A israelense Rutu Modan é autora de um dos quadrinhos mais premiados e elogiados dos últimos anos, A Propriedade, que acaba de sair sem nenhum alarde aqui no Brasil. A história aborda a viagem de uma jovem israelense com sua avó a Varsóvia na tentativa de recuperar o prédio de apartamentos onde eles viviam até o auge da Segunda Guerra Mundial. A narrativa é uma das mais instigantes das HQs autorais na última década e colabora para lançar luz sobre uma história complexa que é a relação entre judeus e árabes em Israel.
O trabalho de Rutu está bem distante de obras que usam os conflitos no Oriente Médio como motor da narrativa, como é o caso das reportagens em quadrinhos de Joe Sacco. Ela trabalha no campo da subjetividade e usa uma história de amor e relacionamento familiar para abordar outros aspectos da sociedade israelense que são negligenciados em inúmeras narrativas (e não só nos quadrinhos).
O mundo onde vivem os personagens de Rutu é tão absurdo quanto o que estamos acostumados a ver nos noticiários, mas o peso de sua narrativa recai sobre as pessoas e menos nos agentes históricos. A Propriedade revela pessoas que precisam conviver com o peso de suas decisões e conviver com o passado – e isto nunca é fácil, como iremos descobrir. Contar a história da perspectiva de judeus contemporâneos à Segunda Guerra é sempre falar de uma relação conturbada com o passado. Rutu tem delicadeza para abordar questões difíceis, mas não é condescendente em nenhum momento.
Por trazer personagens tão humanos, tão falhos, tão absurdos e até ridículos, Rutu Modan se insere em um campo do realismo ocupado por poucos autores das HQs. A trama, permeada por diversos segredos que vão sendo revelados ao longo do livro, começa com a ida a Varsóvia, onde a jovem Mica leva sua avó ranzinza para tentar recuperar uma antiga propriedade de sua família. Em 1940 os nazistas desalojaram milhares de judeus de suas residências em Varsóvia e os forçaram a viver em guetos. As casas foram ocupadas por alemães e colaboradores do nazismo. Nos últimos anos, diversos judeus têm retornado à Polônia na tentativa de recuperar suas propriedades perdidas durante a guerra.
Rutu Modan mostra que a retomada de um lar nunca é algo simples: cada lugar tem uma história complexa que é também a história de pessoas que se relacionaram com aquele espaço ao longo dos anos. Ao chegar em Varsóvia, Mica e sua avó se dão conta de que recuperar a propriedade será também mexer em segredos e vidas que foram encobertas pelo tempo e distância. Com bastante sutileza, Rutu aborda a questão política de Israel, país que vive uma trama de expulsão e retomada ao longo dos anos. “Os judeus foram expulsos da Europa e suas propriedades foram tomadas pelos poloneses. Os judeus foram para a Palestina, expulsaram os palestinos e tomaram suas casas. É uma tragédia que segue acontecendo de forma contínua ao longo da história”, disse Rutu em entrevista a Ramon Vitral, no Vitralizado.
Esse contexto político não está claro no livro e talvez passe incólume por muitos leitores não muito familiarizados com a história de Israel e seus vizinhos. Mas é algo poderoso e que faz de Rutu uma voz relevante para criar um entendimento sobre os conflitos árabe-israelenses, ainda que sua obra não seja pautada pela militância política. Ao contar a vida de pessoas e sua relação com a história ela adiciona camadas a um tema bastante complexo e muitas vezes abordado de maneira superficial – seja na ficção ou no noticiário.
A jovem Mica é baseada em parte na vida da autora, uma israelense de 49 anos professora de ilustração e HQ em Tel-Aviv. Ao chegar em Varsóvia a personagem acaba descobrindo mais sobre o Holocausto, a vida no gueto judaico e detalhes da história de amor trágico de sua avó. Nesses passeios acaba conhecendo um quadrinista, com quem acaba se relacionando. Mica vai conhecendo personagens que poderiam estar em uma comédia dramática exagerada. É o caso do parente interesseiro que vigia avó e neta em busca da herança, ou os funcionários públicos bonachões. Sua técnica e entendimento da linguagem dos quadrinhos consegue ambientar drama e comédia na mesma narrativa, muitas vezes situando no mesmo quadro uma cena tão triste quanto ridícula. São tantas subtramas que Rutu Modan deixa o leitor à vontade para encontrar seu próprio sentimento em relação à leitura.
Com um traço sutil e cores pasteis, Rutu Modan cria um mundo cheio de detalhes ao mesmo tempo em que nos coloca em perspectiva do poder da história na vida das pessoas.