações das mais variadas, tanto na literatura e nos quadrinhos quanto no teatro, na ópera, no cinema e nas artes plásticas. Em 2007, o Metropolitan Opera exibiu uma encenação da obra, que contou com uma exposição de ilustrações de Lorenzo Mattotti. Longe de uma interpretação infantil e divertida, as imagens em tinta indiana de Mattotti se baseiam na obscuridade da história, todas em preto e branco, com a predominância do negro, mostrando os personagens apenas como sombras, geralmente no fundo do quadro, em pinceladas que criam uma atmosfera opressora com movimentos de tempestade e ventania.
A partir das ilustrações sombrias de Mattotti, Neil Gaiman traz sua versão da história de maneira que pouco foge do conto tradicional, porém adicionando a sua prosa inconfundível, que ainda faz pequenas referências àquela fábula do Pequeno Polegar, quando, por exemplo, as crianças ficam alividas em ver que “a pessoa que saiu da casinha não era um ogro nem um monstro, e sim uma velhinha amável[…]”. Gaiman segue as versões posteriores à dos irmãos Grimm em que a mãe das crianças é a responsável por convencer o Lenhador a “perder” seus filhos. E ele tem êxito ao mostrar o quanto a mulher provavelmente sente o peso e o desgaste tanto da fome quanto da própria maternidade. E faz isso apenas utilizando frases simples como ao descrever a reação da mãe quando as crianças acham o caminho de casa, dizendo que ela “estava pálida e com os lábios apertados, e olhou para eles sem dizer uma palavra”; e ainda: “A mãe olhou com fome para as últimas quatro cerejas no vidro”. Não há redenção para a mãe no fim desta história.
O texto de Gaiman é, obviamente, voltado para os pequenos, que têm agora a chance de adentrar, ao mesmo tempo, o universo do autor e o das versões originais dos contos de fadas, se deparando com uma realidade um pouco mais triste mas, apesar da fantasia, não muito distante da vida real de muitas crianças.
João & Maria
Neil Gaiman
Tradução de Augusto Calil
Ilustrações de Lorenzo Mattotti
56 páginas
Editora Intrínseca