O retorno de Gaga às suas raízes pop-eletrônicas foi uma tarefa difícil. Aconteceu sete anos depois do lançamento do ambicioso e conturbado ARTPOP (2013), que a fez desencadear no auge de sua rebelião criativa, um estado grave de depressão e passar por um período onde era alvo massivo de críticas do público e mídia. Atravessado gerações, revisitando canções da academia americana que marcaram décadas e, provavelmente, os nossos pais e avós, lançando um álbum conjunto de jazz com Tony Bennett Cheek to Cheek (2014), e mergulhado no cinema com o estrondoso sucesso do filme Nasce Uma Estrela (2018), pelo qual lhe rendeu um Oscar, Gaga finalmente volta a exibir as facetas em que as pessoas se apaixonaram por ela desde o primeiro instante.
Lançado na última sexta-feira (29), ‘Chromatica’, o sexto álbum de estúdio da sua carreira veio pra mostrar que o lugar dela nunca esteve ameaçado. É docemente amargo (como sugere o título da sua faixa em parceria ao grupo de k-pop BLACKPINK) que o álbum esteja chegando a um momento de distanciamento social e isolamento físico. No entanto, é justamente nesse período sombrio que este álbum parece oportuno e reconfortante.
Ao contrário do intimista e pouco barulhento, Joanne (2016), concentrado no drama familiar do falecimento da sua tia e tido como o seu álbum mais pessoal até então, o Chromatica destoa das cordas de violão, mas também lida com assuntos pesados como as dores crônicas, provenientes da fibromialgia, dependência de antipsicóticos e abuso sexual. Dessa vez com a ajuda de um contraponto que faz tudo ficar mais interessante, leve e dançante: as batidas eletrônicas e sintetizadores que a tornaram famosa.
Segundo Lady Gaga, Chromatica é um lugar que combina a fusão da realidade com a sua fuga existencial e seu conceito não seria considerado uma utopia ou distopia. É a forma como ela vê o mundo no qual ondas sonoras e paletas de cores se misturam de forma que “ninguém ou nenhuma coisa é maior que a outra”, carregando consigo o discurso de igualdade tão defendido ao longo de sua carreira.
À primeira vista, Chromatica soa estranho e algumas vezes incômodo, mas é impossível não falar de Lady Gaga sem citar estas características. Ela é isto, o desconforto. Quando você permite que as músicas entrem em você lentamente, vai entender que aquelas são muito mais que músicas para dançar. O tempero presente na maioria de seus álbuns anteriores é perceptível e reacende com nostalgia, só que dessa vez com uma roupagem mais madura e a dor de todos esses anos vivendo com alguns traumas nitidamente traduzidos em seus vocais limpos e cada vez mais poderosos.
O álbum começa com “Chromatica” (a primeira de três interludes que dão nome ao disco) que nos apresenta tons cinematográficos com a finalidade de nos convidar a adentrar na jornada mais pessoal e intergalática da Mama Monster, que se divide em três atos.
Logo em seguida, temos “Alice”, em que Gaga clama por ajuda logo nos primeiros versos. É como se ela estivesse chorando numa pista de dança, nos levando de volta para os anos 90, embalados a um eurodance mais raiz possível produzido pelo DJ sueco Awxell.
Em “Stupid Love”, carro-chefe que integra o disco com um refrão despretensioso, repetido e frenético, traz todos os ingredientes de um hit clássico de Gaga para novamente nos fazer dançar.
Na primeira das improváveis parcerias (quem imaginaria BLACKPINK, Ariana Grande e Elton John em paralelo no mesmo disco? Isso só parece coerente na mente de Lady Gaga), “Rain On Me” com Ariana Grande, é aquele dueto que vicia e te leva direto pra a balada com a certeza de que em algum momento aquela voz grave de Gaga dizendo pausadamente: “Rain. On. Me.” vai ecoar repetidas e inconscientes vezes na nossa cabeça.
Na faixa cinco, intitulada “Free Woman“, Gaga retrata as marcas deixadas pelo abuso sexual que sofreu de um produtor aos 19 anos, cantando um dos trechos mais inspiradores do álbum: “Eu não sou nada sem uma mão livre. Eu não sou nada a menos que eu não me importe. Eu ainda sou alguma coisa se eu não tenho um homem. Eu sou uma mulher livre”.
Encerrando o primeiro ciclo, “Fun Tonight”, é uma canção honesta sobre não conseguir sentir a genuína sensação de estar feliz, mesmo quando todos ao seu redor se esforçam para que isso aconteça. É uma das letras mais tristes do álbum com um instrumental que se opõe a veracidade do que está sendo dito.
Após o rápido interlúdio, “Chromatica II”, que tem uma transição continua para a faixa “911”, ouvimos um tom robotizado no início que faz alusão a outros trabalhos de Gaga, abordando a sua dependência com antipsicóticos, em que ela cita que sua própria inimiga é ela mesma. Fun fact: segundo BloodPop, produtor majoritário do álbum, o processo de criação dessa música foi um momento triste para Gaga, o que a fez usar uma peruca na gravação para que ela se sentisse como outra pessoa, pois, mentalmente ela teve que reviver tudo o que estava falando na música.
O ponto fraco do Chromatica chega em ‘Plastic Doll’, talvez, a única fração descartável do álbum, pois não traz nenhum nuance diferente, mesmo com o dedo de Skrillex, conhecido por explorar uma vertente do dubstep fora da curva em suas produções (nesse caso, se não tivesse sido divulgado, ninguém diria que é um trabalho assinado por ele). Aqui a sua contribuição é morna e coloca Gaga mais uma vez na linha da frente. Consumando o fato de que quando ela trabalha com produtores que tem estilos muito específicos, a sua ideia sempre se sobrepõe a do colaborador e prevalece na música (o mesmo aconteceu com Will.i.am e David Guetta quando produziram a faixa “Fashion“ em 2013 para o ARTPOP).
“Sour Candy” é aquele pop sujo, sexy e minimalista que dá uma desestressada, com o sample icônico de “What They Say”, de Maya Jane Coles, clássico da house music e, além do mais, unir-se ao fenômeno BLACKPINK é uma cartada certeira de Gaga para conseguir conversar com novos públicos.
Um dos ápices do álbum chega à nostálgica “Enigma”, uma das primeiras faixas concebidas e em “Replay”, a mais bem produzida e refinada deste segundo ato.
A última interlude, “Chromatica III”, que virou meme nas redes sociais por lembrar a abertura da novela Fina Estampa por conta dos arranjos dos violinos, precede a parceria com Elton John em ‘Sine From Above’. Se essa música não te cativou, você não está em 2020 ainda. E se achávamos que este dueto seria uma baladinha, a faixa surpreende em cada detalhe, com uma produção que tem uma crescente alucinante, principalmente quando a música começa a acelerar no final, com um drop bass inesperado em que beira a sensação de que estamos sendo abduzidos por uma “nave” rumo à outra dimensão.
Leia mais críticas
- “SOPHIE” é uma homenagem sem coerência ao legado de um dos grandes nomes do pop
- Caxtrinho canta crônicas sobre desigualdade em “Queda Livre”
- Uana na dianteira do pop pernambucano em “Megalomania”
- Kaê Guajajara cria mosaico de sons em “Forest Club”
Antes de fechar o álbum, em “1000 Doves”, Gaga ressalta que até pode ter discursos lindos e motivadores, mas isso não significa que ela não tem dores assim como a gente que precisam ser curadas.
Com uma das melhores canções de sua discografia, pecando apenas por ser curta demais, “Babylon” conclui a nossa viagem à Chromatica com muito vogguing e um gostinho de quero mais, fazendo com que a gente compre outra passagem para ouvir este álbum em looping.
Podemos, então, afirmar que se este não é o melhor trabalho de Lady Gaga, é o mais coeso de toda a sua carreira. A ordem das músicas faz todo o sentido e conta uma história bem amarrada do início ao fim. Em sua metade percebemos que o Chromatica não é um disco inovador ou que vá trazer alguma tendência disruptiva e significativa para a indústria fonográfica nos próximos anos. Aqui fica claro que Gaga conseguiu resgatar alguns elementos de seus antigos álbuns com maestria, porém numa zona mais segura, buscando um caminho com fórmulas menos arriscadas, oriundas, talvez, das experiências traumáticas após os desdobramentos complexos do ARTPOP. Uma das provas de que houve esforços para não correr riscos com produções experimentais é que ela colaborou durante o processo com Sophie, grande precursora do PC Music que acabou ficando de fora do corte final. No entanto, é possível ver um pouco dessa contribuição da estética cyberpunk como um sopro de renovação no seu visual milimetricamente pensado para alavancar esta era.
Em suma, o que podemos tirar como mensagem através de toda a simbologia lírica, sonora e visual desse trabalho é que Lady Gaga diz que enquanto ela viver ela vai sofrer, mas vai mostrar pra gente que devemos nos banhar na tormenta da vida e que dancemos perante o sofrimento fazendo dele o nosso próprio renascimento.
“Até lá, eu espero que eles ouçam esse álbum e atravessem não só a minha jornada pessoal comigo e dancem através da dor, mas que eles passem pelas próprias jornadas e dancem através de suas próprias dores.” – Lady Gaga.
LADY GAGA
Chromatica
[Interscope, 2020]
Produzido por BloodPop e Lady Gaga