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Fotos: Divulgação/Companhia das Letras.

Crítica-HQ: Adaptação de 1984 em quadrinhos torna distopia de Orwell ainda mais vívida

Projeto sofisticado de Fido Nesti para este clássico torna o pesadelo totalitário orwelliano ainda mais assustador

Crítica-HQ: Adaptação de 1984 em quadrinhos torna distopia de Orwell ainda mais vívida
4.5

Em algum momento dos anos 2000 as adaptações literárias em quadrinhos atingiram uma saturação, com as editoras correndo para levar às livrarias obras que não traziam nenhuma ambição criativa na relação entre o original literário e a linguagem das HQs. Com o tempo, a estratégia editorial arrefeceu e vemos obras cada vez mais sofisticadas em explorar as potencialidades de cada mídia. É o caso desta adaptação de 1984, clássico absoluto de George Orwell (1903-1950), feita pelo quadrinista paulista Fido Nesti.

No traço de Nesti, a distopia totalitária imaginada por George Orwell e lançada originalmente em 1949, ganhou rosto e contornos assustadores, com uma experiência de leitura que é potencializada pelo temor do fascismo que segue à espreita no Brasil e no mundo.

O autor explora o seu estilo de desenho híbrido entre o cartunesco e o realista para criar a atmosfera necessária de terror e desolação futurista que sempre imaginávamos ao ler 1984. Para quem nunca leu o original, o gibi será igualmente impressionante por conta da construção detalhada dos cenários pensada por Nesti. Isso vai desde o design de prédios, maquinários, peças de propaganda e roupas, até texturas, clima e a atmosfera como um todo. Orwell é um autor já bastante descritivo, mas a visão de Nesti para aquele universo é bastante impressionante, com um resultado bastante vívido.

Como adapta o texto integral, por vezes a obra parece depender muito do original, com longas passagens que servem apenas para avançar com a história. Mas em geral, Nesti contorna bem esse problema e, no geral, a HQ conserva sua personalidade, sua individualidade enquanto produto artístico. Há diversas soluções criativas, possíveis apenas dentro da linguagem dos quadrinhos, que chegam a potencializar as ideias de Orwell, como as explicações dos conceitos de duplipensamento, polícia do pensamento e socing (socialismo inglês), contadas com o uso de alegorias visuais em sequência.

Nesti também utilizou o desenho para trazer a sensação de opressão vivenciada pelo personagem. As perspectivas e os ângulos de enquadramento são quase sempre vistos de cima, dando ao leitor o incômodo papel de ser o observador do regime, vigiando todos os passos do protagonista. O Grande Irmão.

A trama aborda a vida de Winston Smith, um angustiado burocrata que vive em uma Londres sorumbática, em meio à um regime de opressão. A trama se passa em Oceânia, um dos três grandes estados neste mundo distópico, sempre em estado de guerra constante. Nesta sociedade, ter uma mente livre é um crime gravíssimo e Winston acaba arriscando a vida ao se envolver amorosamente por uma colega de trabalho e por se rebelar contra esse sistema em busca de mais liberdade.

Com este romance, Orwell teceu comentários sobre os perigos do totalitarismo e do autoritarismo. O livro tornou-se um marco por sua leitura bastante lúcida da política do seu tempo e da análise que fez do que viria a acontecer no futuro. Por isso, 1984 sempre é usado como referência quando, no mundo real, nos deparamos com expedientes usados nesta distopia, a exemplo do controle da verdade e da manipulação do passado. O mundo imaginado por Orwell tem, como sua última instância, a dominação completa a partir do medo e da violência e foi entendido como uma alegoria ao nazifascismo e ao regime stalinista. Mas suas ideias seguem atemporais como um lembrete do horror causado pela fim da liberdade.

O mais assustador em ler a HQ, além de ver O Grande Irmão, as teletelas e todo o aparato opressor imaginado por Orwell ganhar vida, é constatar o quão realista é essa distopia e como ela se mantém atual.

Esta é a primeira vez que 1984 é adaptado em quadrinhos e o lançamento acontece mundialmente, com edições na França, EUA, Portugal e Espanha, entre outros países. A edição da Companhia das Letras aqui no Brasil se destaca pelo tratamento dado ao material original, o que inclui um apêndice sobre a Novafala, a língua oficial do regime totalitário da Oceânia.

A Companhia das Letras já tinha realizado uma outra adaptação de Orwell, A Revolução dos Bichos, feita por Odyr, que é também muito boa.

1984 (Edição em quadrinhos)
De George Orwell (texto), adaptado por Fido Nesti
[224 páginas, R$ 84,90 / 2020]
Adaptado da tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn

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