Manoel
Manoel de Oliveira em cena do doc. (Arquivo doc / Divulgação).

Crítica: Doc Minha Perna, Minha Classe desbrava a luta heroica de Manoel da Conceição pela terra

Filme de Arturo Saboia conta com relatos de familiares, a história de um maiores líderes trabalhistas do Brasil

Crítica: Doc Minha Perna, Minha Classe desbrava a luta heroica de Manoel da Conceição pela terra
4

Dentre os tantos males que a colonização portuguesa deixou no Brasil, poucos foram tão perniciosos quanto a influência no sistema educacional. Por isso, a história, por muitos anos, sempre foi contada pelo ponto de vista dos portugueses. Com isso, os fazeres e saberes dos povos originários figuram como meros coadjuvantes de registros que eurocentrizam a história de uma nação que não deveria pertencer à realeza de Portugal. Este sistema prioriza as narrativas brancas-elitistas, silencia personagens marcantes, como dos povos indígenas e os revolucionários pretos escravizados e deixa dentro dos livros didáticos um relato unilateral. 

Leia mais
Muribeca, uma história de resistência

A educação ainda presente em nosso país cheio de resquícios coloniais apresenta aos jovens estudantes os heróis portugueses, como Dom Pedro II, Pedro Álvares Cabral, Princesa Isabel e companhia. Heróis populares, pobres, pretos e indígenas não ganham o mesmo patamar na literatura escolar, porém sempre foram objeto de interesse de produtos audiovisuais desbravadores e inconformados.

Explorando o sistema dos latifúndios no Brasil, o longa Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, nos faz conhecer a trajetória de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa de Sapé, na Paraíba, quem foi assassinado em meio a luta pela terra por volta dos anos 1960. Mais de mil quilômetros de distância, no Maranhão, também se desenvolvia a jornada de Manoel da Conceição, presidente do sindicato de trabalhadores rurais da região e personagem central do documentário Minha Perna, Minha Classe, de Arturo Saboia, que terá exibição na Cinemateca Brasileira este sábado (18), às 19h. A entrada é gratuita.

As referências do jovem cineasta maranhense a Coutinho neste filme não se traduzem apenas nas temáticas em comum da violência no campo e das barbáries sofridas pelos considerados subversivos durante a ditadura militar. O que há em comum, e possivelmente até de forma inconsciente, entre ambos, é o retrato de heróis brasileiros que não constam nos livros de história.

O que diferencia a narrativa das aventuras e desventuras de Manoel em relação a João, por exemplo, talvez seja, seu maior tempo de vida e todos os feitos que alcançou. Um homem analfabeto, de base cristã, que se viu em meio a uma batalha injustíssima ao perceber que a terra, seu meio de sustento, e elo de pertencimento afetivo, tão bem cultivada por ele e milhares de trabalhadores rurais, estava sendo tomada.

Um espírito inigualável de liderança, a defesa por sua classe trabalhadora, um senso extremamente ambientalista e em prol dos direitos humanos transformou um simples homem numa verdadeira referência, e consequentemente, ameaça para quem estava do outro lado da disputa. O roteiro de Saboia traz o espectador para perto do convívio de Manoel, através de relatos de seus filhos, sua última esposa, amigos e estudiosos, documentos de época, imagens de arquivo, além de visitar locações marcantes da vida dele. O filme é um trabalho feito em parceria com a produtora-executiva Cassia Melo, com quem Arturo trabalhou no aclamado curta Acalanto (2013), vencedor de seis Kikitos em Gramado.

As falas sobre Manoel da Conceição destacam a resiliência, a força, a luta e a determinação. Inclusive, o nome do filme diz muito sobre isso. Já que vem baseado numa frase que Mané (como é chamado pelos entes queridos) disse. Após uma emboscada, onde levou tiros no joelho e sofreu uma amputação, o líder dos trabalhadores rurais do Maranhão foi convidado pelo governador do estado para uma reunião, na qual lhe ofereceu emprego e uma prótese caso abandonasse o movimento. Sua causa de vida falou mais alto já que era parte de sua essência como ser humano, o levando a negar e responder: “Minha Perna, Minha Classe”.

A admiração estampada nos olhares e tons de vozes dos entrevistados mostram mais um diferencial na figura de Mané. Enquanto a mídia tradicional lançava manchetes que o criminalizavam, o taxavam como terrorista, as pessoas próximas destacavam a pessoa sábia, compassiva e amorosa que era. Após ver de perto a violência desenfreada, que matou mulheres e crianças, e sentir na pele o peso disso, tendo uma perna amputada, sendo torturado pela ditadura durante oito meses, chegar ao fim da vida declarando não sentir remorso por quem lhe fez mal, realmente, é coisa de quem transcende o que se entende de vida.

Arturo Saboia constrói um roteiro que nos faz sentir próximos de Manoel da Conceição. Apresenta reconstituições cênicas de sua infância, conta a partir de quem viveu com ele seus feitos, vitórias e perrengues, e constrói um registro digno do tamanho da grandeza de um personagem como este. Da viagem até a China para entender como a revolução acontecia, a turnê pelo mundo durante seu exílio discursando sobre a luta pela terra, à presença na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), até sua morte por Alzheimer em 2021, Manoel fez história. Escapando de ser mais um dos “cabras marcados para morrer” que padeceram na mão do inimigo, se reforça no desbravador Minha Perna, Minha Classe como um herói real do Brasil. 

O quê: Mesa-redonda com o diretor e a produtora e exibição do filme
Sábado (18/03), às 19h
Cinemateca Brasileira – Sala Grande Otelo
Endereço: Largo Sen. Raul Cardoso, 207 – Vila Clementino – CEP 04021-070 – SP
Ingressos gratuitos